segunda-feira, novembro 27, 2006

K331 - Alla Turca (terceiro andamento)


- Já estamos a discutir e não foi para isso que te liguei.
- Para que é que me ligaste, João, sabendo que eu não quero falar contigo?
- Por causa do maldito piano.
- Deita-o fora!

(senta-se. Parece cansada)
- Não consigo.
- Oh, por favor.
- Já estive várias vezes para o fazer, mas depois… não sei, vejo a tua mãe, vejo-te a ti, lembro-me dela a oferecer aquilo. Deitá-lo fora seria mais uma traição, mais uma falha contigo… e não sou capaz.
- Eu não o quero, deita-o fora.

(levanta-se e sai da sala)
- Deixa-me devolver-to, só te peço isso. Podíamos combinar ou tu passares por aqui…
- Por amor de Deus! Havia de ser bonito, eu ir aí e cruzar-me com uma das tuas amigas.

(regressa à sala, vem calçada. Ajusta as meias)
- Que amigas, do que é que estás a falar?
- Lá voltamos nós a mais um ataque de amnésia selectiva.
- Deixa-te de sarcasmos, Ana.

(dirige-se à cómoda e acende um cigarro. Fica a andar de um lado para o outro)
- Deixa-te tu de tretas, que eu não tenho pachorra para elas. Já não tenho que as aturar… e esta conversa está a chegar ao fim.
- Não, espera! Agora vais ter que me explicar essa das amigas.
- Quero lá saber disso, a vida é tua, já não me interessa.
- Ana, eu não…
- Tu não o quê?

(levanta a voz ao mesmo tempo que coloca o telemóvel mesmo à frente da boca)
não andas a meter umas tipas em casa?
- Como é que sabes?
- É isso que interessa?
- Foi a nossa queria vizinha Mariana, não foi? Essa amiga da onça…

(procura onde apagar o cigarro. Acaba por fazê-lo no vidro da moldura tombada na cómoda, retomando a caminhada)
- Esquece. Tenho de ir.
- Não, Ana!
- Acabou, João.
- Espera. Peço-te que me oiças.
- Pedes-me tanta coisa, já reparaste?
- Por favor.
- Tenho pressa.

(acomoda-se no sofá)
- Deixa-me falar…
(silêncio)
não são amigas… não são engates… quer dizer, são…
(pára junto à cómoda, apoiando uma mão nela)
são…

(a respiração torna-se mais ofegante enquanto procura as palavras)
meninas…
(aguarda a reacção dela)
- Prostitutas?
- Sim, eu pago-lhes.

(ela tenta falar, mas nada diz. Passa a mão pelo rosto)
não me perguntes porque o faço… eu sei que precisas de respostas, que para ti tudo tem que ter uma razão, um sentido, mas o meu mundo é mais complicado que isso e não te sei responder.
(pega noutro cigarro, procura o isqueiro)
talvez alivio… não sei se é esta a palavra correcta… é porque… sabes o que é mais triste? Nem sou capaz de olhar para elas. Se me cruzar com uma na rua, não a reconheço
(não encontra o isqueiro)
limito-me a… sexo… a ter relações
(por fim, o isqueiro)
elas… eu… só consigo… com elas de costas para mim… e aquilo não me diz nada, não sinto nada.
(o isqueiro não acende, atira com ele)
fico ali… fecho os olhos, tento pensar em…
(pousa o olhar na moldura com cinza e cala-se subitamente)
- Porque o fazes?
- Tenho pensado muito nisso, nas noites em que não durmo. Penso nisso… acho que é para não te trair.

(ela levanta-se e caminha pela sala. Parece ter dificuldade em gerir o que lhe é dito)
não sei explicar, Ana, mas na minha cabeça aquilo não é trair, se for a pagar não há traição… é estúpido, eu sei… Não entendo porque o faço… e tem vindo a piorar, das ultimas vezes…
(repara no seu reflexo na moldura vazia, por entre a cinza do cigarro)
- Seja o que for, diz-me.
(Inspira fundo no momento em que seu olhar se cruza com o de uma jovem que, da parede, a observa)
- Ultimamente, fico ali, com elas, imenso tempo… naquilo, e nada. Nada!
(morde o lábio inferior)
já nem me consigo vir… só sentir-me mal comigo, muito mal… e pensar no frustrado que sou.
(levanta os olhos e vê-se ao espelho)
- Porque me contas isto?
- Não se consegue fugir ao que se é, pois não?

