sexta-feira, junho 22, 2007

Sophia à beira do mar.

A manhã apresentou-se cinzenta e fresca, apesar de se estar a poucos dias do verão. Ideal para a minha caminhada pela praia.
Poucas pessoas à beira mar. A agitação furiosa das bandeiras hasteadas nos apoios de praia, parecia avisar os banhistas para se manterem afastados.
Sentia-me preguiçoso. Enchi os pulmões daquele ar que ameaçava tempestade e limitei-me a fazer alguns exercícios físicos apenas em pensamento, de olhos fechados. Espreguicei-me indecorosamente e dei ordem de marcha à perna direita, que lá obedeceu a custo. Era capaz de jurar que ouvi ranger.

Para nascente, o areal termina abruptamente, dando lugar a uma sucessão caótica de rochas que deslizaram ao longo dos tempos da encosta circundante e que dali se eleva, prolongando-se por vários quilómetros. À medida que me aproximava das rochas – superá-las e chegar a um minúsculo areal a partir do qual era impossível passar, era, no fundo, a razão que sempre me levava a fazer aquele percurso –, reparei que, apesar de as haver de várias cores – cinzentas, azuladas, vermelhas, negras e castanhas –, iluminadas por aquela luz difusa, todas pareciam convergir para um tom indefinível.
Alguns blocos de granito, próximos da rebentação e em cima dos últimos grãos de areia – quais guardiões do território das pedras –, parecem ter sido cortados numa máquina e para ali atirados, tal a perfeição das faces.
Já imaginava os cataclismos que as teriam feito precipitar sobre o mar e Deuses atarefados em pedreiras celestes, quando a vi. Estava sentada na fronteira da rocha inteira com a rocha granulada. Escondida, pareceu-me.
Atraiçoou-a um pequeno saco verde alface que tinha a seu lado, já que o negrume do cabelo, o azul claro das calças, o castanho claro da blusa de linho e o tom de pele dos pés descalços, se confundiam com o cenário.
Uma súbita atracção por aquela mulher, ali, assim, fez-me abrandar o passo. Mesmo à distância, percebi-lhe uma expressão enigmática. O que faria ali, em que pensaria? O olhar, escondido por óculos escuros, parecia amarrado à linha do horizonte. Instintivamente, olhei também para o mar, como se estivesse a acontecer algo fundamental e necessário. Nada. Apenas mar a perder de vista.
Não. Afinal, lá longe – muito longe – conseguia-se vislumbrar um minúsculo triângulo. Uma vela que seguia para ocidente. E então, percebi: na impossibilidade de partir, de facto, ela estava ali para imaginar viagens, partidas de uma vida indesejada. Julguei perceber a vida daquela mulher em apenas um momento. Era infeliz.

À medida que me aproximava dela, fui tomado por uma inesperada excitação com as respostas a que cheguei para algumas questões que logo me intrigaram. Seria o destino importante? (concluí que não; apenas que fosse outro, longe dali) Estaria propositadamente dissimulada? (sim, claro; na impossibilidade de embarcar para uma outra vida, dissolveria-se na paisagem da sua existência, passando assim, despercebida a todos; seria apenas ela e os seus pensamentos).
Julguei até saber o nome dela: Sophia. Com –ph, que aquela dignidade e altivez mereciam um nome assim, grande.
Ocorreu-me então que, por trás das lentes escuras, ela teria os olhos fechados. Sonha-se melhor de olhos fechados, todos sabem isso.

Ao passar por ela, não evitei um olhar directo, ainda que breve, e vi uma esfinge. Burilada em rocha, rodeada de areia, contemplava o vasto horizonte. Inamovível. Determinada. Decidida.
Deixei-a para trás e tive que resistir várias vezes ao desejo de virar a cabeça, apenas para ter a certeza que ela ainda lá estava, que não tinha sido apenas a minha imaginação.
Quando cheguei à rocha mais alta, antes de iniciar a descida para o pequeno areal, voltei-me. Não tinha sonhado, mantinha-se no mesmo local, com a mesma expressão.

Sempre que tinha visitado aquele quase nada de areia no fim da praia – seria ainda a mesma praia? – tinha-me demorado com os meus pensamentos. Encontrava ali, naquele espaço confinado por altas paredes de rocha e terra escura, apenas habitado pelos gritos estridentes das gaivotas e pelo rebentar das ondas, um estranho sossego que me permitia seleccionar e arrumar as ideias importantes, um pouco como se estivesse a arrumar caixas em prateleiras. Mas desta vez, não.
Ao colocar o pé na areia, um arrepio gelado percorreu-me o corpo. E não foi causado pela brisa fresca que ali chegava ao colo das ondas. Lembrei-me da origem da palavra esfinge, que deriva de um verbo grego que significa “estrangular”, já que a esfinge da mitologia grega estrangulava todos os que não conseguissem decifrar as suas charadas. Instintivamente, levei a mão ao pescoço.
Não me consegui demorar, sentia-me perturbado, As ideias iam ter de ficar desarrumadas por mais algum tempo. Tinha de voltar.
Iniciei o caminho de regresso, mas logo abrandei o passo. O que iria fazer, falar com ela? Não obtive resposta, apenas a certeza que tinha que voltar para trás, ainda assim. Nada daquilo era normal e tinha de haver algo, uma razão para eu estar assim.

