quinta-feira, março 30, 2006

O Olhar de Arminda (IX)

Oudezijds Voorburgwal é, talvez, a principal artéria do famigerado bairro da luz vermelha em Amesterdão. No único tempo disponível da minha viagem de trabalho à cidade - um final de tarde e noite em três dias ali passados -, acabei, sem saber bem como, por lá ir ter.
Foi apenas há pouco tempo atrás, no início de Março mas, ao escrever este texto, parece-me que tudo se passou há alguns anos, tal a intensidade dos sentimentos vividos.

Sou historiador de arte e vim participar numa conferência integrada na comemoração dos 400 anos do nascimento de Rembrandt, que se comemoram ao longo de todo o ano de 2006.
Vim a pé desde a Universidade de Amesterdão e dei por mim em pleno Red Light District, que é tal e qual aquilo que sempre tinha ouvido dizer: raparigas de todos os tamanhos, cores e feitios, em trajes mínimos, atrás de janelas ou portas envidraçadas, convidam com um sorriso o/a cliente a entrar.
A iluminação é vermelha, claro, e, em muitos casos, a cama fica logo ali, basta correr a cortina.
Tentei não olhar ostensivamente, o que é deveras uma preocupação sui generis num local daqueles, em que se está rodeado de de sex-shops, casas que oferecem sexo ao vivo e coffee-shops, onde se podem fumar drogas leves.
Ali, ser voyeur é ser menino de coro.

O nome do café e alguma fome, fizeram-me entrar. A decoração do Art & Language Café remete para um ambiente algo esotérico e misterioso. Várias pinturas representando figuras femininas aladas, dominam as paredes. Alguns trabalhos de autores pré-rafaelitas e várias estantes com livros e revistas completavam a decoração do local. A luz era apenas a suficiente para permitir a leitura e, no ar, uma nuvem de fumo pairava por cima das nossas cabeças, libertando um aroma adocicado. Frank Zappa fazia as honras musicais, o que não deixava de ser um contraste com o ambiente do sítio.
Um quadro em particular, chamou-me a atenção: era uma rapariga, alada, vestida com uma espécie de túnica branca, sentada numa janela que mais parecia uma moldura. Parecia olhar para mim.
Enquanto o contemplava, uma mulher ergueu-se subitamente, ocultando-me o quadro. E ali ficou, à minha frente. Tinha o olhar preso em algo. Olhei em redor mas nada de estranho parecia estar a acontecer: uma empregada circulava pelas mesas e um velhote, curvado sobre si, recebia uma caixa junto ao balcão.
Não fosse o longo cabelo castanho, aquela seria uma típica mulher holandesa: alta, olhos azuis – ou seriam verdes? -, bem vestida, notava-se que, apesar de alguma idade, tinha cuidado consigo. Com certeza, faria inveja a muitas raparigas com metade da sua idade.

O velhote, segurando a caixa com ambas as mãos, percorreu toda a extensão do balcão e preparava-se para sair quando a mulher, colocando-se à sua frente, o abordou.

- Hebben voordien ontmoet wij?

O homem não olhou sequer para ela, tentou afastá-la com o braço e sair. Em tempos tinha tido uma estatura imponente, era notório mas, agora, idoso, o seu corpo seco e dobrado revelava-se fraco. Grunhiu algo que não se percebeu, em tom intimidatório, mas ela não se deixou impressionar e continuou a barrar-lhe o caminho. Por esta altura, todos os clientes do café observavam a cena.
Perante a insistência dela, questionando-o em holandês, o homem acabou por berrar-lhe: - Deixa-me passar!

Na altura não o percebi, aliás demorei algum tempo a tomar consciência disso, achei apenas ser uma grande coincidência estar num café em Amesterdão a assistir a uma discussão em que uma pessoa era portuguesa mas, na verdade, no momento em que aquela frase foi proferida e eu me interessei verdadeiramente pelo que se estava a passar, a minha vida mudou.
De alguma maneira, tudo o que viria a acontecer depois – e o que ainda está por suceder – veio a colocar-me bem no centro da vida de três pessoas que, conhecendo-se entre si, desconhecem a maneira como as suas vidas estão ligadas.
Sei de cada um e de todos, mais do que eles sabem dos outros e de si próprios. Sabendo eu isto, não sei o que faça.

A resposta do velhote perturbou-a, fê-la parar, por momentos, pareceu uma estátua, o olhar toldou-se, tornou-se frio, sem vida; a expressão fechou-se. Percebeu-se que já não tinha dúvidas.
Aproveitando esse momento de distracção dela, o homem saiu.

- És tu, não és? u ruïneerde mijn leven! – Gritou ela, já na rua.

Eu saí também, a curiosidade tinha tomado conta de mim.
Aquela pergunta em português, naquele tom de voz, fez o velho parar e voltar-se.

- Klootzak! Ik zou je moeten vermoorden! Eu sei que és tu! – Falava com sotaque.
- Sou eu, que conversa é essa?
- Já não me reconheces, passou-se assim tanto tempo? Para mim foi ontem!

O velho semicerrou os olhos e mirou-a de alto a baixo, com desprezo. Quando os seus olhos encontraram os dela, o desprezo passou a medo; estremeceu e engoliu em seco. Deu um passo atrás.

- Deixa-me, não sei quem és. – Gritou-lhe ele, voltando-lhe as costas.
- Hond! Tu sabes quem sou. Não vás…
- Larga-me, larga-me.
- Ik zal je! Ik zal je!

Ela tentava agredi-lo; chorava, a maquilhagem sujava-lhe o rosto. Foi então que decidi intervir, tentando separá-los.
Estou convencido que nem deram pela minha presença, que não chegaram a tomar consciência de que alguém os tentava afastar.
Foi uma sirene da Policia que acabou por pôr fim à situação. Num assomo de força, o velhote conseguiu libertar-se dela e afastar-se o mais depressa que pôde. Ela tentou segui-lo mas eu impedi-a. Ficou nos meus braços a soluçar, as forças tinham-na abandonado.

