Senti uma gota de suor formar-se na têmpora direita; desceu alguns milímetros e depois, maior, escorregou pela face, suspendendo-se no maxilar. Quis limpá-la mas não fui capaz de me mexer.
O tempo parecia ter parado para mim. Percebia que Maria, a velhota, protestava com o marido, certamente dizia-lhe que não devia dizer disparates. Leonor falava comigo, olhava na minha direcção e vi-a mexer os lábios, talvez me perguntasse se eu estava bem. Mas eu não os ouvia, dentro da minha cabeça, mil pensamentos entrechocavam-se, como se todos quisessem fazer sentido ao mesmo tempo. Os primeiros indícios de uma dor de cabeça fizeram-se sentir.
- Como é que o senhor pode dizer uma coisa dessas? – Leonor tinha-se virado para o homem e interrogava-o. Foi a pergunta dela que me devolveu aquela sala.
- Vocês não lhe liguem. – Maria, sentada num banco que trouxera da cozinha, implorava-me com o olhar que acreditasse nela.
- Cala-te, mulher! – Manuel fez um gesto de desprezo com a mão. – És pior que eles todos, cambada de cobardes.
- Eles quem? – Era Leonor quem continuava a fazer perguntas. Estava visivelmente interessada no que o homem tinha para dizer. Pela minha parte, continuava a tentar ordenar as ideias.
- Eles todos! Vocês não sabem mas eu vou contar-vos: o teu pai era muito comunista, a tua mãe não sei, mas o teu pai era. Aliás, aqui nesta zona, era ele o maioral, o chefe, quem decidia o que se fazia. E o teu avô também foi. Um dos primeiros. – Manuel despejou mais um copo de água. – Era assunto de que não se falava, mas toda a gente daqui o sabia. Era ele que mobilizava a malta contra o Grémio e que passava uns papéis entre quem sabia ler, que eram poucos, mas esses liam aos outros e era assim que se fazia naquela altura. Esteve algumas vezes preso, levavam-no para Faro e voltava uns dias depois um bocado amassado. É mentira, Maria? – Ela nada disse, limitou-se a baixar a cabeça. – Mais nada. Oiça amigo, a PIDE andava aí em força quando ele ficou no mar, dizia-se que o vinham buscar e que desta vez ia para Lisboa… um incêndio uns meses antes num barco que furou uma greve…
- Mas e a minha mãe, não percebo o que isto tem a ver com o facto de ela poder estar viva. – Por fim, consegui falar.
- O meu filho. – Fez uma pausa. – Foi há uns anos para a América, um dia chegou a casa e disse que se ia embora, que estava farto da vida do mar, fez a mala e só deixou esses livros que aí vêem. Nunca mais soubemos nada dele… eu já quis fazer uma fogueira com eles, mas não me deixam. – Olhou para a mulher, que se levantou e desapareceu na cozinha. – Bom, era ele mocito pequeno, uns anos mais velho que tu, entrou por essa porta todo esbaforido, a gritar por mim, dizia ele que uns homens que vieram de carro te tinham levado a ti e à tua mãe.
- Quem eram eles?
- E como vou eu saber? Cá para mim eram uns capangas da PIDE, ou da GNR, mas e se o miúdo estava a mentir? O que é certo é que depois desse dia, nunca mais ninguém os viu, a ela ou a ti. – Leonor olhava para mim com os olhos muito abertos. – Uns dias depois, um desses reles do Grémio apareceu aí com a noticia de que tinham encontrado a tua mãe pendurada numa árvore, num monte qualquer, e tu numa alcofa. – Maria apareceu com outro copo de água que entregou ao marido. – O médico diz-me que tenho que beber muita água… e eu bebo, é mais barata que a botica.
- O senhor não acreditou em nada disso.
- Eu conhecia muito bem a tua mãe, a tua mãe lá era pessoa de se matar, alguma vez… e deixar-te numa alcofa… - O homem abanava a cabeça. - Ainda fiz umas perguntas, mas ninguém quis saber, tinham todos medo. Fui avisado muitas vezes para não mexer no assunto… os cobardes…. Agora diz-me tu: dá para acreditar numa história destas?
Manuel “Gato” não tinha nada de concreto que nos pudesse ajudar, apenas uma desconfiança de quase quarenta anos.
Os velhotes tinham ficado muito emocionados com o meu inesperado regresso. Prometemos voltar ainda nesse verão para os visitar.