(não obtém resposta)
da última vez já nem me despi
(ela baixa o telemóvel por momentos, considera desligar)
Ana…
- Sim…
- Às vezes, fecho os olhos e imagino que tu…
- João!
- Desculpa.

(vira-se para o leitor)
tenho querido chorar e já nem isso consigo, acreditas? Perdi a capacidade de tudo.

segunda-feira, novembro 20, 2006

K331 - Alla Turca (segundo andamento)

um telemóvel toca. As luzes acendem-se na sala e no quarto. Ela entra na sala. Veste agora uma saia preta, por cima do joelho e uma camisa branca. Está descalça. Penteia-se. Ao ver quem lhe está a ligar, faz uma careta e inspira, desalentada. Atende sem falar)


- Ana, eu sei, mas deixa-me falar.
- Depressa João, e pela última vez.
- Por muito estranho que isto possa parecer, eu preciso mesmo ver-me livre desta coisa.
- Nem sei que te diga, sinceramente.

(senta-se)
- Tu não percebes, mas isto liga-se sozinho, a toda a hora, sem que eu lhe mexa. Fica imenso tempo sem parar.
- Isso nunca aconteceu antes.
- Acontece agora, acredita. A meio da noite, desata a tocar, é insuportável. Está a deixar-me louco.

(entra no quarto procurando onde colocar a cinza de um cigarro; acaba por virar uma das molduras e apaga o cigarro no vidro)
não suporto mais isto, Ana. Há mais de duas semanas que é isto. Começou por ser de vez em quando, de longe a longe, mas tem vindo a piorar e agora é mais o tempo em que está a tocar do que o que está calado.
- Tens passado muito tempo em casa?
- Eu…

(começa a andar de um lado para o outro; hesita)
pedi licença sem vencimento, foi isso.
- João…
- Estou de baixa. Pedi e eles… o médico deu-me. Ando cansado, durmo pouco, tu sabes.
- Quem foi o médico que te dei baixa?
- er… um amigo do meu primo, é ali para os lados do Saldanha.
- O teu primo não conhece nenhum médico e a minha paciência esgotou-se…
- Espera, espera.

(faz sinal com a mão a alguém que não está presente; custa-lhe o que vai dizer)
eu despedi-me!... fui despedido…
(acrescenta, num sussurro; do outro lado, ela baixa o telemóvel e leva a mão à boca)
- Desde que me deixaste que não consigo atinar. É muita coisa para a minha cabeça.
- Estava a demorar.
- Não percebi.
- Pois não, nunca percebeste.
- Ana, por favor.
- Estás a culpar-me, João, mais uma vez. Agora foste despedido porque eu te deixei.

(o tom de voz é de desalento; fala baixo)
- Eu preciso de ti!
- Meu grande cabrão!

(levanta-se)
- É verdade.
(senta-se)
- Tarde demais.
- Preciso de ajuda.
- Ora aí está uma novidade.

(visivelmente surpreendida)
nunca antes te ouvi semelhante coisa. Reconheceres isso já é alguma coisa.
- Eu sei que errei.
- Não fizeste o mínimo esforço.
- Eu gosto de ti.
- E eu sempre te amei, é essa a diferença. Pena só a ter percebido muito tarde, quando já muito me tinha entregue, quando já tinha dado muito de mim. Tudo… e de ti só recebi pouco mais que nada. Nunca fizeste um esforço, nunca quiseste saber.
- Não é verdade.
- É verdade, sim!
- Casei contigo, não casei? Aliás, quem quis casar fui eu.
- E eu cedi, infelizmente, que não estavas preparado para casar. Lá achei que tu mudavas, que eu te mudava, não sei.
- Não, nada disso, eu casei porque gostava… porque te amava e queria muito estar contigo.
- Achaste que o casamento era a maneira de me ter, de obteres o teu merecido descanso, que a partir dali já estava o problema resolvido. Mas ser feliz não é fácil e o casamento não é o fim de nada, é só o princípio de outra coisa.