* * *

O que aconteceu de seguida vou contar o mais resumidamente possível: a Policia identificou-nos, deu-nos um sermão sobre regras de comportamento e deixou-nos ir. Voltámos ao café, onde Roxanne – assim se apresentou -, me contou a história da vida dela.
Fê-lo num único fôlego, como se sufocasse se o não fizesse depressa. Nunca ouvi tanta urgência, tanta necessidade na voz de alguém. Nunca levantou a cabeça, nunca tirou os olhos do tampo da mesa, não sabia nada de mim mas, naquelas horas em que conversámos, eu fui o seu confessor; comigo tentou expiar os seus pecados; em mim procurou absolvição.
Eu limitei-me a ouvi-la, outra coisa não podia – nem sabia – fazer. E isso bastou.

Contou-me como, após três dias escondida em várias quintas, um casal de idosos lhe deu refugio. Que Albertino, com outros homens, andaram a perguntar por ela. Que voltar à sua aldeia não era solução, visto ser descoberta com toda a certeza.
Ficou a viver nove meses com o casal. Ali, na quinta deles, foi como regressar à sua vida na aldeia, a uma vida calma, sem sobressaltos, ao trabalho no campo, ao contacto com os animais. E foi precisamente isso que, à medida que o tempo passava, a fez partir.
Os sonhos continuava a tê-los, as fotografias das revistas continuavam gravadas na sua memória. Tinha saído de casa em busca de um sonho e só tinha conseguido encontrar um pesadelo, mas agora era mais forte, sabia mais; era altura de voltar a tentar.
Com algum dinheiro emprestado pelo casal – que devolveu com juros assim que lhe foi possível, fez questão de me dizer -, partiu para Andorra. É que, enquanto fazia companhia aos homens na Bodeguita, manteve sempre os ouvidos abertos às conversas sobre negócios. Em Andorra, alguém como ela, ia dar-se bem… na prostituição.
Perante o meu espanto, explicou-me que tinha aprendido a não se enganar a si própria, que sabia de outra maneira nunca iria conseguir o que queria, mas que, vendendo o corpo, teria algumas chances.
Depressa se tornou atracção na maior casa de alterne do principado, mas que, meses depois, reconheceu vários dos clientes da antiga casa o que a obrigou a partir. Passou por Bordéus, Paris e, em meados dos anos oitenta, rumou a Amesterdão - era o que estava na moda, na altura – onde ainda vive. Fez muito dinheiro, é hoje, em vésperas de completar 50 anos, uma mulher rica.

Nunca mais voltou a Portugal. Continuou sempre a escrever à mãe e ainda hoje o faz - para evitar percalços, pediu durante alguns anos a clientes seus estrangeiros, que lhe colocassem os envelopes no correio dos países deles.
Que tinha saudades da aldeia e da sua mãe mas que, na verdade, nem sabia se a mãe ainda era viva, uma vez que nunca tinha dado a sua morada.

No avião de regresso a Lisboa, no dia seguinte, tornou-se claro para mim que havia algo que eu podia fazer.

terça-feira, março 28, 2006

O Olhar de Arminda (VIII)

Fez questão de estar à porta do bar para receber pessoalmente os seus convidados. Por quatro vezes o fez, acompanhando-os à mesa – uma em cada canto da sala -, aproveitou para, resumidamente, lhes relembrar o que ia acontecer.
Era ainda cedo quando o último convidado se sentou no seu sofá, acompanhado por duas meninas que o iam entreter até ao momento certo. Pretendia-se evitar a confusão habitual dos sábados à noite.

Eram 23h00 em ponto quando, de braço dado, Arminda e Madame Biju entraram. Detiveram-se, aguardando indicação para que avançassem. O efeito foi conseguido, todas as cabeças se viraram na direcção das duas mulheres. Alguns queixos caíram.
Após o espanto inicial, um burburinho instalou-se. Todos queriam saber quem era aquela miúda.
Ao longe, o patrão fez um ligeiro movimento com a cabeça e Madame Biju indicou a primeira mesa a Arminda. Aí chegadas, como que a entregou ao patrão que, por sua vez, a apresentou ao homem, envolto numa nuvem de fumo de charuto. Este, com um gesto, dispensou as acompanhantes que, ao passarem pela rapariga, lançaram-lhe um olhar penetrante e frio.
Com um sorriso, convidou-a a sentar.

A conversa foi breve, na verdade, um monólogo, já que Arminda se limitou a uns nervosos acenos de cabeça, e a emitir uns sons que a música ambiente não deixava perceber. Durante todo o tempo, não levantou os olhos do chão.
Foi assim em todas as mesas e nenhum dos homens se importou. Aliás, a inocência e timidez da rapariga eram de tal maneira genuínas, que isso só lhes aguçou ainda mais o desejo. Nunca como daquela vez, a oferta lhes agradou tanto.
Menos de uma hora depois, Arminda subiu ao quarto acompanhada por Madame Biju. O patrão passou por cada mesa recolhendo, em cada uma delas, uma folha dobrada. Nela, o valor que cada um dos homens estava disposto a pagar para serem os primeiros daquela rapariga.

Don Camilo, o único espanhol dos quatro, ganhou o leilão. A sua proposta era, de longe, a maior. Perante tal valor, nenhum dos outros homens fez contraproposta.
Casado, com seis filhos, era um latifundiário abastado, ligado à criação de gado e bem relacionado com o governo Franquista. Estava habituado a ter o que queria.
Acertada a transacção, Don Camilo subiu. Aos concorrentes perdedores, o patrão ofereceu a companhia de duas raparigas a cada um. À vossa escolha! Oferta da casa! Aquela noite estava a correr-lhe bem.

