segunda-feira, novembro 13, 2006

K331 - Alla Turca (primeiro andamento)

Este texto é para ser lido com os olhos fechados

Um palco. Está dividido em três partes: à esquerda, um quarto. A cama está por fazer; uma almofada caída no chão. Numa cómoda, em frente à cama, vários objectos pessoais; por cima, um espelho. O roupeiro tem uma porta aberta, permitindo ver algumas camisas penduradas e vários cabides vazios; há ainda diversa roupa ao monte, a um canto;
à direita, uma sala de estar. O pouco mobiliário é de design moderno, dominando o preto e o branco. Arrumação impecável. Nas paredes, quadros de Lynne Taetzsch, Trevor Bell, Merello e um enorme retrato a preto e branco de uma jovem;
a zona central do palco está completamente às escuras.

(um homem entra no quarto. Tem a barba por fazer e o cabelo em desalinho. Tosse. Veste uma t-shirt com a imagem de uma folha de cannabis estampada e uns boxers vermelhos com limões. Está descalço. Senta-se na cama, de costas para o leitor. Baixa a cabeça e assim permanece algum tempo até se levantar e sair. Regressa com um telemóvel. Revolve uma gaveta da cómoda até encontrar o carregador, que liga à corrente. Hesita. Afasta-se. Passa a mão pela barba. Volta. Marca um número. Desiste. Volta a marcar.
na sala, toca um telefone.
uma mulher, em roupão, aparece. Pega no telemóvel e, após ver o número, desliga.
com ar desalentado, ele senta-se na cama. Pouco depois, liga de novo. Ninguém atende. Na sala, apenas o som de água corrente. Ele insiste uma, duas vezes.
na sala, ainda em roupão mas agora com uma toalha enrolada na cabeça, a mulher regressa e atende)


- O que queres, João?
- Ana, escuta-me…

(ela nada diz)
- Tens que vir buscar o piano.
- O piano?
- Eu posso levar-to, é uma questão de combinar...
- João, eu…

(senta-se e coloca uma mão na testa)
- É só entregar-te isto, sem dramas.
- Eu não tenho tempo, nem paciência para as tuas coisas. Pensava que pelo menos isso, tu tinhas percebido.
- Eu sei, eu sei, mas preciso ver-me livre disto.

(apoia uma mão na parede, como para evitar que a parede se movesse)
- Estás a falar do quê?
- Deste maldito piano que a tua mãe trouxe cá para casa.

(ela tenta recordar-se)
- Aquela caixa de música em forma de piano, deixaste cá isto.
- As coisas que tu inventas…

(abanando a cabeça)
- Isto está a deixar-me a cabeça feita em papa.
- João…

(suspira fundo)
- A sério!
- Não o ligues, é tão simples como isso.
- Não é Ana, acredita.

(ela, sem o ouvir, prossegue)
- Tens esta capacidade de me perturbar que me assusta imenso. Para que é que me estás a ligar com este disparate, explicas-me?
- Eu não te quero assustar, nada disso. É só que isto me está a fazer mal.
- Tira-lhe a pilha!
- Já tentei, mas aquela porra tem os parafusos metidos para dentro e a única chave que tenho é grande demais, não cabe.
- Poupa-me…

(levanta-se e começa a andar pela sala)
- Verdade, juro!
(ela pára)
- As tuas juras, João… por favor.
(revelando irritação)
- Esse assunto, outra vez…
- Esse assunto sempre! Eu não consigo falar contigo… aliás, eu não consigo sequer pensar em ti sem que me lembre, sabes?
- Agora já não adianta.
- Tens razão, não adianta mesmo. Nem sei porque fico assim. Para mim é assunto encerrado, já segui em frente.