No topo da rocha mais alta, o meu olhar dirigiu-se imediatamente para o local onde a tinha visto pela última vez. Ainda lá estava, mas havia algo de diferente nela; algo que não identifiquei imediatamente, mas que senti.
Percorri as rochas o mais depressa que consegui, não evitando alguns arranhões nos pés. Estava agora próximo dela.
A postura era a mesma, a concentração também. De pernas flectidas, tinha agora os braços esticados para a frente, cada cotovelo apoiado num joelho. Segurava algo.
Gotas de suor desciam-me da testa para os olhos, o coração disparado. Estava ofegante e com a boca seca.
Quase corri.
Ela não pareceu dar pela minha presença e manteve-se imperturbável, como se ninguém ali estivesse.
E então, percebi o que ela tinha nas mãos: numa manhã cinzenta e fresca de final de primavera, sozinha e isolada num canto remoto de uma praia, uma mulher lia sossegadamente a revista Maria.

31 comentários:

Teresa Durães disse...

oh compadre, até que enfim que volta com a sua escrita!!! Já existiam saudades neste canto. Esperei esperei e... voilá!!!!

eheheheheheh

(anda às ninfas??? o malandro!!!)

Jocas!

Eyes wide open disse...

Yeeeeesssssssssssssssss!!
Finalmente voltaste...
Gostei. De te poder voltar a ler. E da tua história.

*

Alberto Oliveira disse...

Levantou os olhos para o homem visivelmente desagradada "Pretende alguma coisa? e a voz denunciava algum temor, o que era compreensível se não nos esquecermos que até onde a vista podia alcançar, não se distinguia viv´alma ao longo do areal,que o mau tempo tinha afastado os banhistas mais resistentes. Não tenha receio. Você lembrou-me alguém que não vejo há muito tempo. Há demasiado tempo, aliás. Partiu sem uma palavra e deixou para trás um homem com o coração destroçado... Ele tinha uma voz bem modulada, era bem-parecido e parecia sincero. Mas nos tempos que correm... E o que tenho eu a ver com a sua vida privada? nós nem nos conhecemos.. Isto tem todo o aspecto da velha história para meter conversa. Depois convida-me para um café, trocamos telemóveis, vai confessar que nunca conheceu uma mulher como eu, bela, inteligente e tão só que é um pecado... qual telemóvel qual quê! porque é que não jantamos já hoje?!, depois vamos a um cinema, a noite ainda é uma criança, sugere-me uma bebida em sua casa para terminar um tão perfeito dia, mas ambos sabemos que a noite vai acabar na sua cama. Diga-me cá se eu não estou a ver o filme tal como você pensa que vai ser estreado? Ele passou distraidamente os dedos por um ponto saliente e áspero de uma rocha e os seus olhos pareciam perdidos na massa líquida imensa do horizonte quando respondeu Não, não está tal. Gosto de estar acompanhado quando leio. Apenas isso. E você pareceu-me uma boa companhia. Quer ver o que ando a ler? e sem esperar a resposta dela tirou do pequeno saco que tinha a tiracolo a revista masculina "Man´el".

Anónimo disse...

É bom voltar a ler uma história tua... E uma história quase verdadeira!... Apenas que, nas suas mãos não está a revista "maria", mas uma caixinha azul...

(lélé)

Sofia disse...

Ainda nao tive mt tempo para te ler. Deve ser da ressaca do S. Joâo. Voltareicom mais calma.

bjs

PS mais uma vez obrigado por tudo. Vcs sao uns queridos.

Margarida Atheling disse...

Que bom que voltaste! :)

A revista "Maria" não vinha nada a lembrar...

Bjs

Alberto Oliveira disse...

... tens um convite -não,não é para o futsal, que esse foi ontem e nem sei (nem quero saber) o resultado...

vai ao meu blog colectivo:

http://mansoa.blogspot.com/

e lê.

joaninha disse...

welcome bacK! ja tinha saudades das tuas historias! :)

beijinhos**

Klatuu o embuçado disse...

Belíssima prosa.

crispipe disse...

Gostei de te ler.
Tinha saudades, e não perdi a esperança.

Jokinhas




P.S. "revista Maria"????!!!!!!

M.M. disse...

Não te aguentaste muito tempo afastado.
Pois claro, quando se é bom, é-se bom e pronto. Há que voltar para satisfazer a curiosidade dos demais.
Bem-vindo, lindo!

