terça-feira, outubro 31, 2006

A Luz (parte 6)

O sol, já baixo e filtrado pela densa copa das árvores, pouco penetrava no jardim, dando à parte central do Largo da Luz um aspecto algo lúgubre.
O ruído da feira era, ali, abafado, como se viesse de um local distante. Dominavam os gritos das crianças, que por ali brincavam.
Um casal de namorados desocupou um banco de jardim, ao vê-los aproximar.

- Foram simpáticos. – Disse o velhote, a quem já começavam a doer as pernas e as costas. – Estou mesmo a precisar de me sentar.

Estavam mesmo atrás de um dos restaurantes amovíveis que alimentam os visitantes da feira. Sentados à roda duma mesa de plástico, os empregados de mesa faziam tempo até à hora do jantar jogando às cartas.
Um deles, rapaz para não mais de 18 anos, levantou-se ao ver passar duas raparigas – mais novas que ele.

- Cátia, dá-me lá o teu número. – Diz ele, aproximando-se.
- Outra vez, pá? Não dou!
- Vá lá…
- Não sejas chato. – Respondeu a Cátia, com um desdém mal disfarçado, afastando-se, de braço dado, com a amiga. Riam baixinho e falavam uma com a outra substituindo as palavras por olhares cúmplices, forjados em muitas conversas sobre rapazes.

- Ganda caramelo! – Gritou um dos colegas. Todos riram. – És um engatatão, és és.

O rapaz riu também.

Estranhamente, era ali, atrás da feira, que existiam algumas filas. No recinto da feira havia imensas pessoas, mas comprar o que quer que fosse não era tarefa demorada, enquanto que no jardim, com menos gente, beber água no repuxo ou utilizar as casas de banho, era algo bem mais complicado de se conseguir.
Estendendo-se a partir de uma espécie de pré-fabricado, ali colocado com o propósito de servir de casa de banho, uma fila de mulheres aguardava a vez. Eram várias as que protestavam pela demora.

- Não tarda nada, vou à dos homens… mas é que não tarda nada! – Exclamou uma.
- E o cheiro, já viram o cheiro?
- E ainda nem entrámos. – Respondeu outra.

Cátia e a amiga surgiram de novo, pelo mesmo caminho de há pouco. Nenhum dos jogadores de sueca as viu, entretidos que estavam com o jogo. Um contratempo para as raparigas, que foram obrigadas a se demorar por ali, até que alguém reparasse nelas.

- Cátia! - O rapaz apressou-se para perto das raparigas.
- Se quiseres, eu dou-te o meu número…

No banco de jardim, ambos sorriram.

- Estes miúdos são levados da breca, está a ver aquilo? – O velhote apontava com o cajado, interrompendo o silêncio com que tinham observado o movimento no jardim.

Um grupo de jovens, todos ciganos, escondia-se nuns arbustos, perto de um banco de jardim desocupado. Assim que um casal de idosos se sentou para comer cada um o seu gelado em sossego, logo eles vieram também sentar-se no banco. Dispararam mil perguntas ao casal: como se chamavam, como se tinham conhecido, se eram casados, de que sabor era o gelado, se moravam perto. As respostas não lhes interessavam, nem esperavam por elas, só lhes interessava a paródia, a aflição das suas vitimas.
O casal depressa se foi embora, para regojizo do grupo, que rebentou numa grande galhofa, para logo se esconderem de novo no arbusto, à espera de novas presas.

- Vir aqui fez-me recordar a minha mulher e o meu filho. – Disse ele pausadamente, olhando para a ponta do cajado. – A minha mulher deixou de viver quando o nosso filho morreu em Angola. Acho que nunca lhe perdoei isso… depois ela ficou doente e morreu uma morte desgraçada, sem forças até para se queixar. Eu fiz o mesmo, sabe? Morri com ela também, acompanhei-a, deixei de viver… passei a sobreviver… e só percebi isso hoje, à conta de uma gulodice de que até já me tinha esquecido que tinha. Foi uma rasteira, não esperava nada disto, mas a vida é assim, não é?

Não viu que a mulher comprimiu os lábios com força fazendo a boca rasgar-lhe a face num esgar.

- Gostava de lhe poder trazer o dia em que não se arrependesse de nada, o dia da tranquilidade da sua consciência. Gostava de ser eu a dar-lhe a certeza de que não há nada por que estar amargurado…. muitos de nós carregamos um peso cá dentro. – Apontou para o peito. - Algo que muitas vezes nem sabemos de onde veio, que não deixámos entrar, algo que, um dia, descobrimos instalado e que nos surpreende… eu sei o que é isso. - Pausa. - Não lhe consigo explicar isto mas, não o conhecendo há mais do que uns minutos, sinto que é um homem bom, que sempre o foi, e isso é que importa.

