A passagem por baixo do arco da Rua dos Sapateiros, entrando no Rossio, fez com que o piloto automático que o guiava pelas ruas da Baixa há mais de uma hora, se desligasse. Uma espécie de relatório em que se resumia as tarefas ainda por completar, produziu-se no seu cérebro:
- tomar a direcção da Rua do Carmo;
- subir até aos Armazéns do Chiado;
- FNAC;
- procurar livros de banda desenhada;
- sentar e ler;
- comer qualquer coisa;
- decidir o que fazer com a tarde.
Mirou - pelo canto do olho, não fosse alguém reparar nele - as propostas da Ana Salazar para a época Outono-Inverno que se aproximava e achou tudo muito escuro e pesado.
Mais acima, não resistiu a uma observação menos discreta das propostas da H&M. Não há nada como a época Primavera-Verão, pensou.
Quase se estatelou ao comprido ao sair da escada, absorto que estava na procura do olhar que sentia pousado em si. Recuperou o equilíbrio e rodou a cabeça 180º na horizontal e, depois, 90º na vertical. Dezenas de pessoas cruzavam-se em todas as direcções, mas ninguém parecia interessado em si.
Tentou afastar aquela sensação desagradável que sentia, sacudindo alguma caspa dos ombros, quando o viu.
Estava mesmo à sua frente, a pouco mais de dois metros. Era da sua altura, largo, peludo e totalmente castanho. Tinha a boca ligeiramente aberta, permitindo ver alguns dos seus dentes afiados. Por cima do focinho, a razão da sua perturbação: dois pequenos pontos negros apontados na sua direcção.
Tinha um olhar parado, mortiço mas, ao mesmo tempo, penetrante. Era um urso que o estava a mirar intensamente.
Tomou a direcção da FNAC quando ouviu um pssst. Voltou-se.
O urso estava à porta de uma loja, decidiu aproximar-se. Colocou-se perto dele, fingindo estar interessado nos artigos expostos na montra. Nada disse.
- Se fosse a ti, ia antes almoçar, deixava as compras para depois. – disse-lhe o urso.
- Não tenho fome. – Respondeu ele entre dentes, voltando-se para trás para se certificar de que ninguém o observava.
- Come uma sopa. Não é preciso fome para comer uma sopa.
- er… tu… falas…
- Falo às vezes, quando tenho paciência para isso. Mas agora vai.
Saiu do elevador no piso dos restaurantes. Eram 12h40 e, em breve, o Centro Comercial iria estar cheio de pessoas apressadas que procuravam engolir o almoço a correr. Havia já algum movimento.
Estava em frente à Loja das Sopas e lembrou-se das palavras do Urso. Colocou-se na fila. Iria pedir uma sopa da pedra, apesar de não ser altura do ano para tal coisa.
Juntou os tabuleiros deixados pelo casal e sentou-se. Não tinha fome. Questionou-se sobre o que fazia ali. Sem perceber, o piloto automático ligou-se novamente e o tempo passou por ele sem que desse por isso.
Despertou a olhar por uma das grandes janelas que davam para a Costa do Castelo. Ao longe, uma bandeira portuguesa ondulava numa torre do Castelo de S. Jorge. Apreciou o contraste que fazia a janela toda iluminada e a relativa escuridão das paredes adjacentes.
Era um bonito efeito de contra-luz, não fosse uma silhueta humana colocar-se no meio, devolvendo-o à realidade.
Cubos perfeitos de carne e uns legumes de aspecto baço boiavam na tigela à sua frente. Achou os cubos perfeitos demais e teve saudades das sopas que a sua mãe lhe fazia.
Pegou no guardanapo que embrulhava a colher e reparou outra vez naquela silhueta que tinha visto há pouco: era uma rapariga que, de tabuleiro na mão, procurava poiso. As mesas estavam agora todas ocupadas e algumas pessoas procuravam desesperadamente onde se sentar.
Pensou em convidar a rapariga a sentar-se na sua mesa, mas não foi capaz de o fazer. Mergulhou a colher no caldo e agitou os objectos flutuantes. Continuava sem fome.
Largou a colher e tamborilou com os dedos na borda do tabuleiro. Abriu a garrafa de água e bebeu um gole sem usar o copo. Pegou na colher e largou-a de novo. A rapariga virou-se na sua direcção, com ar desesperado e ele levantou a mão, chamando-lhe a atenção.
Apontou para o lugar vazio, e encolheu os ombros. Ela sorriu-lhe, atrapalhada e encolheu os ombros também.
- Obrigada… este centro comercial é um horror, nem sei porque continuo a vir cá, ou se vem cedo, ou então…
- Sim, calculo…
- Nem sei porque vim cá hoje. – Acabou ela por dizer. – Nem era para almoçar… fui lá abaixo, a uma loja de acessórios e…, bom, aconteceu-me uma coisa estranhíssima…
- Ai sim? – Disse ele desajeitadamente.
- Ando a ouvir coisas, pareceu mesmo que um… ah, deixe lá isso, são coisas da minha cabeça…
- Chamo-me Adelaide.
- Sou o Evaristo.
As duas estórias anteriores (Urgência e Hoje É Dia de Festa) foram escritas sem que houvesse qualquer relação entre elas mas, no outro dia, reparei que tinha deixado duas personagens desamparadas e que para desamparo, já basta a vida real. Vai daí, este texto.
Espero sinceramente que o Evaristo e a Adelaide se tornem amigos.
A todos umas boas férias.