Ajoelhada junto à cama, Arminda rezava. Pedia perdão.
Nunca antes tinha rezado, na verdade, nem sabia como se fazia tal coisa mas, se aquela era uma noite para primeiras vezes, mal não podia fazer.
A porta entreabriu-se e Madame Biju espreitou, fazendo sinal para que ela se levantasse.

- Puede passar, Don Camilo. – Disse a mulher no seu melhor sotaque castelhano.

A porta fechou-se atrás do ganadero que, quieto, mirava a sua mais recente aquisição com a mesma satisfação de quando comprava um novo animal.
Era um homem já de idade, cabelo todo branco, sorriso largo mas amarelo, de milhares de havanos queimados. Era uns bons dois palmos mais baixo que ela. Percebia-se que era um homem de força, quer física quer de vontade.
Desapertou o nó da gravata e depois o colete.

- Que barbaridad…

Atirou casaco, gravata, colete e camisa para cima de uma das cadeiras e descalçou-se. Tinha o peito coberto de pelos brancos e uma barriga proeminente.
Arminda sentiu as tripas embrulharem-se. Uma fragrância de perfume floral vinda da pele desnudada dele chegou-lhe às narinas, o que a obrigou a fechar a boca com força.
Don Camilo baixou as calças, ficando de cuecas e meias, presas junto aos joelhos por elásticos. Aproximou-se dela.

- Anda cariño, levanta-te. – Deu-lhe a mão e ela aceitou-a.

Do alto do seu 1,90m, apenas via o cabelo ralo e casposo do homem. Fechou os olhos quando sentiu a língua molhada dele no seu pescoço e as mãos nos seios. Arrepiou-se e os restos do almoço – não tinha sido capaz de jantar -, subiram-lhe até à garganta. Foi a custo que os aguentou dentro de si.
Ele tentava desesperadamente desabotoar-lhe o vestido enquanto lhe passava a língua pela cara. Estava descontrolado, ofegava muito e babava-se, molhando-a toda. Arminda colocou as mãos nos ombros dele e tentou afastá-lo, mas sem sucesso.
O vestido caiu, por fim.

- Que tetas… - Atirou-a para cima e deitou-se em cima dela. – Quiero tu leche, borreguita.

Sugava-lhe os seios com força, magoando-a. Em desespero, Arminda cravou-lhe as unhas pintadas de vermelho nas costas, o que apenas o fez aumentar o ímpeto com que a apalpava e lambia.
Por fim, prendeu-lhe os braços debaixo das suas mãos e fitou-a nos olhos.

- Que tesuda eres, chica. – E forçou-se nela.

Arminda soltou um grito. Ele sorriu e pediu-lhe que gritasse mais, que adorava quando elas gritavam.
A partir daí, ela perdeu a noção do tempo e do espaço. Terá desmaiado, pelo menos é isso que lhe parece. Não se recorda de mais nada, apenas de voltar a si, deitada na cama e olhar para a ventoinha que rodopiava lentamente sobre a sua cabeça.
Um cheiro nauseabundo fê-la erguer-se. Ao lado da almofada e no chão, um rasto de vomitado. Entre as pernas uma poça de sangue ensopava os lençóis. Estava dorida, moída, todo o corpo lhe doía.
O vestido, atirado para um canto e todo amarfanhado pareceu-lhe, também ele, uma imensa poça de sangue.
Não foi capaz de se mover, encostou-se à parede e chorou para dentro. O seu corpo nada mais tinha para dar.

* * *

Passaram-se oito meses e Arminda tornou-se companhia privada de Don Camilo, que pagava uma boa maquia pela exclusividade.
Teve outros homens, mas sempre como oferta do ganadero a amigos e parceiros de negócio. Por várias vezes foi para a cama com outras raparigas, coisa que o velho apreciava particularmente. E, uma vez por mês, deslocava-se com outras mulheres da Bodeguita e de outros estabelecimentos idênticos, à quinta de Don Camilo para participar numa festa que, invariavelmente, terminava numa orgia.
Era nessas ocasiões que aproveitava para falar um pouco com algumas dessas raparigas. As histórias, apercebia-se, não variavam muito; o pano de fundo era sempre a miséria, o atraso, o abandono familiar, as ilusões desfeitas. Todas se tinham tornado mulheres muito depressa e nenhuma o era, verdadeiramente, ainda.
Uma frase de uma rapariga espanhola, com quem Arminda mais falava, ficou-lhe gravada na memória: - Somos carne, Roxanne… solamente carne.

* * *

As noites de verão tornavam o ambiente do bar muito saturado. Respirava-se mal, o cheiro de tabaco misturado com suor e perfumes reles, deixavam Arminda particularmente mal disposta.
Numa dessas noites, preparava-se para pedir licença a Don Camilo para ir ao quarto refrescar-se, quando viu entrar uma figura conhecida. Deixou-se ficar.
O homem sentou-se com os amigos, riam à gargalhada, fazendo-se notar.
Ela nada disse, levantou-se e, agarrando no grande e pesado cinzeiro que estava no centro da mesa, atravessou a pista de dança em passadas largas e decididas. Junto ao homem, que não se apercebera da sua presença, ergueu o cinzeiro bem alto. Alertado pelas expressões de espanto dos companheiros, o homem voltou-se no preciso momento em que o cinzeiro descia a grande velocidade na direcção da sua cabeça.
O impacto foi tremendo. O som abafado de osso a estilhaçar ouviu-se pela sala. Laureano cuspiu um jacto de sangue e três dentes caíram-lhe por entre os lábios flácidos. Dobrou-se para a frente, inanimado, ficando de joelhos no chão e com a cabeça e o peito em cima da mesa. A expressão, a de quem não tinha percebido o que lhe tinha acontecido.
Arminda levantou de novo o cinzeiro e preparava-se para atingir de novo Laureano, quando uma mão lhe segurou no pulso. Albertino estava atrás dela. Já chegava.
Cuspiu para cima do corpo ensanguentado e abandonou a sala. Ao fundo, o patrão engoliu em seco.

