A manhã apresentou-se cinzenta e fresca, apesar de se estar a poucos dias do verão. Ideal para a minha caminhada pela praia.
Poucas pessoas à beira mar. A agitação furiosa das bandeiras hasteadas nos apoios de praia, parecia avisar os banhistas para se manterem afastados.
Sentia-me preguiçoso. Enchi os pulmões daquele ar que ameaçava tempestade e limitei-me a fazer alguns exercícios físicos apenas em pensamento, de olhos fechados. Espreguicei-me indecorosamente e dei ordem de marcha à perna direita, que lá obedeceu a custo. Era capaz de jurar que ouvi ranger.
Alguns blocos de granito, próximos da rebentação e em cima dos últimos grãos de areia – quais guardiões do território das pedras –, parecem ter sido cortados numa máquina e para ali atirados, tal a perfeição das faces.
Já imaginava os cataclismos que as teriam feito precipitar sobre o mar e Deuses atarefados em pedreiras celestes, quando a vi. Estava sentada na fronteira da rocha inteira com a rocha granulada. Escondida, pareceu-me.
Atraiçoou-a um pequeno saco verde alface que tinha a seu lado, já que o negrume do cabelo, o azul claro das calças, o castanho claro da blusa de linho e o tom de pele dos pés descalços, se confundiam com o cenário.
Uma súbita atracção por aquela mulher, ali, assim, fez-me abrandar o passo. Mesmo à distância, percebi-lhe uma expressão enigmática. O que faria ali, em que pensaria? O olhar, escondido por óculos escuros, parecia amarrado à linha do horizonte. Instintivamente, olhei também para o mar, como se estivesse a acontecer algo fundamental e necessário. Nada. Apenas mar a perder de vista.
Não. Afinal, lá longe – muito longe – conseguia-se vislumbrar um minúsculo triângulo. Uma vela que seguia para ocidente. E então, percebi: na impossibilidade de partir, de facto, ela estava ali para imaginar viagens, partidas de uma vida indesejada. Julguei perceber a vida daquela mulher em apenas um momento. Era infeliz.
Julguei até saber o nome dela: Sophia. Com –ph, que aquela dignidade e altivez mereciam um nome assim, grande.
Ocorreu-me então que, por trás das lentes escuras, ela teria os olhos fechados. Sonha-se melhor de olhos fechados, todos sabem isso.
Deixei-a para trás e tive que resistir várias vezes ao desejo de virar a cabeça, apenas para ter a certeza que ela ainda lá estava, que não tinha sido apenas a minha imaginação.
Quando cheguei à rocha mais alta, antes de iniciar a descida para o pequeno areal, voltei-me. Não tinha sonhado, mantinha-se no mesmo local, com a mesma expressão.
Ao colocar o pé na areia, um arrepio gelado percorreu-me o corpo. E não foi causado pela brisa fresca que ali chegava ao colo das ondas. Lembrei-me da origem da palavra esfinge, que deriva de um verbo grego que significa “estrangular”, já que a esfinge da mitologia grega estrangulava todos os que não conseguissem decifrar as suas charadas. Instintivamente, levei a mão ao pescoço.
Não me consegui demorar, sentia-me perturbado, As ideias iam ter de ficar desarrumadas por mais algum tempo. Tinha de voltar.
Iniciei o caminho de regresso, mas logo abrandei o passo. O que iria fazer, falar com ela? Não obtive resposta, apenas a certeza que tinha que voltar para trás, ainda assim. Nada daquilo era normal e tinha de haver algo, uma razão para eu estar assim.
Percorri as rochas o mais depressa que consegui, não evitando alguns arranhões nos pés. Estava agora próximo dela.
A postura era a mesma, a concentração também. De pernas flectidas, tinha agora os braços esticados para a frente, cada cotovelo apoiado num joelho. Segurava algo.
Gotas de suor desciam-me da testa para os olhos, o coração disparado. Estava ofegante e com a boca seca.
Quase corri.
Ela não pareceu dar pela minha presença e manteve-se imperturbável, como se ninguém ali estivesse.
E então, percebi o que ela tinha nas mãos: numa manhã cinzenta e fresca de final de primavera, sozinha e isolada num canto remoto de uma praia, uma mulher lia sossegadamente a revista Maria.