(aquelas palavras estavam a custar-lhe mais do que poderia supor; dava-se agora conta de que as não tinha dito no dia em que tudo acabou)

segunda-feira, novembro 13, 2006

K331 - Alla Turca (primeiro andamento)

Este texto é para ser lido com os olhos fechados

Um palco. Está dividido em três partes: à esquerda, um quarto. A cama está por fazer; uma almofada caída no chão. Numa cómoda, em frente à cama, vários objectos pessoais; por cima, um espelho. O roupeiro tem uma porta aberta, permitindo ver algumas camisas penduradas e vários cabides vazios; há ainda diversa roupa ao monte, a um canto;
à direita, uma sala de estar. O pouco mobiliário é de design moderno, dominando o preto e o branco. Arrumação impecável. Nas paredes, quadros de Lynne Taetzsch, Trevor Bell, Merello e um enorme retrato a preto e branco de uma jovem;
a zona central do palco está completamente às escuras.

(um homem entra no quarto. Tem a barba por fazer e o cabelo em desalinho. Tosse. Veste uma t-shirt com a imagem de uma folha de cannabis estampada e uns boxers vermelhos com limões. Está descalço. Senta-se na cama, de costas para o leitor. Baixa a cabeça e assim permanece algum tempo até se levantar e sair. Regressa com um telemóvel. Revolve uma gaveta da cómoda até encontrar o carregador, que liga à corrente. Hesita. Afasta-se. Passa a mão pela barba. Volta. Marca um número. Desiste. Volta a marcar.
na sala, toca um telefone.
uma mulher, em roupão, aparece. Pega no telemóvel e, após ver o número, desliga.
com ar desalentado, ele senta-se na cama. Pouco depois, liga de novo. Ninguém atende. Na sala, apenas o som de água corrente. Ele insiste uma, duas vezes.
na sala, ainda em roupão mas agora com uma toalha enrolada na cabeça, a mulher regressa e atende)


- O que queres, João?
- Ana, escuta-me…

(ela nada diz)
- Tens que vir buscar o piano.
- O piano?
- Eu posso levar-to, é uma questão de combinar...
- João, eu…

(senta-se e coloca uma mão na testa)
- É só entregar-te isto, sem dramas.
- Eu não tenho tempo, nem paciência para as tuas coisas. Pensava que pelo menos isso, tu tinhas percebido.
- Eu sei, eu sei, mas preciso ver-me livre disto.

(apoia uma mão na parede, como para evitar que a parede se movesse)
- Estás a falar do quê?
- Deste maldito piano que a tua mãe trouxe cá para casa.

(ela tenta recordar-se)
- Aquela caixa de música em forma de piano, deixaste cá isto.
- As coisas que tu inventas…

(abanando a cabeça)
- Isto está a deixar-me a cabeça feita em papa.
- João…

(suspira fundo)
- A sério!
- Não o ligues, é tão simples como isso.
- Não é Ana, acredita.

(ela, sem o ouvir, prossegue)
- Tens esta capacidade de me perturbar que me assusta imenso. Para que é que me estás a ligar com este disparate, explicas-me?
- Eu não te quero assustar, nada disso. É só que isto me está a fazer mal.
- Tira-lhe a pilha!
- Já tentei, mas aquela porra tem os parafusos metidos para dentro e a única chave que tenho é grande demais, não cabe.
- Poupa-me…

(levanta-se e começa a andar pela sala)
- Verdade, juro!
(ela pára)
- As tuas juras, João… por favor.
(revelando irritação)
- Esse assunto, outra vez…
- Esse assunto sempre! Eu não consigo falar contigo… aliás, eu não consigo sequer pensar em ti sem que me lembre, sabes?
- Agora já não adianta.
- Tens razão, não adianta mesmo. Nem sei porque fico assim. Para mim é assunto encerrado, já segui em frente.

(recuperando a calma)
- Fizeste bem. Eu fiz o mesmo…
- Ainda bem. Agora tenho de ir.
- Não Ana, espera. Eu preciso mesmo dar-te isto…

(ela já tinha desligado)