Sara MM disse...

eh pá!!

venho só dar-te as boas vindas!!!!
mas fico curiosíssima para ler a história!!! se fôr como "dantes"... :o)

Bjss
(e a MariaL. é a tua "Maria"!?!! a das bruxas?!?!)

Anónimo disse...

muito "sophia" ...

Sofia disse...

;))

Belo regresso.

Tb eu me encontra assim, estática, sonhando mas em vez do mar olho o céu, tentando encontrar-lo!

E em vez da revista Maria, tenho nas mãos o manual de Civilizações Pré-Classicas que o exame é ja na terça.

Gostei muito.

bjs

lélé disse...

(convém especificar que a caixinha azul contém rapé... ou lascas de cebola, quiçá!...)

Anónimo disse...

No vento
Meio por fora
Meio lento
Saí do meio do rio
Caí no meio do mar
~~~~~~~~~~~~~~
Fechei pra balanço
Renovei águas
As águas que vem de dentro

Riodaqui. Belo texto e abraço. Paulo Vigu

tb disse...

Nem sei se gostei mais da história que aqui escreves co ma tua mestria habitual, se da que o legível deixou, se do facto de teres regressado. Talvez das 3 juntas e ainda dos versos que me deixaste. :)
É bom ter-te de volta para me deliciar com as histórias da tua prodigiosa imaginação.
Beijos

Anónimo disse...

Olá. Ainda bem que a tua paragem foi interregno! No areal, tua criação, deixei marcas de meus pés, percorrendo-o!
Mas, senti algo de diferente na edificação desta peça. Espero que seja só do "aquecimento dos motores" Bom regresso! Um abraço

Anónimo disse...

seja mt bem regressado.




___________________!!!


abra�o.



/piano.

Isa disse...

sê mt re-bem-vindo à blogosfera! :-)

Anónimo disse...

Vim aqui através do blog camuflagens que te apresentava como uma das sete maravilhas. E não fiquei desiludida porque a história que hoje apresentas é magnífica. Depois de todo aquela fantasia, daquele interesse tão grande, o pobre sonhador depara-se com uma rapariga a ler a "Maria"!!! Não esperava tal final...

Anónimo disse...

Martuxa à beira mar
Sorrisos

Anónimo disse...

A "maria"??

Isso é como acordar bruscamente de um sonho doce...

C. disse...

felizes dos que sabem amarrar o olhar à linha do horizonte e conseguem ver Sophias assim, misteriosas, enigmáticas, vindas sabe-se lá de que mundos distantes. Sophias que precisam de se isolar à beira do mar para alcançarem a concentração necessária à leitura da revista Maria.

Uma história muito interessante com um final surpreendente, ou melhor, delirante.

:))

Licínia Quitério disse...

Pena não poder ler mais assiduamente estes teus saborosíssimos nacos de prosa.
Mas ainda há a revista MARIA? Tenho de ir comprar para a ler com o coração a transpirar.

Beijinho.

APC disse...

Oh, meu Deus! E logo "Sophia", que deveria querer dizer sabedoria!!! :-)

Realmente... "Quão misteriosos são aqueles de quem nada sabemos" [qualquer coisa assim, e não sei de quem, nem me apetece googá-lo], e como somos capazes de fazer o outro à imagem do nosso desejo!...
Tudo construções de areia?...

Imperdível, esse teu toque de humor inusitado, ao cabo de um texto tão bonito de se ler!

Ahhh, como gostei de ter voltado aqui, jovem!!! ;-)))

Um grande abraço pati!***

Rita disse...

Ola Rui...Deixa-me dizer-te que és um grande fotógrafo...muitos parabens...acerca da Rita..pode saber mais sobre ela em http://www.myspace.com/ritaeday
Beijos e continua com esses magnificos shots!!!

mixtu disse...

... abrazo monarquico...

quando tiveres um tempito, no 3º comment, mais elaborada a estória

Sea disse...

h� uns tempos que por aqui n�o passava. preciso de ler este texto, com mais aten�o.
bjinho :)

APC disse...

Tive que voltar... Faltava-me ler a versão do "Manel", eheheh! :-)

a_mais_fofa disse...

Que saudades de te ler! Ainda bem que voltaste!

Um final surpreendente mas que torna tudo mais possível, mais real. Quantas vezes, nas viagens de comboio, quando o livro ficou esquecido em casa, olho para a pessoa que vai à minha frente e ponho-me a adivinhar a sua vida. Chegada ao meu destino, sinto que a conheço, às vezes quero dar-lhe os parabéns pela família fantástica e pelo sucesso na maneira como gere a família com um emprego de grande responsabilidade, outras quero oferecer ajuda, dizer que as coisas vão melhorar, que vai encontrar um novo amor ou um sentido para a vida...
Mas não digo nada. Saio e esqueço. Para quê falar quando a melancolia ou a felicidade que leio nas pessoas pode não passar da sua reacção à última notícia da revista?!

Não nos voltes a deixar sem notícias tanto tempo!