terça-feira, novembro 24, 2009

Brownie Chocolatíssimo

Qual agulha desproporcionada e vagarosa, a sombra projectada por uma das chaminés do prédio em frente, assinalava no pavimento da cozinha a pesarosa passagem do tempo, o que, assim atirado para diante dela, em ponto grande, tornava ainda mais doloroso aquele inicio de tarde. Mas o pior de tudo era o espaço vazio na máquina de lavar loiça.

Colocou a chávena do café na máquina, passou um pano húmido pela bancada e lavou as mãos com detergente. Passou um pano seco pela bancada e limpou as mãos a ele. No chão, a sombra estava a meio do último mosaico, preparando-se para daí a nada começar a lenta escalada dos electrodomésticos e armários. Hesitou sobre o que fazer a seguir.

O que fazer quando nada apetece fazer?

No quarto, passou a mão pela capa do livro que estava na mesa-de-cabeceira, sentindo o pó por entre os dedos. Regressou à cozinha, sentando-se junto da janela – a melhor luz do apartamento, àquela hora. Um bilhete de teatro estava colocado a meio do livro. Retirou-o e os olhos percorreram as linhas com avidez, como se estivesse condicionada pelo tempo e da leitura dependesse a vida de alguém. Ainda virou a página, mas estava a enganar quem? Não tinha fixado um único pormenor do que acabara de ler. Por aqueles dias, avidez era tudo o que não se coadunava com o seu estado de espírito.

Colocou o bilhete na mesma página e deixou-se ficar com o livro entre as mãos, a observar a silhueta do ponteiro dissolver-se na pedra fria. Uma mancha cinzenta e informe dominava o céu disponível na janela e as árvores estavam agora particularmente agitadas, desembaraçando-se do peso morto das folhas. Fragmentos dourados e castanho-claro passavam velozes diante dela, rua abaixo. Deu por si a bater arritmadamente com as unhas no vidro. Talvez se tomasse outro café. Sempre sujava outra chávena.

Voltou a tamborilar os dedos na janela, como se assim fosse possível não pensar mais nisso. Tinha passado uma semana desde a última vez que colocara loiça a lavar e, desde então, não sujara ainda o suficiente para voltar a encher a máquina. Sem apetite, não havia razão para cozinhar. Comia pouco, o que calhava, e isso era suficiente. Não pensava sequer em comida. Mas agora, desde que tomara consciência disso, atormentava-a o facto daquele espaço por preencher lhe parecer a exacta medida do vazio que percebia dentro de si.

Talvez se fizesse um bolo.

Procurou no Pantagruel bolos de chocolate. Páginas 827 e seguintes. Pôs-se a ler.

Bata… derreta… junte… mexa… unte… deite… recheie… decore…

A vontade vacilou perante tanta necessidade de atenção e trabalho manual. Na janela, continuava a desfilar o Outono aos pedaços. Inspirou longamente e abriu o frigorífico, de onde retirou manteiga. Quando abriu uma das portas do armário, não viu nada. Ficou algum tempo a encarar os contornos do que lá se encontrava dentro, até perceber que não se lembrava já do que estava à procura. E naquele momento pareceu-lhe que a escuridão do armário se dissipou pela cozinha, tornando-a ainda mais sombria. Vestiu um casaco, pegou nas chaves e na carteira e saiu de casa, apressada, com pensamentos apressados. Porque não tinha o frigorífico iluminado o seu dia? Tudo parecia ofuscar-se à sua volta.

Não viu ninguém quando entrou. Percorreu dois corredores até encontrar o que pretendia. Não havia muita variedade, o que agradeceu. Brownie Chocolatíssimo, o nome soou-lhe bem. Leu brevemente as instruções e achou-se competente para o obter.

O empregado do minimercado tinha-se materializado na caixa e exibia o sorriso de quem, a custo, se conformara com ter de trabalhar aos domingos. É só, perguntou. Ela acenou que sim. Deve ser bom, acrescentou o rapaz, quando lhe entregou o troco e o recibo.

O vento tinha amainado, mas o frio era mais intenso, quando regressou a casa. A calçada estava pejada dos destroços das árvores e a iluminação pública acendeu-se, tornando a rua ainda menos viva. O pensamento de que até a luz, quando chega, é para tornar tudo mais triste, ainda tomou forma no seu espírito, mas foi prontamente reprimido com a certeza que a auto-compaixão não lhe iria fazer bem algum.

Juntou à mistura para bolo leite, ovos e uma colher de manteiga. Untou a forma, colocou-a no forno pré-aquecido e sentou-se junto da janela, à luz da rua, em busca do apetite no folheio das pantagruélicas páginas, esperançosa que, assim, lhe custasse menos a passar o tempo que a executar a receita.

O rapaz estava de costas e não a viu. Pareceu-lhe que ele cantarolava, enquanto passava a esfregona no chão junto à porta. Ali especada, na rua, empunhando numa mão um prato coberto com folha de alumínio e na outra, talheres embrulhados em papel de cozinha, a sua primeira reacção foi achar-se terrivelmente ridícula. O súbito embaraço fê-la dar um passo atrás. Mas logo avançou. Tossicou. O rapaz virou-se, a sua expressão adquirindo a forma de uma grande interrogação. Trouxe uma fatia de bolo, disse ela.

Encostados à caixa, comeram devagar e em silêncio. Na rua, o vento renovara forças e trazia as folhas enlouquecidas.