Estavam os dois calados, quando uma súbita rajada de vento levantou do chão as folhas secas e amarelecidas das árvores - as primeiras vitimas de um Outono há pouco chegado - e com elas as cartas do jogo da sueca, que rodopiaram no ar. Os empregados de mesa levantaram-se de um pulo e correram em todas as direcções, tentando apanhá-las.
O valete de paus veio cair no colo do homem.

- Sir Lancelot. – Disse-lhe ela.
- Como disse?
- Essa carta representa Sir Lancelot.
- Não sei quem é.
- O baralho de cartas foi inventado em França - não assim, como o conhecemos agora, um primeiro, do qual este deriva - e os quatro naipes pretendiam representar as divisões sociais da altura: copas para representar o clero, ouro para a burguesia, espadas para os militares e paus para os camponeses. Mais tarde, atribuiu-se significados específicos às cartas com figuras e o valete de paus era Lancelot. – Perante o ar algo confuso do seu interlocutor, sentiu necessidade de acrescentar: - Eu sou de História, interesso-me pela simbologia.
- E quem era esse tal do laçarote?

A mulher riu-se. Colocou a sua mão em cima da dele e disse-lhe: - Conto-lhe tudo, mas antes vou comprar uma fartura para cada um.
Após um segundo de hesitação, ele respondeu: - Aceito, obrigado.

* * *

Abriu o postigo. A noite começava a instalar-se e com ela chegavam os primeiros clientes do restaurante vizinho. Instalou-se no seu ponto de observação.
Uma ideia assaltou-lhe o espírito: durante muito tempo, tinha-se esquecido de olhar para dentro de si.


FIM


Encontram algumas fotos da feira, aqui.

60 comentários:

Anónimo disse...

pois é

existem muitas pessoas que embora vivas, vivem mortas

algumas nunca chegam a ter coragem de espreitar pelo postigo

Maria Liberdade disse...

Amar é também perdoar. O teu velhote vai olhar para dentro e perceber que perdoou a mulher, do mesmo modo que esta lhe terá perdoado os silêncios.

Anónimo disse...

Gostei muito desta história. Muito bem escrita, comovente, que nos faz pensar.

Mas não houve uma perte que não percebi. Tenho que reler noutra altura...

Sofia disse...

Ohhh Rui.....

escreves tão bem, é tão lindo o que contas, que eu até fico sem palavras.

Obrigado por mais este lindo conto.

Bj

Isa disse...

tão giiiiiroooooo... bjs e parabéns por mais uma história tão linda.

BlueShell disse...

Foi apenas mais uma concha que se perdeu! Quem sentirá a sua falta?

Anónimo disse...

Estou apaixonada por esta história!

Não demores a contar mais!

919 disse...

afinal, o homem não enganou... ressuscitou mesmo!... gostei imenso das descrições que aqui fazes... gostei imenso da história... gostei imenso das fotos...

Alberto Oliveira disse...

Assim que li a palavra "FIM", meti os pés a caminho e fui logo à Feira da Luz, que é como quem diz, às fotos. E estava lá tudo: os protagonistas principais da história sentados no banco do jardim (ele sem o cajado por uma questão estética, confidenciou-me a professora de história(s)), a ambiência de uma feira à séria,com as farturas e os churros, a jovem seduzida pelas botas altas, a cigana mascarada de zebra e um cavalo voador. Foi bonito de se ver e... ler.

joaninha disse...

espetacular... PARABÉNS! :)

Teresa Durães disse...

Fim?????

Não!!!!!!!!!!!!!!!!!

(quero mais!!!)

qual fim???? Tens de contar o resto!

(e a introspecção????)


oh Rui! então??????

(bolas, entusiasmamo-nos e ele diz FIM)

tramada contigo-- que eu estou (presente do indicativo) a gostar!

Bom feriado

vida de vidro disse...

Li e reli e estou como a Teresa: quero mais! És um contista nato. Não desperdices esse talento. :)**

APC disse...

