segunda-feira, agosto 28, 2006

O Guardador

Inconscientemente, passou a mão direita pela cicatriz. Não era muito grande, aliás, estava até longe de ser a maior que tinha, mas era aquela que tinha sarado com mais dificuldade e, após tantos anos, a cicatriz onde continuava a sentir um inexplicável formigueiro.
Nunca tinha comentado isso com ninguém, tão estranho lhe parecia sentir hoje dores do passado. Mas, certo dia, ouviu comentar no estaleiro das obras que não era raro as pessoas que tinham tido membros amputados sentirem comichão nessas partes que de si já não eram. De alguma maneira, isso confortou-o, sem que jamais fosse esquecer a impressão que lhe deixou a ideia de perder um braço ou uma perna.

Era garoto quando fez aquele risco no braço, como ele dizia. Corria atrás de uma das ovelhas que estavam a seu cargo, lá para as Terras do Demo, quando, ao tentar cortar o caminho ao animal, saltou umas silvas e se arranhou no braço esquerdo. Na altura nem deu por isso, tão grande era a preocupação em não deixar fugir o bicho – sabia os problemas que teria com o seu pai, caso tal sucedesse. Depois, foi deixando andar, como fazia com todas as feridas que fazia durante as brincadeiras inventadas com que ocupava os dias.
Transformava as ovelhas e cabras em exércitos invasores e, de cajado na mão, escondia-se atrás das grandes pedras que enchiam a paisagem investindo contra o rebanho, vivendo a valer a fantasia de um miúdo que vivia os dias sozinho. Os animais fugiam em todas as direcções e ele, subindo à maior das pedras, erguia o cajado e ria, ria muito, e gritava a plenos pulmões, fechando os olhos quando o eco lhe devolvia o grito, que eram agora o grito vitorioso do seu exército.
Hoje, ao recordar-se, não sorria. Afagar as memórias do que tinha sido era tudo o que conseguia fazer.

Arrancou os olhos do chão e mirou os animais que, em seu redor, desesperançadamente procuravam o que comer naquele chão quente e ressequido de final de verão.
Num breve instante percebeu que estavam todos. Apesar de serem cerca de duas dúzias de ovelhas e oito cabras, em poucos segundos sabia dizer se estavam todos ou não. O cão que o acompanhava, deitado a seus pés, bocejou sem abrir os olhos e continuou a dormir. Também ele sabia que estava tudo bem.
Alheado do barulho ensurdecedor do trânsito automóvel e dos guinchos agudos das máquinas das obras que deitavam casas clandestinas abaixo, voltou a descansar os olhos na terra e a mente no passado. Ausentando-se dali, devolveu-se à paisagem da sua infância, à sua aldeia, ao seu anterior rebanho.

Este regresso ao passado acontecia-lhe com frequência desde que a mulher do senhor Engenheiro Carvalho lhe tinha falado em alguém que já tinha morrido há muitos anos, num músico importante com um nome esquisito: Sergei Prokofiev.
Disse-lhe ela que se tinha lembrado deste senhor ao vê-lo ali, todos os dias, a tomar conta de um rebanho no meio da cidade. É que esse tal senhor tinha feito uma música para contar a história de um rapaz chamado Pedro que vivia num bosque e que, um dia, contrariando os avisos do avô, tinha entrado num bosque onde vivia um lobo esfomeado. Falou-lhe a mulher do senhor Engenheiro Carvalho de um pássaro, de um gato e de um pato, e de como o lobo tinha comido o pato e de como o rapaz tinha conseguido atar o lobo, antes que este o comesse também a ele. Disse-lhe ela também que lhe parecia que aquele rapaz, vindo da sua aldeia para o bosque que desconhecia, ao contrário de Pedro, não tinha sido capaz de vencer o seu lobo, que era o lobo que o mantinha laçado.
A princípio, ele achou tudo aquilo muito estranho e não ligou, mas começava agora a perceber o que a mulher do senhor Engenheiro Carvalho lhe quis dizer. Sim, que se sentia preso a si próprio naquela cidade; sim, que ali não tinha ainda sido feliz; sim, que o seu pai o tinha mandado para ali para o seu bem, mas que, talvez, o seu pai não soubesse o que era melhor para ele. Afinal, continuava a fazer o que sempre tinha feito, apenas o fazia agora num sitio mais feio, num sitio pior.
E depois lembrou-se de uma outra história, de um outro nome estranho de que a mulher do senhor Engenheiro Carvalho lhe tinha falado: Esopo e de uma das suas muitas fábulas que também falava de um rapaz e de um lobo. Mas, nesse preciso momento, o cão ladrou com vigor: uma das ovelhas tinha-se afastado até à vedação do estaleiro das obras.
O rapaz, que era agora um homem, levantou-se, apoiado no cajado, saindo da sombra do muro traseiro do cemitério de Benfica. Desceu a pequena encosta onde os animais pastavam, observando as várias máquinas que, do outro lado da estrada, derrubavam casebres mal amanhados, abrindo assim espaço para, em breve, ali passar uma grande estrada. O trânsito tornava-se mais difícil a cada minuto que passava naquele quente final de tarde. De dentro dos carros parados, as habituais expressões de espanto ao ver um rebanho a pastar no meio da cidade.