(recuperando a calma)
- Fizeste bem. Eu fiz o mesmo…
- Ainda bem. Agora tenho de ir.
- Não Ana, espera. Eu preciso mesmo dar-te isto…

(ela já tinha desligado)

37 comentários:

Sara MM disse...

mas... ?!?!

se nem de olhos abertos.....?!?!?!




mas ok... pode ser que os próximos "andamentos" se percebam melhor... com olhos bem abertos e quem sabe até a tocar umas coisitas no piano! :oD

joaninha disse...

estou na expectativa agora... sempre quero ver o que acontece...

beijinhos

Fortunata Godinho disse...

Bem, há que tempos não tinha oportunidade de te seguir e agora, zás: Teatro - nem de propósito...
Tu és imparável!
Estou pasma e em pulgas.
Mais! Mais! Mais!

Alberto Oliveira disse...

... chegava sempre atrasado onde quer que fosse. E a entrada na sala-estúdio para assistir à estreia da peça "Com os Olhos Bem Fechados", não foi excepção. A transposição da claridade para a escuridão da sala obrigou-o a uma viagem de malabarismos impensáveis onde "experimentou" pelo tacto, cabelos diversos, ombros vários, peitos fartos e outros nem-por-isso, aterrando finalmente numa cadeira vaga e suspirando de alívio.
Imediatamente, foi envolvido por um foco de luz esverdeada e percebeu a diferença entre um palco e uma plateia... "Modernices destes teatrecos experimentalistas", pensou. Mas logo de seguida, uma figura masculina próxima de um piano, apareceu também recortada por um foco, desta vez avermelhado.

- Olá! Você deve ser o gajo da empresa de transportes que vai levar daqui este maldito instrumento! Eu sou o João e quero ver isto despachado o mais rapidamente possível.

- E eu sou o Alcides! E tinha razão para avisar as pessoas que passaram pelo post anterior, para não apagarem a luz. Só não adivinhava que logo a seguir havia um piano para me complicar a vida...

Um foco de luz violeta acompanhou os passos de uma mulher vinda da direita baixa.

- Eu sou a Ana e peço aos estimados leitores-espectadores que podem abrir os olhos. A peça seguirá em breve.



Caiu o pano com tal estrando, que pelo menos deve ter partido uma perna.

Alberto Oliveira disse...

"... com tal estrondo" é que é...

919 disse...

Fogo, Rui! Estive aqui a perder tempo a ler isto com os olhos fechados, como mandaste... não consegui ler nada!... Amanhã volto cá, mas, desculpa lá, vou ter que ler isto de olhos bem abertos! E vou ter muito prazer em fazê-lo.

Medusa Azul (Zuli) disse...

mais!!!mais!!!

APC disse...

Eh pá... Enfim o pano se levantou e é a peça começou e em grande... À conta de um quase nada, um quase tudo. O para a frente promete algo do para trás e... Queres lá saber que gostei à brava disto?! Marquei o meu lugar, bem ao centro da plateia, de um lugar onde se vê tudo-tudinho (principalmente de olhos fechados!:-)

APC disse...

* e é que a peça

Anónimo disse...

Estou na ultima fila da plateia, à espera...
Novembro Um mês para esperar...

Titá disse...

Só posso dizer que fiquei surpresa e entusiasmada neste 1º Acto.

Parabéns!!!

Que o intervalo não seja longo...quero mais.

Beijinhos

Isa e Luis disse...

Olá Rui,

Bem só posso dizer mais mais e não demores, meus olhos não podem com a escuridão:))

Uma excelente semana com alegrias paz e amor.

Beijinhos

Isa

Anónimo disse...

Já há bilhetes para os próximos espectáculos? Queria fazer a minha reserva!

919 disse...

Hoje, de olhos bem abertos, que vejo eu? Uma peça de teatro muito bem esgalhada e a prometer um final cómico, independentemente das cenas intermédias!

(que será que está ali ao centro, na parte escura?...)

Isabel Magalhães disse...

Já posso abrir os olhos? :)






Deixo um beijinho.

