quinta-feira, outubro 19, 2006

A Luz (parte 4)

Uma miúda pequena, com o cabelo loiro apanhado em dois grandes totós, deu uma dentada numa grande nuvem de algodão doce, ficando com as bochechas cheias de açúcar. Riu-se, denunciando a falta de dois dentes.
Uma senhora de idade olhava com uma expressão interrogativa para um telemóvel, enquanto coçava a cabeça. Ajeitou os óculos no nariz, como se o problema fosse não estar a ver bem.
Um bebé começou a chorar quando o balão que segurava se soltou, partindo na direcção das nuvens, que corriam céleres.
Uma cigana ofereceu uma blusa cheia de palmeiras a uma senhora que não a queria comprar.
Dois rapazes de bicicleta, faziam uma gincana, tentando furar por entre a multidão.
Carregadas com imensos sacos, muitas eram as pessoas que pareciam caminhar sem sentido, como se estivessem perdidas num local que desconheciam.

À sua volta tudo parecia continuar como se nada de estranho se estivesse a passar. Cada qual indiferente à pessoa do lado, aos acontecimentos
Até que, a pouco e pouco, o ruído deu lugar a rumor, depois a um sussurro.
As pessoas deixaram de ter pressa e pararam.
As nuvens perderam velocidade.
Os pássaros pousaram.
As ciganas sentaram-se.
O óleo que fritava farturas deixou de borbulhar.
Os pregões, até então berrados em alta voz, cessaram.

Uma mulher, com um boné velho e gasto, onde ainda se podia ler “queremos mentiras novas”, retirou um lenço branco da mala que trazia ao ombro e começou a acenar com ele.
A atenção de todos concentrou-se no mesmo local.
A Santa entrou no Largo da Luz pela Rua da Fonte, lentamente, mas sem conseguir evitar alguns solavancos. A certa altura, pareceu que ia cair.
Com imensas pessoas à sua frente, o velhote não conseguia ver bem. Pareceu-lhe uma coroa, aquilo que ela trazia na cabeça. Segurava no braço esquerdo uma criança pequena. O Menino Jesus, por certo. Tinha uma expressão serena.
A mulher à sua frente continuava a acenar o lenço mas já não olhava a Santa, tinha até os olhos fechados. Com o corpo curvado e a cabeça baixa, parecia rezar. Naquela posição, parecia que era ela que suportava o peso da imagem que passava.
O velhote conseguiu então ver o cortejo que participava na procissão da Nossa Senhora da Luz.

A última vez que ali tinha estado tinha sido precisamente no dia da procissão. Tentou recordar-se há quantos anos isso tinha sido. Muitos.
Tinha ido acompanhar a mulher, devota da Senhora da Luz, que já estava muito doente nessa altura. Sabiam ambos que já pouco tempo tinha de vida, apesar de nunca terem falado sobre isso.
Ainda hoje achava que todo o esforço que ela fez para estar na procissão, foi para poder encomendar a sua alma, para pedir à Santa que intercedesse por ela junto de Deus.
Depois da morte do único filho no Ultramar, ela nunca mais tinha sido a mesma pessoa. Juntamente com o filho, tinha morrido a sua vontade de viver, a luz que lhe iluminava o rosto a toda a hora, em qualquer situação.
Ele tinha conseguido sentir raiva pela morte do filho, tinha gritado, chorado, dado murros na parede, mas ela não, nunca chorou, nunca desesperou; apenas se deixou ficar, enquanto a vida se escapava de dentro de si.
Nos anos após a morte dela, culpou-se por nunca ter falado com ela, por se ter limitado a assistir, por ter fingido que era assim que as coisas eram…

Foi então que percebeu algo. Sentiu um grande aperto no peito. Quis sair dali imediatamente mas não conseguiu, eram muitas as pessoas à sua volta e ninguém estava interessado nele.

- Por favor, por favor… - ia ele dizendo, tentando que o deixassem passar.

Por fim, a Santa recolheu à igreja e a multidão dispersou rapidamente, voltando à azáfama de há poucos minutos atrás. Dir-se-ia que aquela pausa nunca tinha acontecido, tal era o afã com que compradores e vendedores regressaram às suas tarefas.
O velhote deambulava pelo largo. Parecia perdido, sem atinar com o caminho de volta.
De um pequeno palco improvisado, onde apenas estava um microfone e uma grande coluna, saiu um ronco grave, seguido de um guincho ensurdecedor. Depois estática e, quando o velhote já se afastava, uma música que o fez parar. As palavras eram-lhe familiares.