Esteve dois dias fechada no quarto a pão e água, mas ninguém lhe falou no sucedido. Tudo continuou como antes.

* * *

- Letícia, anda caralho… sempre a mesma merda! – Natalino gritava, sentado ao volante da Renault 4. No banco de trás, Arminda e Natasha esperavam pela colega para mais uma visita à finca de Don Camilo, “La Falange”.

Letícia correu para o carro, ajeitando a mini-saia e partiram.
Apesar de ficar a pouco mais de 30 kms, a viagem até à herdade demorava sempre mais de uma hora – culpa das más estradas, da pouca capacidade do automóvel e, principalmente, da pouca habilidade de Natalino para a condução.
Arminda pedia sempre que ele ligasse o rádio. Gostava de ir a olhar pela janela enquanto cantarolava as músicas que tocavam. Não percebia as palavras, eram quase sempre em estrangeiro mas, para si, isso não importava, inventava a letra… o importante era cantar.

Escurecia rapidamente, a lua, em quarto crescente, apareceu acima do horizonte. As estrelas iam ter que repartir o seu reinado do céu com ela, pensava Arminda, quando a Renault 4 deu um grande solavanco e depois outro.
Natalino vociferou a plenos pulmões umas quantas asneiras e o automóvel deteve-se num descampado.

- Que sorte a minha, Jesus, que sorte a minha. Vá, todas para fora, não viram que tivemos um furo? Mexam-me esses cus…

O pneu esquerdo da frente estava vazio. Natalino continuava a maldizer a sua sorte enquanto tirava o pneu sobresselente e o macaco.
Letícia e Natasha acenderam cada uma o seu cigarro, indiferentes ao que se passava.

- Isso, deixem-se estar, não se incomodem. – Disse ele com desdém.
- Sim filho, deves estar à espera que eu te ajude e cague a roupa toda. – Respondeu-lhe Letícia.
- Putas…

De cócoras, deu à manivela e, lentamente, o carro ergueu-se. A pedra atingiu-o por cima da orelha esquerda, abrindo-lhe uma extensa ferida de onde jorrou uma golfada de sangue quente e pastoso.
Natalino bateu com a cara no pneu que retirava e estatelou-se no chão sem proferir um som.
Letícia e Natasha, de boca aberta e cigarro a arder entre os dedos, olhavam Arminda que, segurando uma enorme pedra entre as mãos, tentava controlar a respiração.

- Que caralho! – Foi tudo o que Natasha conseguiu dizer.

Arminda deixou cair a pedra, tirou o revolver a Natalino e as chaves do carro.

- Vocês façam o que quiserem, eu vou fugir.

Descalçou-se e desapareceu, a correr, por entre um campo de milho.

No rádio do automóvel ouviram-se os primeiros acordes de Keep On Running, de Spencer Davis Group.

sexta-feira, março 24, 2006

O Olhar de Arminda (VII)

- Então patrão, que tal é ela? – Natalino sorria; tinha as bochechas vermelhas e erguidas. Certificava-se de que as mesas estavam correctamente postas para o jantar. A um canto, os empregados de sala e da cozinha, jantavam. – Aposto que lhe deu um gozo do caraças, hã?
- Sabes qual é a diferença entre quem tem sucesso e quem não o tem, meu imbecil?
- Uh…!?
- É que quem o tem, pensa antes de agir e quem o não tem, não pensa… depois há os outros, como tu, mas isso…
- Oh, não seja assim…
- Vou-me embora, tenho uns convites para fazer. Amanhã quero isto impecável.
- Mas espere lá, deu-lhe o tratamento de choque ou não deu? – Riu baixinho.
- Esta miúda é especial. – Disse, voltando-se para trás. – Há algo nela, não sei… tenho outros planos para ela…
- Mas você é sempre o primeiro… - Coçou os caracóis.
- Negócios, Natalino, negócios… - Colocou o chapéu de feltro e saiu. Natalino seguiu-o até à porta.
No estacionamento, iluminado à vez pelas luzes do edifício, apenas um carro. Encostado a ele, Albertino fumava num ambiente algo surreal: ele, o carro, o fumo que expelia e se elevava vagaroso no ar, estavam vermelhos, depois azuis, depois amarelos… Trocou um olhar e um aceno de cabeça com Natalino, antes de atirar o cigarro fora e abrir a porta ao patrão.
Eram gémeos idênticos. Não fora um não conseguir estar calado e o outro quase nunca falar, não havia como os distinguir.
A fisionomia parecia ser, aliás, a única coisa que tinham em comum. As funções de cada um na organização, demonstravam isso mesmo: enquanto Albertino resolvia problemas – dizia-se que já tinha morto seis homens -, Natalino era conhecido por os criar.

