Levantei-me de um pulo. Estava a dormir profundamente mas, quando os meus pés tocaram na alcatifa, sentia-me totalmente desperto.
Peguei na mochila onde transportava o material fotográfico, na carteira e preparava-me para juntar a roupa, que estava espalhada pelo chão, para fugir quando reparei em Leonor, parada em frente à porta envidraçada que dava acesso a uma pequena varanda. Estava estranhamente calma.
- Pensei que o incêndio era aqui, na Pensão. Assustaste-me.
- Não tonto, na rua.
O jornalista que há em mim assumiu o comando.
- Vou lá ver. Pode ser uma notícia e notícia com imagens vale mais.
- Vou contigo.
O caminho foi feito em passo estugado. Sentia-me cheio de energia, entusiasmado. De mão dada, quase corríamos.
Aproximamo-nos da igreja pelas traseiras; o incêndio era mesmo no adro, do outro lado do edifício. As sombras e os reflexos das chamas reflectiam-se nas casas vizinhas. Detivemo-nos.
As pessoas – na maioria mulheres idosas que, em silêncio, pareciam rezar - contemplavam uma enorme fogueira que ardia com alguma violência, projectando altas labaredas na direcção do céu onde, em quarto crescente, a lua parecia apreciar a cena.
Troquei um olhar com Leonor, também ela não compreendia o que estava perante nós.
Instintivamente, tirei a câmera fotográfica da mochila, ajustei a exposição, a velocidade de obturação, encostei-a à cara e pousei o dedo indicador direito no botão de disparo. Não consegui, não tinha força no dedo. Senti estar a invadir algo a que eu não pertencia, algo que não compreendia. Não fui capaz de fotografar.
Leonor pegou-me na mão e levou-me até junto de uma idosa, toda vestida de preto que, mais afastada do círculo de pessoas, observava as chamas. Estas, reflectidas no seu rosto, davam vida às rugas profundas de uma vida vivida. Havia dor naquela expressão de pedra. Os olhos pareciam deitar fogo e não absorvê-lo.
- A senhora desculpe, mas pode explicar-nos o que se passa aqui? – Leonor apertava-me a mão com força, num misto de medo e atracção por aquela figura.
- Não sabem que dia é hoje? – Respondeu ela num tom de voz calmo, sem tirar os olhos do fogo.
- Hoje… não… quer dizer, para além de ser 16 de Junho?
- Não sabem da lenda da Nossa Senhora do Carmo…
- Não.
- Eu conto-vos, é importante ficarem a conhecê-la. – Eu sentia dificuldade em me concentrar, sentia o calor da fogueira queimar-me o rosto. A mulher contou-nos então a lenda.
Dos barcos no mar alto, os pescadores viram a luz distante e a imagem de Nossa Senhora do Carmo, que os acompanhou até chegarem sãos e salvos a terra firme. Tudo isto se terá passado num dia 16 de Junho, e até hoje faz-se anualmente a fogueira no adro da igreja, honrando a sua padroeira. É também o ponto mais alto dos festejos da Fuzeta, que decorrem de 1 a 17 de Junho.
- É mais do que isso. – A mulher mantinha o olhar fixo no fogo. Nós nada dissemos, ambos olhávamos na mesma direcção que ela, tentando perceber o que via. – Não é para o fogo que olho, é para o mar, ao fundo. Perdi para ele o meu homem há muito tempo e todos os anos, neste dia, venho aqui na esperança que ele, onde quer que esteja, veja o lume. Me veja a mim, que nunca o esqueci.
- Posso tirar-lhe uma fotografia? – Disse-lhe eu, não dando importância ao que ela dizia.
- Não adianta. De mim nada ficará.
Peguei de novo na câmera. Olhei para o lado mas a velhota já lá não estava, tinha desaparecido.
Retirei o texto da lenda daqui - de tão bem resumido, não consegui resumir mais.
36 comentários:
Inesperado, como sempre...
Belamente escrito, como sempre...
Não tem piada comentar. O bom é mesmo vir cá ler-te.
