quarta-feira, outubro 04, 2006

A Luz (parte 2)

Tinha conseguido tornar-se auto-suficiente na “sua aldeia” e já pouco saía da zona histórica. A osteoporose dificultava-lhe os movimentos, tornando os seus passeios pelas redondezas cada vez mais raros. Não lamentava isso, fora dali tudo era confusão, ruído, tudo coisas que lhe faziam mal. E mesmo assim, já ali não tinha a calma de outros tempos, longe disso. Mas naquela tarde, dissolvido na brisa, o doce aroma de farturas tinha vindo buscá-lo.
No quarto, que com a sala e uma pequena casa de banho constituía a sua habitação, sentado na cama, desenrolou um par de meias. Era lá dentro que guardava algum do dinheiro que tinha em casa – guardava-o em três locais distintos: dentro de um plástico enfiado num pacote de arroz e dentro de um dos cinco livros que tinha na sala; nas meias guardava as moedas. Pegou numa moeda de 50 cêntimos; hesitou. Após alguns segundos, acabou por retirar uma segunda moeda. Merecia uma pequena loucura, afinal, há já bastante tempo que não se permitia uma extravagância. Iria comprar meia dúzia de farturas. Certamente aguentariam até ao dia seguinte e ele gostava delas mesmo frias.
Segurou o cajado com um aperto bem forte, aquilo a que se propunha era uma verdadeira aventura.

Percorreu lentamente a Travessa do Pregoeiro e a apertada Azinhaga das Carmelitas. Sabia para onde se dirigir, tinha-se recordado de que Setembro era o mês da Feira da Luz.
Longas filas de carros ocupavam os passeios, obrigando-o a caminhar na estrada. Por mais de uma vez pensou em desistir, tal era a proximidade com que os carros passavam por si. Procuravam um lugar para estacionar que não existia.
A Azinhaga era o limite norte da zona antiga, fazendo fronteira com alguns prédios antigos e com o que restava de uma antiga quinta. Futuro local de construção, pensou.
A custo, chegou ao Largo da Luz. Todos os ossos lhe pareciam doer, cobrando-lhe um elevado preço pela audácia. Parou para recuperar a respiração.
O cheiro a farturas era agora intenso. Estava próximo de concretizar o seu objectivo, mas antes seria preciso vencer aquela multidão irrequieta que se acotovelava à sua frente, criando uma barreira que lhe parecia intransponível. Perto de si, uma cigana gritou a plenos pulmões, assustando-o: - Olhó cd da Floribeeeella!
Firme do seu apoio, atravessou a estrada. Ali estavam elas, farturas! Numa roulotte cuja decoração eram dezenas de pacotes de farinha Branca de Neve e garrafas de óleo Frigi, um individuo anafado, possuidor de uma farfalhudo bigode que lhe escondia a boca, virava uma espiral de massa frita dentro do que lhe pareceu um grande alguidar metálico. Guardou alguma distância, encostado a um poste de electricidade, onde se sentiu mais seguro. Ficou a observar, a admirar cada gesto do homem que, manejando dois longos espetos com movimentos rápidos, passou a massa já frita a uma rapariga. Por sua vez, esta, demonstrando longa prática no uso da tesoura, cortou a massa em pedaços de igual tamanho e rebolou-os numa mistura de açúcar e canela.
As farturas pareciam-lhe iguais às de sempre, mas tudo o resto o fez sentir deslocado. No seu tempo não havia roulottes daquelas, com luzes em forma de letras que acendiam e apagavam mesmo de dia, não eram raparigas que vendiam farturas, não havia farturas recheadas. Que diabo, parecia-lhe até que no seu tempo as farturas não levavam canela, apenas açúcar.
Tentava decidir se gostaria mais delas com ou sem canela quando uma voz rouca o fez regressar à feira.

- Oh avozinho, não tenha medo que aqui ninguém lhe faz mal. Compre destas que estão quentes. – Disse-lhe o homem das farturas, sem que se visse qualquer movimento da sua boca. Parecia usar os olhos para falar.

Aproximou-se, retirando as duas moedas do bolso.

- Quantas são? – Perguntou-lhe a rapariga, apressada.
- Quantas compro com isto?
- 1 Euro? Ora, compra uma.

Sentiu um grande calor vindo do alguidar onde mais farturas fritavam. O cheiro delas, que antes lhe tinha chegado doce e suave, parecia-lhe agora estar queimado, saturando-lhe as vias respiratórias. O barulho que o envolvia aumentou subitamente dentro da sua cabeça. Um rapaz muito alto, com o cabelo cortado à escovinha e com uns óculos de lentes grossíssimas, deu-lhe um encontrão, quase fazendo com que deixasse cair as moedas. Alguém gritou por um megafone que era tudo a 5 Euros.

- Como é que é, quer a fartura ou não? – Não havia clientes para atender, mas a rapariga continuava com pressa.
- Não… afinal não quero. – Respondeu num murmúrio o velhote.