Guardava animais e as coisas da vida: sim, precisava pensar na outra história e em laçar o seu lobo.

40 comentários:

919 disse...

Muito contente por estares de volta (lamento o egoísmo). E entras, ou melhor, reentras com uma história que bate fundo, faz pensar... pensar muito... será que a dor do membro fantasma também é fantasma?

crispipe disse...

Guardador de sonhos pois então.
Jokinhas

Teresa Durães disse...

(já venho ler... tenho de ir trab, bem vindo!!!)

Dani disse...

Nem sei que diga após ler este teu texto. Talvez apenas, que conheço uma pastora que alterou um pouco o rumo dos acontecimentos e é um pouco mais feliz, mas sem nunca ter deixado de ter que trabalhar muito.

Um abraço

Alberto Oliveira disse...

... inconscientemente passou a mão pelo queixo. Tinha de mudar de lâmina de barbear, pois que há cerca de um mês que usava a mesma e os golpes multiplicavam-se e já nem reconhecia a sua cara...

(pretexto para fazer tempo até um tempinho para ler o texto e comentá-lo "à séria"?!... )

Mipo disse...

por fim o regresso! :-)

Gina disse...

Bem regressado amiguito!
Também já regressei, ao trabalho pois tá claro...
Vou ler-te mais logo, beijinhos para ti e para e para a familia, espero ke tenhas recuperado as forças

M.M. disse...

Por onde andais?

Maria Liberdade disse...

Ás vezes o lobo a laçar somos nós próprios. E esse é o mais dificil. Como conhece os nossos pensamentos, quando estamos quase... foge.

Unknown disse...

Mas que belo regresso, como sempre com uma bela história que nos dá que pensar.

Teresa Durães disse...

Já li! Há tanta gente assim. Por aqui (capital) que veio em busca do sonho de alguém (ou do seu próprio) e encara a amarga desilusão de uma cidade que nada trás, nada dá excepto correria, barulho e betão.

Gostei do que li. Bom regresso. Fico feliz em te ler de novo.

Anónimo disse...

Olá Rui! Que bom te ter de volta! Estava com saudade dos seus contos, maravilhosos contos! Sabe que a minha falecida avó não tinha uma perna, mas mesmo assim a sentia, com dores e tudo? Coisas estranhas, mas absolutamete possíveis!
Descansou bastante nas férias?
Preciso mesmo de uma Vodka pra esquentar a minha vida, viu?

Bjo

naturalissima disse...

Olá Rui

Pela tua mão vim cá parar e não estou arrependida. Obrigada, por me convidares a conhecer o teu espaço.
Para além de escreveres espantosamente bem, fiquei de boca aberta com as tuas fotografias lindissimas.

Vou agora ver melhor, com mais atenção, os teus trabalhos escritos e fotograficos...
Tenho a certeza que irei aprender muito contigo.

As histórias são belas de se lêr...
Um beijo
Daniela

Paulo disse...

Obrigado pela visita. Acontece só a ti certamente, outra queixa não foi apresentada.
Abraço
Paulo

Paulo disse...

«guardava animais» ......entre itinerários urbanos reais e encruzilhadas de recoradações rurais da infância. Talvez agora com um formigueiro no estâmago... tradução da ansiedade que o dilema lhe deixara.
Nesta inadaptação, talvez agora o adulto, a quem a infância incendiaram com rebanos de ovelhas e cabras, venha a morrer na rua e dê por ele derrepente, em noite fria e sem luar, deitado nas pedras da rua pisadas por toda a gente.
Ou pode até vir a morrer na praia, cercado em pérfido banho por toda a espuma da praia...assim como um pastor que desmaia no meio do seu REBANHO...mas que ao menos tenha encontrado o arco-íres da infância agora debotado por as cores "mortas" da cidade...

Vou voltar sempre...pois, se refletir bem, estas histórias são "anologias" de nós....

Um grande abraço.
Paulo

Meia Lua disse...

:) todos nós temos um lobo em algum lugar que um dia devemos laçar... mas só quando estivermos preparados ;*

Sea disse...

Já estava a sentir falta destes post :)
beijo

Anónimo disse...

Hmmmm estou a ver que o verão trouxe a vontade de escrever e a criatividade de volta aqui ao nosso Rui! Mais uma vez um grande começo...
Espero que as férias tenham sido boas e que esteja td bom com os pequenotes!
Beijos

Anónimo disse...

perfeito*
vou ficar viciada neste blog.

beijo

virilão disse...

Ó rapazinho...onde é que eu me inscrevo para ser teu fã oficial?

Tu lembras-te de cada coisa!

Continuo a dizer-te: as televisões portuguesas precisam de gente assim, acreditas?

Anónimo disse...

BONITO ;-)esta tua facilidade de escrever fascina a todos.
Beijinhos Rui.

Anónimo disse...