O destino marca a hora
Pela vida fora
Que havemos de fazer
O que rege a sorte agora
Foi escrito outrora
Logo ao nascer

O relógio marca o tempo de viver
Todos nós somos iguais
Se o destino nos condena
Não vale a pena
Lutarmos mais

E depois conseguiu cantar o resto da letra, para dentro, para si.

O passado nunca volta,
podes crer
O futuro não tem dono
Toda a flor por mais
bonita há-de morrer
Quando chega o seu Outono
Temos hoje p’ra viver toda uma vida
O amanhã, que longe vem!
A saudade está escondida
Num destino por medida
P’ra nós dois e mais ninguém

O relógio marca o tempo de viver...

34 comentários:

Anónimo disse...

Dos mais belos que já li, aqui.

C. J. disse...

Gostodo que escreves e de como descreves cada um de nós, todos. Abraço.

a_mais_fofa disse...

Como sempre escrito duma maneira irresistivel.
Lindo, lindo.

Light disse...

E quanto tempo o tempo tem???
Como sempre...Rui,sem palavras,apenas sensações nas palavras que escreves e onde entrelinhas te leio...

Velutha disse...

Fantástico Rui. E o velhote lá vai continuando.Sem dinheiro mas com gosto por estas andanças. Ao menos valha-lhe isso.
Beijinhos

Isabel disse...

Que bonito... O relogio marca o tempo de viver... os que vão partem para correr e dançar em infinitos campos de girassóis. Do lado de cá nums fica a saudade noutros a mais cruel indiferenca.
Sabes Deus deu-me um dom. Eu vejo quem anda pelo mundo sozinho, vejo quem está triste, quem precisa as vezes apenas de um sorriso.

Um texto maravilhosamente bem escrito e muito, muito comevedor.

Ler-te é bom, bonito, barato e faz bem.

Obrigada.

Isabel

Isabel

Teresa Durães disse...

Gostei imenso! Muito mesmo. (estou arrepiada!)


Entrei na pele do velho e senti o mesmo! Parabéns!

EyeOfHorus disse...

Conseguimos viver uma vida paralela sem que quem nos rodeia tenha noção de que o nosso mundo está ali mesmo, ao lado, sem que a entrada seja visível aos que nos rodeiam. Não há maior solidão do que a que sentimos quando estamos rodeados de caras, braços, sorrisos que nos são caros e de olhares, sempre os olhares que não nos conseguem ver.
Obrigado

Vida disse...

A pior solidão é a interior, mais uma excelente história Rui, comovi-me...sabes uns perdem o sentido de viver com a morte de um filho, outros têm-nos e não querem saber deles, este mundo é muito injusto especialmente com as crianças.

Bom fim de semana para ti.

Isabel Magalhães disse...

............ estamos todos sós no meio da multidão!



gostei de ter passado por cá.

*** I.

Vanda disse...

Quero lá saber dos certificados. Quero lá saber se a casa se valorizou. Gostava de ser feliz!

Respirar fundo!

Abrir os braços e dançar à chuva!

Sentir-me apaixonada e cheia de confiança no presente, futuro e dias vindouros.

Mas como tu sabes "o futuro não tem dono" e só nas canções há "destinos à medida"....


Triste fado.

Acenda-se a luz.

beijo

Van

Alberto Oliveira disse...

Se tu soubesses o bem que me está a fazer este teu conto... Ele faz-me regressar a um passado tão distante mas tão presente que tu nem calculas. Vivi muitos anos na zona de Benfica -ainda nem se falava no estádio da Luz do glorioso como as novas gerações chamam agora ao Benfica referência desportiva da qual o meu falecido era o o sócio 252 (uma capicua, imagina! que não lhe trouxe sorte nenhuma, pois um belo dia ao assistir a um treino, uma bola perdida acertou-lha em cheio na cabeça e foi uma vez marido... ). Mas não quero maçar-te com as minhas desgraças. Se soubesses as vezes que fui à Feira da Luz e as farturas que comi; era sempre uma fartura de farturas. Foi também nessa feira que conheci o meu segundo marido que por sinal era polícia e adepto do Sporting. Mas isso não obstou que fôssemos felizes durante seis maravilhosos meses. Faleceu com um ataque cardíaco enquanto assistia a uma surpreendente derrota dos lagartos perante o Estoril Praia. Foi ainda na Feira da Luz que... Não. Por hoje chega. Só para terminar, não sei como é que adivinhaste, mas o meu cantor preferido sempre foi o Tony. Era o romantismo em figura de gente e tinha aquele tique sedutor de piscar o olho para a plateia feminina. Também um belo dia em que tive a sorte de ficar na primeira fila de um espectáculo em que ele actuou, na Feira Popular e de me piscar o olho. Não casámos mas ele foi à minha frente como os outros...