39 comentários:

Isa disse...

ohhhhhh. coitadinho do senhor...

Sofia disse...

:((( tadinho do velhinho. manda-o lá outra vez, eu pago-lhe a meia duzia!

Mipo disse...

oh pá... que aperto cá dentro... não lhe podes dar uma alegriazinha?...

Alberto Oliveira disse...

Onde o nosso herói se foi meter...

De cajado ao encontro da modernidade... com "Floribela" incluida no pacote da viagem.

Estava eu a sair deste segundo episódio e ainda o ouvi a cantarolar

nunca tal ouvi chamar
o nome de Floribela
por isso não vou comprar
a fartura com canela...


depois, desapareceu do meu horizonte...

Isabel disse...

Ai que não foi possivel evitar as lágrimas.
Sabes curiosamente fez-me lembrar uma anedota que devia ter graça e sempre me fez chorar. E assim:

Numa escola de meninos ricos havia um único menino que era pobre.
Todos os dias o professor perguntava aos meninos o que tinham comido no dia anterior, e todos os meninos tinham comido as mais deliciosas refeicões, apenas o menino pobre todos os dias respondia: uma tigelinha de sopa Sr. Professor.
Todos os outros meninos se escangalhavam a rir.
Certo dia o menino estava tão triste que contou isto ao pai.
O pai aconselhou-o: Ai é meu filho, então amanhã quando o professor perguntar o mesmo tu respondes que comeste lagosta.
O menino não se esqueceu.
Quando no dia seguinte o professor perguntou: então e tu que jantaste ontem?
O menino responder: Lagosta Sr. Professor
O professor descrente continuou:
Ah sim então e comeste muita?
E o menino respondeu: três tigelinhas Sr. Professor.

Sempre a maldita anedota me faz vir as lágrimas aos olhos. O menino não conhecia outra medida senão a tigelinha... isto é pobreza!

Gosto tanto das tuas histórias.

Vem ao meu sitio ler um pouco de Ruy Belo e de "A Margem da alegria"

Isabel

Anónimo disse...

Hoje deixo-te quatro beijos.
Divide-os lá por casa

GNM disse...

Caro Rui,
A tua escrita está cada vez mais refinada, deslizante...
Isto não é um elogio de cortezia, nem muito menos um exercício de troca de elogio mutuo, tão comum pela blogosfera.
É realmente um prazer ler-te.

mixtu disse...

eu já venho, pois tenho que ler a primeira parte...
até já

mixtu disse...

um "éro"?
é capaz... mas é caro, 200 paus, a verdade é que a última deu-me uma mal estar... estava muito quente

ummm... mas isto onde vai parar, tadinho do velhinho... será?

abraços monárquicos, pois só eu e tu é que somos pela monarquia nesta blogg... yayaya

Rui disse...

Mixtu, logo na véspera?

Viva a República!! :)

Sea disse...

A ti :) leio-te.
Beijo

Ahlka disse...

Quase uma epopeia para alcançar um sonho que afinal não existe....
Gostei, a singeleza dos pormenores torna o texto rico :)

Vida disse...

Há tantos anos que não como farturas que se calhar me vai acontecer o mesmo... já não sabem tão bem afinal...
Adorei mais este teu conto, mas vou voltar para pôr em dia a minha leitura e tenho de dizer-te que adorei as tuas fotos, és um artista.

Bom feriado e beijinhos.

Velutha disse...

Ai amigo, estas histórias enchem-me os olhos de lágrimas. E não contas histórias de faca e alguidar. Contas histórias da vida em que os protagonistas são os nossos velhos. Uma vida a trabalhar, reformas que não são fartura que quase não dão para uma pequena extravagância mesmo depois de uma caminhada longa, difícil e dolorosa.
Gostava de lhe comprar meia dúzia de farturas " charingos" como lhes chamava a minha avó algarvia, mas estou longe.
Para estes velhos, os nossos, deixo meia dúzia de beijos com açúcar e canela.
Para ti Rui... um beijão

Gina disse...

Ruizito!

Tocas a nossa realidade tal como ela é, os promenores, levam-nos a sentir junto do pobre velhinho, e sentir pena dele, não dele mas do sistema em ke estamos inseridos e onde os idosos tem de contar tostão a tostão, sorry, euro a euro, pelo menos a maioria deles.
Beijinhos saudosos

Salvador disse...

Leio-te, ainda bem

1 abraço

Anónimo disse...

o erotismo é a arte dos corpos em encaixe
o erotismo é a arte do amor desenhado numa tela
com sabor a pele e línguas.

o erotismo desenha-se sem lápis
nem caneta
nem sequer precisa de teclado

o erotismo pinta-se suavemente
com um pincel macio no teu corpo
em arabescos de descoberta

o erotismo fotografa-se cuidadosamente
no meu corpo
sem lentes nem técnicas de luz
surge em imagens no teu olhar

o erotismo é o meu sorriso feliz
aberto no corpo que te ofereço
é o meu cabelo cor de fogo
que beija o teu corpo em chamas
é um suspiro em espiral
que te faz desejar a próxima vez...