Anónimo disse...

o piano, a caixa em forma de piano é apenas a desculpa, o motivo, mesmo que não existesse a mais pequena recordação fisica de Ana, mesmo que não haja piano, João está agarrado ás cordas de Ana e ali anda .. na corda bamba. São as relações humanas, retratadas tal como elas são.

A rejeiçao vrs indiferença de quem rejeita ?!!!

Flor de Tília disse...

E agora... dramaturgo!? Também encenador, cenógrafo, aderecista, contra-regra, iluminotécnico...um pouco de tudo.
Li de olhos fechados. Quando os abri, o 1º acto começou.Gostei. Aguardo outros quadros, outras cenas...
Beijos

Velutha disse...

Olá Rui...zito!
Um quarto em desalinho. Um homem em desalinho também. Abandonado? Terá merecido! A Ana continuou. Deve ter tomado a decisão certa na hora certa. Ele ficou só, desesperado e tenta reatar.Ela não está pelos ajustes. Ai, Ana! Por favor, ouve o João.O piano foi apenas um pretexto para ouvir a tua voz.
Gostei Rui...zito! Uma cena do primeiro acto. Uma comédia? Uma trgédia? Talvez uma tragicomédia desta difícil arte de viver.
Beijinhos miguito

Sea disse...

Eyes Wide Shut... hum...

Sofia disse...

Muito, muito, muito bom!!!!

Já tinha saudades de te ler.

Beijos

Klatuu o embuçado disse...

E os cegos? :)

Anónimo disse...

Suspense...
Engraçado como consegues dar tão bem a percepção dos espaços nas descrições que fazes...consegui visualizar o homem com todo o seu desalinho! Excelente mais uma vez...

O dialogo é algo superficial, mas axo k a intensão e mesmo deixar no ar e prender os que te lêem...
Beijus

P.s.You've got mail ;)

isabel mendes ferreira disse...

Bom dia Rui....foi dificil chegar aqui...o link ía dar a lugar nenhum.....
mas pronto(S) já passou....:))))
______________

Li com os olhos de ouvir. e de tocar.

e vou. tocada por tamanha sonoridade.

obrigada!


abraço.

Bárbara Quaresma disse...

Fico à espera do resto... Gostei!

Teresa Durães disse...

hum.... tenho sempre de fica à espera do resto não é??????

(ora pois então)

e espero!!!! (estou ali na plateia, à frente, direita centro)

boa noite

Maria Liberdade disse...

Há pianos que são como os sentimentos martelam-nos na cabeça.

Anónimo disse...

Lá se fica á espera... venho cá todos os dias a ver se há mais...

Isa disse...

ó meu deus... vá escreve mais, anda, que já estou que nem posso e ainda vai só no 1º cap... caneco... bjs

Anónimo disse...

E eu tou mortinha por saber mais... o que tem o piano? hummm... nao demores a escrever, please :*

tb disse...

Como fechei os olhos não vi piano nenhum... :)
abraços

Farinho disse...

Eia, demorou mas começou em beleza, adorei, alias gosto muito da sua escrita.

Beijocas.

APC disse...

Ai, que tu eras a minha esperança, neste exacto momento (sexta-feira, 03:30), de ler algo com qualidade, e não publicaste ainda! :-(
Bom... Vou finalmente acabar o meu Oscar Wilde! ;-)

segurademim disse...

... o desconcerto das relações desgastadas, o amor-próprio ferido, dilacerado

não há nada a fazer, é juntar os cacos e seguir em frente

beijo :)

Isa e Luis disse...

Quando vai a cena a peça?
Gostei.
Luis

Salvador disse...

bela descrição.
Ainda á esperança?

1 abraço

Ahlka disse...

A tua escrita permite ver sem fechar os olhos. :)

Quando há uma enorme vontade, qualquer pretexto parece ser de peso..

Luís Leite disse...

Um teatro... quando tiver em cena quero ver!!!