Ermelinda das Neves.

Anónimo disse...

Brilhante!
Tem uma carga emocional muito grande ou pelo menos assim transmite...
Tem um fado, uma melancolia propria deste país à beira mar plantado...
Muito tocante...

Beijus

P.s. E fique descansado que eu faço um aviso publico quando andar por aí em aulas de volante nas mãos...vou ser um perigo!!!! ;p
Beijinhos aos pequenotes!

Lara disse...

Quero agradecer as tuas palavras no meu blog, numa altura que pensava o ter perdido para sempre.

confesso que não li o texto, mas vou voltar daqui a pouco para faze-lo

beijossssssssss

Isa e Luis disse...

Nós vamos contando...

Bom fim-de-semana!
Luis

Farinho disse...

Lindo o seu cantinho,é a 1ª vez que o visito e estou a adorar. Boa escrita. Beijocas.

919 disse...

o chefe Tuiavii admirava-se pela ousadia do papalagui em querer meter o tempo numa caixinha e cortá-lo aos bocadinhos... e tinha razão, toda a razão!... os relógios até nos fazem pensar que já não temos tempo pra corrigir erros passados!... que estúpidos!

Bandida disse...

Ai, gostei tanto!!!!!......



Abraço!

C. J. disse...

Rui muito pobrigada, no entanto... da trabalho e ja tou atrasada um dia na cultura do país :))))

Micas disse...

Sim, o relógio marca o tempo de viver, mas o tempo não tem qualquer importancia quando os sentimentos e sentires são intemporais...

A tua prosa é brilhante, prende o leitor de início ao fim, bebe-se cada palavra com sofregidão sem se conseguir matar a sede. Gosto imenso de te ler.

Beijos e bom fim de semana :)

segurademim disse...

pois marca!!! será que o tempo do nosso protagonista ainda resiste
nesse destino por medida?

já me estou a afeiçoar a ele

beijo Rui, bom fim-de-semana :)

Anónimo disse...

Excelentes narrativas, voltarei com mais tempo__________Meu rasto,
Cõllybry

APC disse...

A vida dividida em coisas que ganhamos e perdemos e retemos e contamos... Sob o pulsar do gelógio dos dias, o desfolhar do calendários dos anos.
Deambulando vamos, ora felizes, ora aflitos, por vezes loucos. Por vezes parece que o amanhã é longo, outras que o passado o foi. Geralmente é sorrir e pronto, outras não dá, pois dói.
De grande qualidade literária e sensibilidade, o teu texto.
Juro que já nem sei como aqui vim parar, mas também que já não contava dar de caras com um blog assim! Valeu!
Deixo um abraço!:-)

Anónimo disse...

O relógio nunca para e é cruel, e é do contra, e corre quando devia serenar e serena quando devia correr e sim, marca, sem duvida o tempo de viver, deviamos olha-lo mais, ou não o olhar nunca!


=)

Sofia disse...

Tão lindo, tão sentido, tão profundo. E o que nos espera ainda nesta linda historia?

bjs

Sara MM disse...

4 ?!?!?!?!

AI AI...
... lá vai a minha Sombra do Vento ficar prejudicada uma noite destas...


BJs*4

Meia Lua disse...

:) sim, o relógio marca o tempo de viver...
Lindo... lindo.
beijinhos :*

amigona avó e a neta princesa disse...

Lindo... fiquei presa nas palavras e no texto que, apesar de longo, se leu até ao fim... e agora? Saudades...

Anónimo disse...

Beijo

Susie disse...

É a morte consequência do tempo. E disso esquecemo-nos vezes demais.
Um beijo grande.

BlueShell disse...

Só posso agradecer com uma lágrima, sem cor, a tua visita e as tuas palavras.
Mais do que nunca o meu Muito Obrigada!
BShell

Margarida Atheling disse...

:)
Muito bonito e bem escrito. Como sempre!

Beijinhos

Isa e Luis disse...

Olá Rui,

Lindo, uma torrente de sentimentos e emoções.

beijinhos

Isa

Sara MM disse...

a letra da música é tua!?!?!?!? ou era suposto eu conhecer?!? :o/