Vou dizer-te "tudo", hoje:
Gosto porque me fizeste perguntar a mim mesma de onde te surgiu a ideia pela primeira vez (e algo em mim dizia que tu tinhas que ter estado na Feira e - com um vislumbre do olhar pelos seus cantos e esquinas, sob a dança de sons e cores - descoberto que querias escrever sobre um retalho de vida ali nascido, por ti criado);
Gosto porque o meu projecto literário mais especial se inicia também com um velho e uma mulher mais nova (embora em tudo diferentes, porque com papéis invertidos, classes sociais diametralmente opostas entre eles e num ambiente obscuro, em vésperas de uma grande viagem...);
Gosto porque a mistura que fazes entre a narrativa descritiva e o diálogo das personagens é equilibrada, é verdadeira, é bastante pessoalizada e tudo chega ao nosso olhar num instante, deixando um travo de ternura no palato da alma.
Escreves muito bem, Rui!
Bom... E cá disse eu "tudo", mas só por hoje; amanhã não se sabe! :-)

isabel mendes ferreira disse...

oh Sir___________________tamanha Luz....


nunca assim esquecida.


dentro. bem dentro.


gostei. mesmo. mesmo a ler de post em post...:)))).


olá caranguejo.tb.

Isa e Luis disse...

Olá Rui,

Fantástica a tua historia,

Muita vida muito dialogo:))

Nunca é tarde para recomeçar, e deixar o passado adormecido.

Beijinhos

Isa

segurademim disse...

... fez muito bem em ter confiado!

pensar em nós, viver a aventura que é a vida até ao último momento. triste é deixar correr os dias à espera de nada, vazios

a feira é sempre um lugar de encontros, fascinante

beijo :)

Isabel Magalhães disse...

ontem, depois de ler o fim da história, perdi-me nas fotos da feira e esqueci-me de comentar. :)


vou ser breve...

gostei muito! :)


e fico à espera de mais.




bj

Unknown disse...

Esta história fez-me lembrar os meus avós paternos, tb a minha avó deixou de viver quando o meu avô partiu, remeteu se a um silencio quase total e a um olhar distante, por mais mimos e colinho que eu lhe pedisse ela dava mas nunca mais com o olhar presente. Hoje falei de ti, aliás falámos, eu e a Gina na sessão (1ª) de muitas que vai voltar a fazer, ela tá tristinha acha que tás zngado com ela nunca mais lhe disseste nada. Bjs

Medusa Azul (Zuli) disse...

oh meu deuses... tantas coisas para ler...

:)

Lara disse...

Ao acabar de ler, senti assim um nó cá dentro... um aperto...

só que ás vezes quando olhamos para dentro de nós, sofremos ainda mais.

acabou e agora???
loll
beijooo

Salvador disse...

Adorei amigo

1 abraço

Titá disse...

Voltei com mais disponibilidade para te ler e só consigo dizer uma coisa: Excelente!

Adorei. Um beijo e bom dia!

Luiz Carlos Reis disse...

E a vida continua. Deveras em caminhos tortuosos outras em linha reta e...Porém os obstáculos sempre serão transponíveis, basta querermos. Adorei o texto! Belo e reflexivo!
Abraços do Oficina

marta, a menina do blog disse...

ontem andei perdida. e apaixonei-me pelo jardim das amoreiras. acho que já o tinha visto num sonho.

Isabel disse...

Sublime!
Podemos e devemos esquecernos de olhar para dentro de nós quando nos detemos a olhar para alguem e lhe damos um pouco do nosso amor. Como fez a mulher da tua história que tembem se sentia sozinha mas se esqueceu disso para dar amor ao velhote. Deu-lhe amor sob a forma de atenção, um pouco do seu tempo, e uma simples fartura. Facil não é? assim todos nos lembrassemos de ao menos olhar á nossa volta e ver.
Gosto tanto de como escreves . Gosto tanto de ver com os teus olhos .
Obrigada.
Deixo-te um convite para vires ver com os meus.


Isabel

Teresa Durães disse...

(o que ri com o teu comentário!!!! e as cornetas das feiras???? aquelas que fazem tóóóóóóo´´oóó de plástico???? horríveis!!!! depois andam horas atrás de nós sempre a tocar aquilo. Até que um dos pais não aguenta e (pedagógicamente) diz:
- CHEGA!!!!! NÃO AGUENTO MAIS!!! ISSO VAI PARA O LIXO!!!!!

e vem o choro as lágrimas a birra.

o adulto desiste e volta tudo ao início (até que alguém esconde para a próxima vez))

Bom fim de semana

Margarida Atheling disse...

O valete de paus simbliza mesmo o Lancelot? :)
Até por estas coisas vale a pena "ler-te"!

Beijinhos

a_mais_fixe disse...