Arminda deixou correr a água do chuveiro durante quinze minutos antes de se molhar. Inclinou a cabeça para trás e deixou-se ficar, imóvel, a sentir a água tépida cair-lhe no rosto. Tinha sentido uma súbita urgência em se lavar, sentira-se imunda. Achou que, depois de um banho, conseguiria que tudo o que lhe tinha acontecido nas últimas horas fizesse sentido.
A conversa de há pouco tinha-a acalmado. O homem tinha sido simpático consigo, mostrou-se preocupado com o seu bem-estar. Explicou-lhe que ela estava ali para trabalhar e ganhar experiência, como tinha seu desejo ao sair de casa. Que as condições não eram as melhores, mas aquele negócio era assim; que em breve seriam diferentes. Eram precisos sacrifícios!
Sem saber explicar porquê, Arminda tinha-se sentido melhor. Talvez fosse a forma como ele falava, com uma voz doce, calma. Pareceu-lhe até que cantava quando lhe disse que aquelas roupas não eram para ela, de facto; que no dia seguinte lhe iria trazer um vestido novo, lindo. Os sapatos, bom, teriam de ser aqueles mesmo; que os usasse, logo se habituaria a eles.
Por último, a questão do nome. Precisava de outro, um que fosse estrangeiro, com charme, como o das senhoras das revistas, e ele até já tinha um para ela: Roxanne. É um nome de rainha.
Antes de sair, ainda lhe deixou papel de carta e caneta. Teria de escrever para casa – para a mãe não estar preocupada – a contar que estava no Porto e que tudo corria pelo melhor.
No duche, Arminda tomava consciência de que ficara sem saber o que era esperado de si.

Na manhã seguinte não foi Natalino que lhe trouxe o que comer. Uma mulher gorda e cheia de maquilhagem - que tentava, sem grande sucesso, esconder as rugas e uma pele estragada -, entrou-lhe no quarto, de cigarro ao canto da boca.

- Toca a levantar Armi… Roxanne. Temos muito que fazer… eh lá, és mesmo grande, filha… daqui a cinco minutos quero-te vestida.
- Mas… estas roupas… eu…
- Vão ter que servir, para já. Logo, já vestes outra coisa.
- Mas eu…

A mulher já tinha saído, fechando a porta com estrondo.

Teve que se segurar à parede para não cair. Em cima daqueles saltos, media 1,90m e balançava como uma espiga ao vento.

- Eu não sou capaz!
- És capaz, sim senhora. Anda, dá-me a mão.

A descer as escadas ia caindo quatro vezes. Apertou tanto a mão da mulher que a deixou roxa.

O bar tinha um balcão não muito comprido. Atrás dele, garrafas de vários tamanhos e formas, estavam expostas em prateleiras. O fundo era espelhado, multiplicando ilusoriamente as garrafas por dois.
Cercada por sofás, pequenas mesas e puff’s de várias cores, uma pista de dança erguia-se o tamanho de um degrau acima do chão. Era composta por grandes quadrados de um material transparente. Por cima, suspensa do tecto mesmo no centro da pista, uma grande bola de espelhos aguardava ordem para rodopiar sobre si, espalhando os raios de luz a si apontados em todas as direcções. Por agora, reflectia apenas o brilho esbatido do olhar de Arminda.

- É aqui que tudo começa, miúda. Não tem nada que…
- Como se chama, vossemecê? – Interrompeu Arminda.
A mulher soltou uma sonora gargalhada. – Tens razão, nem me apresentei. Todos me chamam de Madame Biju.

Cerca de uma hora depois, quando subiram, Arminda tinha um novo quarto, o numero treze.
O espaço era o mesmo, a casa de banho idêntica, mas a decoração era diferente: um papel de parede em azul claro, com uns relevos simples e um quadro, em que um anjo disparava um pequeno arco e flecha na direcção de uma rapariga, à beira de um rio. Só havia uma cama, era de casal; lá estava a ventoinha no tecto, o mesmo candeeiro, mas não havia cómoda, no seu lugar estavam duas cadeiras. De um dos lados da cama, uma mesa-de-cabeceira e, em cima dela, dois frascos: um anunciava ser Locion Corporal Belleza de Mujer, e o outro dizia ser, Wet
Non Staining Lubricant.
Em cima da cama, um vestido vermelho. De alças, tinha um decote profundo, uma cintura justa e terminava numa saia rodada. As costas ficavam expostas.

Madame Biju sentou-se com Arminda na cama e explicou-lhe com algum detalhe para que serviam aqueles frascos. Arminda protestou, disse várias vezes que não. Andou pelo quarto como um felino enjaulado e acabou sentada no chão, a chorar.
A mulher contou-lhe a história de uma rapariga que um dia, há muitos anos, se tinha visto na situação em que ela agora estava. Contou-lhe como ela tinha aprendido a viver com a situação, como se tinha conformado. Outra coisa não podia ter feito.
Arminda ouviu em silêncio. Sentia-se revoltada.
No final da história tinha-se convencido de duas coisas: que ali, naquele momento, era a parte mais fraca e que a sua história teria um final diferente.

quarta-feira, março 22, 2006

O Olhar de Arminda (VI)

La Bodeguita de Verín era um edifício isolado, à beira de uma estrada secundária, junto ao rio Tâmega espanhol. Construído sob o comprido, tinha dois pisos, albergando o de baixo um restaurante e um bar – com entradas separadas – e o de cima uma pensão.
Todo ele estava iluminado. Centenas de pequenas luzes de várias cores piscavam apesar de ainda haver alguma luz natural.
Uma nuvem de insectos agitava-se freneticamente junto a uma luz vermelha, por cima da entrada do bar, prenunciando o movimento que iria haver mais tarde.
O carro contornou o edifício e estacionou nas traseiras, junto a dois imundos contentores de lixo. O homem saiu e abriu a porta de trás.

- Anda, chegámos, deves estar cheia de fome.

Estava, mas Arminda nada disse, limitou-se a sair e a acompanhar o homem. Reparou que todas as janelas tinham grades.
A única porta das traseiras dava acesso à cozinha, que estava vazia.

- Vais para o teu quarto e alguém te vai lá levar o que comer.

Passaram por uma porta de batentes e entraram na sala do restaurante. Atrás de um balcão, um homem atarracado e gordo, limpava copos de cerveja distraidamente. Tinha a mesma cabeleira encaracolada de Albertino e um bigode farto que lhe escondia a boca.