- O senhor desculpe, mas queria fazer-lhe ainda uma pergunta. - Disse Leonor.
- Diga lá menina.
- Afinal, como é que se dobram os fósforos?
O homem esboçou um sorriso, a única vez que tal aconteceu: - Ora, é fácil, basta deixá-los uns tempos dentro de água, assim ficam moles e podemos dobrá-los, depois secam na posição que queremos.
- Eu também tenho uma pergunta para lhe fazer. – Tinha-me lembrado de algo. - De onde lhe vem essa alcunha de “Gato”?
- Porque dizem que tenho sete vidas, como os gatos. Aos dezasseis anos já tinha partido as duas pernas, os dois braços, a cabeça e umas costelas. Tudo a trabalhar. Outro teria morrido, mas eu só parti ossos.
28 comentários:
... interessante! agora tem um novo nome... ainda há muito para descobrir, já tem mais uma pista! veremos se Leonor e João conseguirão desfazer este novelo...
torço para que sim, que a verdade venha à tona
Uau!
Estou cada vez mais presa a esta história! Espero ansiosa a continuação desta delicia! Beijocas! ;)
bem...tenho que vir por a leitura em dia...
*beijos*
Excelente texto.
Boa semana
ai... meu deus... rui, pela tua saúde, tu queres-me matar??? anda, anda, conta logo logo o resto que eu já n me aguento... bjs
Rui,
Entro só mesmo para dar um allô.
Comentar o teu Post desta feita seria desonesto da minha parte. Perdi-me da leitura desta história logo no 2º capítulo e agora parece-me dificil recuperar a leitura, por falta de tempo.
Keep on going!
UI, agora é que nos partis-te as costas! :)
Err... partiste
É natural, que lhe tivessem mudado de nome...
Bonito. O engano, o pretexto.
Esta história está cada vez mais interessante... estou mortinha pelas cenas do próximo capitulo... eheheh
beijo doce
sem unhas da mão...recorro ás dos pés???? :)
isto é lá coisa que nos faças!
Boa, Rui!
cada vez mais interessante!
Tres beijos, desta feita ;)
Obrigada pelas presenças, pelas visitas. Custa-me deixar-te comentários. Porque usas as palavras todas.
Que imaginação...
Continua! :)
Bjnhs e boa semana
Ai... ganhaste balanço e agora não ha quem te pare! ;)
Estás cada vez melhor!! :)))
Continua que eu voltarei sempre para te ler
Beijo Salgado ;)
Uai! Isto está cada vez pior...:D
Tanta espera ainda tenho um treco do coração!
Beijus
Cada vez mais interessante...
Parabens
bem!... este episódio foi um soco atrás do outro!... senti-os todos!... não que eu seja masoquista, mas o conto está a ficar cada vez melhor!...
temos gémeos...separados à nascença??
Amigo!
Estou sem palavras para descrever o ke sinto...
Envolves, inebrias, prendes,avassalas...
Ke mais te posso dizer...
Beijinhos
Bom Rui , que te posso dizer? Que me maravilhas a cada post. Cada vez escreves melhor. Esta historia é digna de se publicar.
um bj
Penso que o autor já deu mais uma volta ao assunto. Pôs o Manuel Gato a dar esperanças ao João e agora dá-lhe um nome que não é o dele. Por amor da santa da Fuzeta! Este Gato foi um achado para fazer esticar a história!
xxxiiiiiiiiii... a parte da Pide e tal são boas repostas, não são perguntas... agora essa do João Carlos....... bolas!
BJss
E o enredo complica-se...
E eu espero a custo.
Beijo
... já disse e repito; este homem tem montes de posibilidades de escrever guiões para o cinema...
... sabe como prender a atenção do leitor... e exasperá-lo porque quer saber a todo o custo em que páram as modas...
xiça é a primeira vez q cá venho e fiquei colada a ler...escreves mto bem....são bestiais os teus textos parabens....kissss
hum... ainda não há gémeos...
Obrigado pela visita....... e eu acho k a Leonor é uma grande mulher, e o João um herói cheio de força, mas estes ingredientes só sao possiveis graças à cabeça do Rui. Estou aki a pensar... esta estória será a a tua? Ou será a de muitos Joãos e Joanas do mundo? Tou baralhada, mas tão feliz por a Gina ser tua amiga, só assim aki cheguei.... k booooooooooooommmmmmmm
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