Bom Fim de Semana.....Kissesss By Pequenita :o)

Anónimo disse...

A curiosidade do final

segurademim disse...

... de repente:
- olá, por aqui? uma voz calorosa e um largo sorriso, cumprimentavam-no. sorriu também
- têm bom aspecto as farturas, não têm? sim, parecem excelentes, respondeu timidamente
- sente-se aqui ao pé de nós, prove das nossas! quer um cálice de moscatel? olhou encantado

seria milagre?

beijo :)

Light disse...

E vendo a cena de perto e apreciando de longe,chegaria eu perto do velhote que em tempos comeria a fartura sem hesitar e oferecia-lhe uma para lhe lembrar os velhos tempos,sem pressas e com um sorriso nos labios....so por me fazer lembrar alguem

919 disse...

Tentarmos reviver um passado feliz é candidatarmo-nos ao maior balde de água fria.

Dani disse...

É um roubo! E logo eu que gosto tanto de farturas...

Ana disse...

Quem consegue resistir a uma fartura quentinha a cheirar a açúcar e canela? :-(

Sara MM disse...

ai ai...
o pior é que não é só livros que eu não leio.... mas A Luz espera por mim, né!?! hei-de lê-la!!

Bjss

Teresa Durães disse...

consigo compreendê-lo... comigo passa-se o mesmo e não sou velhinha....

as farturas que eram de um modo para além de serem um roubo agora são redondas, aos quadrados, às cores....

tiram a vontade e o prazer das memórias

boa noite

Sea disse...

:) beijo

Vanda disse...

Já não há farturas como antigamente :)

Sara MM disse...

ooohh... tadinho.. até me deu um aperto no coração...




mas afinal sempre estamos em Setembro! :oD




é verdade Sr. valhote... concordo consigo... até no meu tempo só tinham açúcar!! e nada de churros, farturas mesmo!!




BJss
PS- opior são as roullotes das festas de Viana, que mantém as luzes acesas durante o foguetório/cascata e prejudicam imenso!!!

Anónimo disse...

Acho que consigo compreender o velhote: não era das farturas que estava à procura, era dos tempos idos...e não os encontrou.

alice disse...

querido rui,

estás a escrever, a meu ver, uma brilhante crónica social, crias uma história com personagens para falar da vida, descrever os factos mais simples e que mais significado lhe dão, quantos velhotes há neste país que não podem comprar uma simples fartura, parabéns, meu amigo, estou a gostar imenso deste relato

um grande beijinho

alice

Anónimo disse...

Como diria o outro: A vida está dificil....!
Tempos nada faceis, verdade cruel de muitos...
As tuas descrições continuam a fazer-me confusão de tão...tão...
;) Beijos

Sara MM disse...

tá visto que não ajudáste a descozer as etiquitas das 1as roupinhas dos teus gaiatos :oD

A disse...

Bem... não sei se é de mim que estou muito sensível mas o certo é que senti um aperto enorme no peito ao ler isto... deixou-me triste, como sempre que fico quando reparo que os nossos velhos são tão maltratados e a vida passa por eles e tudo passa por eles e o que resta na maior parte das vezes é uma infinita tristeza... e as memórias...

No fundo, a realidade.

Bravo Rui... mesmo a sério. Adorei, como sempre adoro tudo o que desperta em mim algum tipo de felicidade ou tristeza.

Ainda que não assiduamente, tudo o que escreves é magnífico. (Devias ser publicado raios!)

Beijos

A disse...

P.S.: Não como farturas há muito tempo, mas as que costumava comer na feira lá da minha terra só levavam açúcar :)

Saudades de comer farturas, agora.

Isa e Luis disse...

Olá,

a fartura deixou de ter importancia, quando notou que já não havia a delicadeza de outros tempos.

Gosto muito de te ler.


beijos

Isa

Anónimo disse...

Rui, dei um pulo para me pôr a par de tudo... já reparei que tenho muito para ler! Can´t wait. Será a leitura de hoje à noitinha! Beijos

Anónimo disse...

Rui, só tu para criares um herói que não é belo, jovem, cheio de vitalidade, um herói que a partida não venderia, um herói que foge aos estereótipos do perfeito, um herói... que é mais de carne e osso do que heróico de facto.

O que nos faz pensar... podemos não ser assim, alguns de nós não chegaremos a sê-lo, mas há sempre a hipótese, do encontrar esse personagem em nós... de encontrar a hipótese desse personagem.

=)

Anónimo disse...

Os teus contos põem-me com uma curiosidade....
Mas mesmo que te diga que só os leio no fim, não consigo, tenho que ler cada capítulo e depois fico aqui,....á espera que te resolvas a continuar.
Não demores
Beijos

Muaméme disse...

Excelente ponto de encontro onde as vivências se personificam nas personagens retratadas, já fazia parte dos meus favoritos, mas ainda não tinha assinalado a minha presença...

Tenho gostado e por aqui andarei...