- Patrão! Nem o ouvi chegar. – Disse ele, colocando o pano ao ombro.
- Estou fodido com vocês, fosse eu um dos gajos do Quintana e já estavas com os miolos espalhados no chão.
- Não diga isso, eu estava aqui a pensar na vida…
- Levas aqui a… como te chamas, mesmo?
- Ar… Arminda. – Balbuciou ela a custo. Tinha a garganta seca e tremia.
- Temos que fazer alguma coisa em relação a esse nome… bom, levas a miúda para o quarto que está vago e aqueces-lhe o que sobrou do almoço.
- Calmeirona ela, patrão.

O piso de cima era uma sucessão de portas num corredor interminável, mal iluminado e estreito. A última porta à esquerda, que dava para as traseiras, tinha o numero 29.

- Chamo-me Natalino. – Disse-lhe ele enquanto fazia rodar um enorme molho de chaves nas mãos. – Este vai ser o teu quarto.

Esperou que ela entrasse e, sem mais, fechou a porta à chave. Do outro lado, ainda disse já volto.
O quarto era um cubículo escuro e rectangular, onde pouco mais cabia que as duas camas e a cómoda que lá existiam. Havia uma janela com vidros opacos que não abria, uma ventoinha no tecto e um pequeno candeeiro que pouca luz conseguia fazer passar pela protecção que tinha. A decoração era composta por papel de parede com cornucópias castanhas gigantes e um quadro em que duas figuras femininas estilizadas deitavam a língua de fora uma à outra.
Arminda reparou que, à esquerda, junto à porta, uma cortina escondia uma outra divisão. Afastou-o, era a casa de banho. Tinha um pequeno lavatório, um espelho, uma sanita e, a um canto, um chuveiro ferrugento fixo na parede por cima de um ralo. O cheiro a canos fazia sentir-se.
Sentiu as lágrimas prestes a cair-lhe quando ouviu passos. Era Natalino.

- Tens aqui carne guisada com arroz e pão. – Colocou o prato na cómoda, agarrou-lhe na mala e saiu, fechando novamente a porta à chave.

Comeu a custo, a carne era rija e sem sabor, o arroz uma papa. Estava tudo frio. Lembrou-se novamente da mãe.
Como não tinha o que beber, abriu a torneira da casa de banho. Após uns roncos e soluços, um líquido acastanhado pingou no lavatório. Mais uns roncos e um fio de água suja caiu, por fim.
Arminda deixou-se cair e não conseguiu suster mais as lágrimas.

À medida que a noite se instalou, os barulhos foram aumentando progressivamente. Ouvia-se musica, ao longe. Ritmos Disco chegavam-lhe abafados.
Parecia haver muito movimento no corredor. Ouviam-se muitas vozes e risos. Conseguiu adormecer já tarde. Sonhou muito.

Estava a remexer nas gavetas da cómoda – todas vazias – quando ouviu um barulho de chaves junto à porta. Natalino entrou com uma bandeja.

- Se precisares de talheres, usa esses que não trouxe outros.

O instinto de Arminda disse-lhe para aproveitar e fugir; a razão disse-lhe que jamais conseguiria chegar à rua. Sentou-se à beira da cama.

- Trago-te aqui uns sapatos e umas roupas para vestires, toma. – Atirou a roupa para cima da cama. – Esta tarde vais tomar banho e vestir isso, o patrão vem ter contigo logo. Tens que estar asseada, ouviste? – Não esperou pela resposta e saiu.

Arminda mirou o prato; era a mesma comida da véspera. As tripas revolveram-se.
Pegou na blusa, estava cheia do que lhe pareceu serem pequenos espelhos redondos. Brilhava.
A saia era mínima, ficava-lhe bem acima do joelho, pensou. Os sapatos eram vermelhos, com a mesma forma dos que via as senhoras usarem nas revistas; tinha um salto fino e muito alto. Jamais seria capaz de andar com aquilo.
Sentada na cama, encostou-se ao canto, com as pernas encolhidas, encostadas ao peito. Pela primeira vez, sabia o que era ter medo verdadeiro.

Não fazia ideia de quantas horas tinham passado, quando ouviu passos no corredor. Mantinha-se na mesma posição. Fechou os olhos com força.

Silêncio.

Abriu o olho esquerdo, devagar, a medo. Continuava sozinha, o quarto envolto em escuridão. Inspirou profundamente.

Uma chave rodou e a porta abriu-se devagar, sem fazer barulho. Um ténue fio de claridade prolongou-se até ela, iluminando-lhe metade do rosto. O coração saltava-lhe dentro do peito.
Na moldura da porta, distinguiu uma silhueta escura. Era enorme.

terça-feira, março 21, 2006

O Olhar de Arminda (V)

Mais do que os constantes solavancos, era uma indescritível mistura de cheiros que estava a deixar Arminda enjoada. A cabine da camioneta tresandava a suor e a gasóleo mal queimado. Abrir a janela tinha-se revelado uma tarefa impossível, o vidro há muito que não baixava.
Se a principio ainda tentou responder às constantes observações e perguntas parvas de Laureano, ao fim de uma hora de viagem passou apenas a emitir uns sons guturais sempre que ele lhe dirigia a palavra. Tinha medo que, se abrisse a boca, vomitaria imediatamente.

- Estamos quase a chegar. – A frase saiu a Laureano como se estivesse a pensar alto, distraído.
- Hum?
- Uh… vamos fazer uma paragem… o tipo de quem te falei vai estar à nossa espera ali adiante.

Arminda não estava à espera disso. Era uma alteração aos planos. Só era suposto encontrar-se com essa pessoa no Porto.
Fixou o olhar na estrada à sua frente e tentou recordar a conversa, três meses antes, que a fazia estar ali.
Laureano tinha-lhe levado chocolates dessa vez. Ela estranhara a oferta, mas depois percebeu a razão. Era uma ocasião especial.