Dá realmente vontade de "entrar" nessa feira. Mas o texto está muio bem escrito, por isso se apenas lermos a narração dos acontecimentos parece que conseguimos o mesmo efeito.

Muito engraçado =)

Anónimo disse...

Consegui ler tudo, viste?
Beijinhos e adoro, mas adoro as tuas histórias.

beijinhos

Anónimo disse...

Vivemos para sempre...

Velutha disse...

Passei para te deixar um beijinho e desejar um bom fim de semana.

inBluesY disse...

bem cheguei mesmo no fim :(

Farinho disse...

A sua escrita maravilha-me, é uma boa estória. Há muitas pessoas com máguas escondidas e á espera de serem perdoadas.

Beijocas.

Flor de Tília disse...

Desejo-te um bom domingo. Gostei muito do teu blog.
Um abraço

Sea disse...

:)
bjo

Teresa Durães disse...

fiquei baralhada...

(mas estou em dívida para ler um post cujo email apaguei sem querer.. sorry... envias de novo?)

Dani disse...

Que prazer é, ler-te. Obrigado.

Um abraço

Anónimo disse...

Brilhante como sempre!
É interessante perceber até que ponto podemos deixar passar o tempo sem termos a noção das pequenas coisas, sem percebermos que estamos a margem da realidade...ou pelo menos de pequenos pedaços dela.
E bom parar e observar as pequenas coisas, os pequenos instantes...
As fotos estão fantásticas...;)
Beijos gds

Alberto Oliveira disse...

A Luz

Partiram-se 6 (seis!) interruptores de tanto aqui vir e acender e apagar. De acender e apagar...

APC disse...

Não ligues às bocas da reacção (lol)... O verdadeiro artista faz-se esperar! ;-)))

Anónimo disse...

Não tenho deixado comentários, mas eu passo aqui, ouviste, EU PASSO AQUI!
Bjs.

Isabel disse...

Sem duvida Rui, até vesperas do ultimo suspiro, é por acreditar tanto nisso que dei esse titulo a esta história. A vida pode acabar a qualquer momento mas tambem pode começar de novo a qualquer momento.
Gosto tamto dos teus comentários e das tuas questões como gosto das tuas histórias.

Até breve.

Isabel

Sara MM disse...

um fim bem calminho....... pra variar!!

:oD

BJss*4

Sara MM disse...

um fim calminho.... pra variar!!
:oD

Ahlka disse...

Bonito. Li tudinho, vi tudinho e fico à espera de versão actualizada 'desse tal laçarote' :)

Clara Hall disse...

Um lento e doce exercício introspectivo que deixou o teu velhote muito mais alumiado. Gostei muito desta luz. Parabéns!

:)

Farinho disse...

Rui, há um desafio para si no meu blog, visite-me.

Lara disse...

AIII ainda vamos esperar muito???
:)))

beijos

Anónimo disse...

Bem...vim de lá à procura e encontrei a luz! E que bem limpa está a lâmpada!... :)

vida de vidro disse...

Venho deixar-te um beijo e o desejo de bom fim de semana. Esperando por mais posts... **

Velutha disse...

Meu querido Rui...zito

Regressa Rui. Escreve mais um conto. Não me digas que foste atrás do outro? Por favor, vem fazer-nos companhia.
Beijos

APC disse...

É este sábado... I can feel it! :-)

Farinho disse...

Então quando é que vai alegrar o meu serão com nova escrita?

Fico á espera.

Beijocas.

Kalinka disse...

Passando por aqui, vejo que esteve muito presente na Feira da Luz...este ano estive mesmo com um pé dentro, mas...depois, desisti, não tenho paciência para feiras e confusão de gente.

Gostei das suas histórias, tem o poder de saber relatar todas as situações de forma entusiasmante.
Parabéns.

APC disse...

- Posso oferecer-lhe umas castanhas? :-)

Titá disse...

" Tinha-se esquecido d eolhar para dentro de si..."

Tocou-me esta frase.
Um beijinho

APC disse...

;-)

Alberto Oliveira disse...

... por favor! o último a comentar não apague a luz...

... que eu já me ia queimando no óleo das farturas...

Micas disse...

Depois de uma ausência tecnicamente forçada, lá consegui vir acabar de ler o conto.

Eu diria que pior que a morte é viver morto, e tantas pessoas assim...infelizmente!

Gostei imenso, espero que venham mais destes contos de qualidade. Fico à espera ansiosa.

Beijo

Isabel disse...

Vim dar-te um olá e dizer que te quero ler mais...

Até breve.

Isabel