Beijos
Excelente como sempre. Mas diz, e quem era essa velha misteriosa, a mãe????
bj
Esta muito bonito!
bjos
As lendas tem sempre algo de verdade e ao mesmo tempo estão cercadas de magia
beijos
As lendas tem sempre algo de verdade e ao mesmo tempo estão cercadas de magia
beijos
Lindo para ñ variar =)
Sorrisos e beijos
Uau! Está a ficar cada vez mais interessante!
muito bonito mesmo... bjs
Aha! Não conheces, não estiveste lá, mas tão-pouco inventas. Investigas!!!
Enganaste-me com o incendio, és imprevisivel
Continua assim
Continuo a ler e a esperar o proximo.
=)
Lá está ele com o to be continued...irra! Anyway...
Fazes me voltar ao meu algarve de que tenho tantas saudades, tive vontade de por as tralhas na moxila e zarpar...
Ai ai ai!
Beijos
..."não adianta. De mim nada ficará"
Registei esta frase.
A ler-te sempre, sem comentários :)
de facto, que capacidade heim !? e aqui fico sentada aguardando o próximo capítulo mui bien ... :)
e a frase q a Sea refere de facto *****
bjs
Rui,
Quanto à maratona já vais atraso :D
Ve la se apareces!!! Conheco malta que foi e diz que o ano passado foi curtido :D
Beijos
P.s. Axo que as incrições são ate 14 no ipj ou que é e até hoje na APAF.
Beijos
Adoro vir aqui... é sempre uma surpresa, e ainda bem. Meu amigo, não posso deixar de te dar os parabéns, excelentes todos os teus textos, mas estes últimos... tem sido espectaculares. Melhores que os de muitos escritores modernos.
Continua.
ainda bem que estava resumido
:)
que hei-de dizer...lindo como é o habito
*beijo grande*
querido rui,
obrigada pela tua visita
sabes, é mesmo bom acabar a semana com a promessa de continuidade do teu conto durante a próxima...
desejo-te um óptimo fim de semana
um grande beijinho,
alice
Excelente!
tenho-me guardado os meus comentários, porque "sabia" que iria ter um final que ia me surprender e não me enganei ;-)
Bjs e Bom fds.
...por momentos assustei-me! pensei que fossem os registos da igreja que estivessem a arder! nas igrejas guardam-se descrições muito importantes das pessoas da paróquia.
Talvez o João e a Leonor lá consigam algo do que procuram...
beijo, bom fim-de-semana
Arrepiante... é uma história fantástica...
Adorei passar por aqui
Era a Nossa Senhora do Carmo em pele e osso... ao vivo e a cores...!!!??!?!?!?!???
BJss
Socorro... :S
Tanto tempo sem cá vir!
Hoje leio 8 posts de enfiada e acabo com o formigueiro de ter de esperar até para a semana para ler a continuação!!!
Não se faz, pa! :P
Beijo
P.S. - Continuas a surpreender-me :)
uma velha, que deita fogo pelos olhos, um dragão intemporal... sim, é bom que ele se encontre primeiro e às respostas depois... (no meio disto tudo, parece-me é que o João vai encontrar a Grande Avó...)
...o bacalhau está a ser bem cozinhado! ;)
Mais uma vez a ler-te :)
e agora? Ai nossa Senhora do Carmo nos valha...
Rui, enquanto estas "com o rabo de molho", toma lá uma beijoka que bem mereces! :=)
Quem me dera acreditar em milagres! Talvez se acreditasse eles acontecessem mesmo!
Escreves muito bem!
Gostei bastante do que li!
Fica bem!
muito bom!!
as Mais fazem anos!!! vai ao nosso bog e habilita t a 1fantastico prémio!!
Percebi perfeitamente o resumo da lenda. Está muito bem sintetizado, embora não me tenha queimado... A ti,pelo contrário, na tua busca incessante de respostas, tudo te acontece... em sonhos. Depois de quase te teres afogado, agora o fogo quase te chamusca. Os elementos não te largam e nem quero fazer futurologia sobre o que te acontecerá com a... terra.
Venha o 8!
Venha o oito!
:o)
A vida continua demorada...
bom dia, rui ;)
como estás?
desejo-te uma boa semana e aguardo a continuação...
um grande beijinho,
alice
Já vi que tenho muito que ler por aqui! Ainda bem! :)
Beijinhos
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