* * *

- Tu já fizeste 18 anos, já és maior… não achas que está na altura de sair deste buraco? Não gostavas de ir viver para a cidade? Não foste feita para ficar aqui, esquecida… - Estavam, mais uma vez, atrás da igreja, a tentar passar despercebidos.
- Que diz vossemecê?
- Eu conheço umas pessoas… sabes, um senhor, rico… com negócios lá fora. Ele ajuda pessoas a emigrar… er… quer dizer, se fosse isso que quisesses. De certeza que ele podia ajudar uma rapariga bonita como tu a arranjar um trabalho bom. Com esse corpo…
- A minha mãe não ia deixar.
- Não ia, não ia… eu sei… mas se tu lhe dissesses que ias ter com alguém de confiança…
- Como se vossemecê fosse de confiança. – Interrompeu Arminda.
- Oh, comigo não… tinhas de inventar uma história… e eu sei que se quiseres, és capaz disso. Alguém que te ajudaria lá…
- Sou muito nova.
- Isso é bom… olha, podias até aparecer nas revistas. Este senhor conhece muitas pessoas das revistas, podia levar-te às festas…

Arminda esforçava-se por parecer desinteressada, tamborilando os dedos na caixa dos bombons, mas o pensamento estava longe, naquilo que via nas revistas e o olhar traia-a. Isso até Laureano conseguia perceber.

- No final do mês que vem, vou ter que vir sozinho a Bragança, ias lá ter comigo. Acredita em mim cachopa, é um negócio de confiança.

* * *

- Cabrona, pá! – O grito de Laureano trouxe Arminda de volta. As palavras negócio e confiança, matraqueavam-lhe o pensamento.
Durante muito tempo não tinha dado esperanças a Laureano, recusara sempre o seu plano. Até que, há duas semanas, na última visita dele antes de ir sozinho a Bragança, lhe tinha dito que aceitava, iria para o Porto – isto apesar de a decisão a ter tomado logo no primeiro dia.
Antes, nunca pensara naquela aventura como um negócio - que Laureano não era de confiança, isso sabia.
Pela primeira vez, questionou a sua decisão.

– Viste aquela lebre a atravessar-se na estrada? Quase que levávamos daqui o almoço! – Exclamou Laureano passando a língua pelos lábios.

Depois de mais uma chiadeira ensurdecedora, a Bedford deteve-se à beira da estrada. Arminda saltou logo para o chão, enchendo os pulmões de ar fresco. Estava pálida. À sua frente, uma placa indicava o nome de uma localidade: Faiões.

- Onde estamos? – Perguntou ela.
- Perto de Chaves. O senhor de quem te falei vem aqui ter. – Laureano parecia nervoso. – Vou mijar. – E desapareceu atrás de uns arbustos.

Voltou pouco depois, limpando as mãos às calças. Começou a andar de um lado para o outro, agitado.
Arminda reparou nos casebres da aldeia, eram feios e tristes. Não ia gostar de ali viver, pensou.
Um carro preto, grande, que vinha em sentido contrário, atravessou a estrada e, levantando uma nuvem de pó, parou à frente da camioneta. Laureano aproximou-se imediatamente, olhando para Arminda com uma expressão que queria dizer não saias daí.
A porta de trás do carro abriu-se e um homem alto, de óculos escuros e fato, saiu. Tinha um ar distinto. O cabelo grisalho, penteado para trás e a maneira como se movia, poupando todos os movimentos supérfluos, conferia-lhe uma pose igual à dos homens que Arminda via nas revistas.
Laureano estendeu-lhe a mão mas o gesto foi ignorado.

- É aquela a rapariga de que lhe falei.
- Tem bom ar. – Respondeu o homem depois de a mirar. - É saudável?
- É moça do campo, bem alimentada, não vê o tamanho dela, é quase da sua altura… aquelas pernas… - estremecia sempre que pensava nas pernas dela.
- Sim, parece que desta vez não fizeste borrada. De certeza que ela ainda é…
- Oh sim, sim, como lhe prometi, ela nunca saiu da aldeia… você vai poder confirmar por si…
- Toma lá. – Interrompeu-o o homem. Tirou um rolo de notas do bolso e entregou vinte contos a Laureano. – Como combinado. – Os olhos do vendedor brilharam. – E agora põe-te a mexer.

A camioneta partiu e, depois da nuvem de pó assentar, Arminda viu-se frente-a-frente com aquela figura, enorme, encostada ao carro, com os pés cruzados. Sorria-lhe, e o sorriso pareceu-lhe magnífico.

- Aproxima-te, não tenhas medo.

No chão, entre os dois, estava a mala de Arminda. Apanhou-a e, hesitante, foi ter com ele. As coisas não estavam a correr como previsto mas, e isso percebeu facilmente, naquele momento não havia nada a fazer, estava entregue aquele homem.

- És muito bonita. Esses olhos, o rosto… lembras-me alguém… mas anda, entra no carro, vou levar-te para um sítio onde podes descansar, depois conto-te tudo sobre a tua nova vida. Tens fome, queres alguma coisa?

Arminda apenas fez um gesto de negação com a cabeça. O homem segurava na porta e ela entrou para o banco de trás. Ele foi sentar-se à frente, ao lado de uma cabeça enorme, cheia de caracóis pretos.

- Este é o Albertino, o meu motorista.

Arminda não falou, Albertino também não. Sem sequer se virar, ligou a ignição e seguiram viagem.
Num cruzamento próximo, tomaram a direcção de Espanha.

domingo, março 19, 2006

O Olhar de Arminda (IV)

Francelina observava a filha ao longe, via-a recolher as vacas à loja – nome dado na aldeia à parte da casa reservada aos animais. Percebia nela a força e a determinação que um dia ela própria se vira obrigada a arrancar de dentro de si. Em Arminda isso era natural, tinha nascido com ela.
Quis sorrir mas não conseguiu. Sabia que essa mesma força e determinação da filha era o que, um dia, a ia levar a partir.