Que regresso! Obrigado pela imagem, obrigado pelas palavras certas, obrigado pela viagem, pela articulação. Que te dizer mais? Já to disse.
Um abraço

LUA DE LOBOS disse...

quando pensas em publicar???
xi de quem tira um prazer imenso a ler o que escreves
maria de são pedro

Luiz Carlos Reis disse...

Nesse universo blogueiro deparei-me aqui em tão prazeirosa leitura. Bela cronica campeira!
Abraços, voltarei se não se importas!

Anónimo disse...

Estive a ler as tuas histórias e os cliks de agosto. Encontro uma relação entre ambas ... é como um fio uma extensão.

Parabens.

Flor de Tília disse...

Rui...zito!

Escreves tão bem! É um prazer enorme e uma emoção ler a tua escrita.Com que então disse-te a mulher do senhor engenheiro que estavas preso ao lobo!Quantos de nós ficamos para sempre laçados ao nosso lobo. Também eu, tal como tu, só me sinto bem debaixo destas árvores centenárias, a ver as ovelhas, as cabras, os cordeiros...
mas temos de ter cuidado com o lobo. Nunca se sabe quando é que ele vem. Esopo e La Fontaine percebiam da cepa e alertaram-nos para esses perigos em que os leões, as raposas e os lobos comem os cordeiros, os porquinhos,os coelhinhos ( os que ainda estão na idade da inocência e não só) e não devemos esquecer isto antes que nos deixem amputados ou nos devorem.
Publica, Rui! Esta amiga compra logo.Fica fascinada com o que escreves.
Beijinhos e muitos

Alberto Oliveira disse...

... passou uma vez mais a mão pela cara, pensativo. Era estranho como as coisas se entrelaçavam; ali estava ele, quase a regressar a casa depois de terminadas as cerimónias do funeral do amigo e do outro lado da estrada, numa fatia de mundo que não pertencia a esta cidade, um pastor e o seu rebanho. O amigo morto (de quem não tivera notícia durante anos) acabava de ser entregue à terra no emitério de Benfica (só de ouvir este nome, dava-lhe um tal formigueiro no corpo!) e o pastor que não conhecia de parte alguma, ali apascentava belas ovelhas, que algumas delas bem temperadinhas, dariam uma bela refeição.
Seria que o destino empurrava ambos para um jantar que não ficava próximo da Igreja de Benfica?!

Martini_Lady disse...

Welcome back! Já sentia falta da leitura :)
Vai ter continuação, não vai?
Bjnhs

vida de vidro disse...

Ler-te é sempre razão de encantamento. Tens imaginação, sentido poético e crias situações inesperadas. Tudo o que se exige de um contador de estórias. Muito bom. **

Salvador disse...

Bem vindo amigo
agora vou eu
Deixo-te o mar...

Ana P. disse...

Consigo comentar, ufa, andei a tentar, a tentar....

Como sempre, adoro o que escreves, fã incondicional e nº 1.

Beijos

alice disse...

querido rui,

muito obrigada pela tua visita

já tinha lido o teu post e automaticamente pensei naquele citação maravilhosa do guardador de rebanhos que guarda os seus pensamentos... e adorei ;)

um grande beijinho para ti

alice

Sara MM disse...

Fizeste-me recordar os pastores que eu via diariamente... a caminho da escola ou do alto da minha "prateleira"... em terrenos que hoje não são o que eram... em terrenos que nunca mais serão o que foram...

É fácil saber o que pensa o Sr. Cristóvão, o novo dono desses terrenos... o que não esconde nada... e que vive porque explora todos...

Mas nunca saberemos o que pensavam os pastores... os que ali faziam vida... sobreviviam à sua maneira... recordavam as suas coisas... em segredo... pra sempre...


BJss
já tá gigante, o pequeno?

Llyrnion disse...

Mts de nós nem precisam de lobos. Temos uma perícia fabulosa em atarmo-nos a nós próprios, quais Houdinis invertidos...

Bem, "invertidos", salvo seja :)

Um abraço!

Anónimo disse...

Gosto de vir aqui, apanhar boleia da tua imaginação...

Teresa Durães disse...

(fica a memória)

segurademim disse...

tenho umas pintas, no braço esquerdo, marcas de uma infância feliz e descontraída... tanto, que a cabeça no ar não dava para ver, arame farpado ou lobos maus (que os havia) no caminho...

pintas que estavam esquecidas

distraída, continua sem dar pelos
formigueiros

beijo Rui, bom regresso sê mt bem-vindo :)

Clara Hall disse...

Caro Rui

Vim atrás da ave, mas não para espantar as ovelhas. Gostei mesmo de ler sobre o pastor nostálgico que ainda não conseguiu laçar o lobo. Às vezes é difícil dar laçadas por cima de nós górdios.
Memórias. Costumo afagar as boas e rir-me das más. É uma estratégia...

Boa Noite. :)

rafaela disse...

Todas as cicatrizes são isso, são passado, e todos os passados são membros, que amputamos e que as vezes pensamos sentir.

Lindissima esta história Rui, esse optimismo de laçar a vida como se laça um lobo.
=)

Sofia disse...

Adorei Rui. Já tinha saudades dos teus post. Aproveita as férias para te inspirares.

Beijos