E assim foi.

Sentada num banco, Francelina estava sentada à janela. Tinha o olhar preso na rua, numa enxada que a filha se esquecera de guardar.Com os cotovelos apoiados no pequeno parapeito e as mãos juntas, parecia rezar.
Tinha parado de chover há poucos minutos. Nuvens escuras corriam velozes no céu, empurradas por um vento frio que soprava vindo de Espanha. Apesar de serem três da tarde, a pequena divisão, que servia de cozinha e de sala, estava envolta em semi-escuridão. A luz que tinha jorrado da lareira extinguira-se por falta de combustível sem que Francelina se tivesse apercebido disso.
Um relâmpago cortou o ar bem perto da aldeia, iluminando o rosto da mulher, que levantou os olhos do solo. As rugas marcavam-lhe a expressão. Os olhos brilhavam. Estava serena.
Seguiu-se o som do trovão, forte, próximo, fazendo-a estremecer.

- Mãe… - Arminda tinha saído do seu quarto e estava agora a meio da sala.
- Sim, filha? – Respondeu sem se virar.
- Vou viver para o Porto.
- Quando?
- Daqui a uma semana.
- É isso que tu queres?
- Sim, mãe…
- Vens visitar-me às vezes?

Arminda não respondeu, foi abraçar-se à mãe.
Também lá fora a água começou a cair.

Contou, depois, como tinha lido numa revista que havia uma fábrica de confecções de Vila Nova de Gaia a contratar raparigas. Que tinha escrito a Fernanda, sua ex-colega de escola, cujos pais tinham ido viver para o Porto há dois anos – e que a mãe bem conhecia -, para a ajudar a procurar um quarto para alugar. Que tudo ia correr bem.

Dez dias depois, ainda o dia não tinha nascido, estava Arminda, no seu quarto, a olhar para as roupas que tinha escolhido e colocado em cima da cama. Não tinha sido uma escolha difícil, pouco mais roupa tinha que aquela.
Pegou no candeeiro a petróleo e ajoelhou-se. Espreitou para baixo da cama e puxou uma pequena mala de cartão empoeirada e algo bolorenta. Tinha sido dada à mãe por um seu tio que vivia em Chaves. Era às riscas, em vários tons de castanho, já sumidas.
Limpou-a o melhor que conseguiu e arrumou algumas revistas e a roupa. Deixou de fora uma saia preta de tyrilene, com um macho, uma blusa pérola e um casaco de malha beige; ofertas de sua mãe, que as comprara à mulher de Laureano, dias antes. Sapatos, só tinha um par, sem salto, em pele castanha.
Vestiu-se e guardou o dinheiro que ia levar, no bolso. Bebeu uma caneca de leite e uma fatia de pão de milho com mel. Guardou na mala um pequeno farnel preparado pela mãe, e saiu de casa no preciso momento em que o primeiro raio de sol venceu o contraforte este da Serra. Estava pronta para a sua nova vida.

O plano era simples: iria de boleia até Bragança com a vizinha Leontina, que todos os meses lá ia à farmácia. Aí, apanharia a carreira até ao Porto, onde chegaria já de noite.

A despedida da mãe foi breve e quase silenciosa: Francelina tomou a cara da filha entre as suas mãos e olhou-lhe nos olhos; era aquele olhar de quando descia da Serra, longínquo. Lembrou-lhe o olhar do pai da sua filha e isso assustou-a.

- Prometes que tens cuidado?
- Sim, mãe.

Beijaram-se e Arminda entrou no carro.

Passava um pouco das nove horas quando a senhora Leontina e o marido deixaram Arminda à porta da central de camionagem.

- Ficas bem rapariga, não queres ajuda para comprar o bilhete?
- Obrigado mas não, dona Leontina, eu desenrasco-me.
- Então boa viagem.

Arminda não entrou para comprar o bilhete. Ficou a olhar para os carros que passavam e para os prédios à sua volta. Tudo aquilo era novidade para si mas não estava assustada. Como ainda tinha algum tempo, deu uma volta pelo quarteirão, observando tudo com atenção e algum espanto.
De volta à central de camionagem, esperou. Segurava na pequena mala com ambas as mãos e espreitava para um lado e para o outro.
Dez minutos depois ouviu o barulho ao longe. Sim, é a camioneta, pensou para si. Fixou os olhos naquele ponto azul que se aproximava no meio duma nuvem de fumo.
Reconheceu a camioneta: era a Bedford de Laureano que se aproximava.
Por entre uma chiadeira infernal, o veículo deteve-se junto a si. Arminda não se mexeu.
Abrindo a porta por dentro, a cara barbuda e suja de Laureano, apareceu à sua frente. Sorria, mostrando os seis dentes que tinha.

- Não estavas há muito tempo à minha espera, pois não, carinha laroca?

quinta-feira, março 16, 2006

O Olhar de Arminda (III)

A princípio, não deu importância; estranhou, apenas. Até que uma noite, deitada na sua cama, no sótão, se lembrou de uma conversa ouvida, anos atrás, entre a sua mãe – que Deus a tenha – e a vizinha Ofélia:

- Eu devia ter percebido. – dizia a vizinha. – O que vossemecê quer…
- E não sabia que a falta das regras é sinal de que podia estar prenha?
- Soubesse eu…
- E agora mulher?
- A ver se ainda vou a tempo do desmancho.

Instintivamente, levou as mãos à barriga. E se eu… Afastou o pensamento com um movimento da mão, como se estivesse a enxotar um mosquito.
À medida que os dias passavam, não conseguia pensar noutra coisa. Aquele frio na barriga que tinha sentido nessa noite, dias atrás, teimava em não passar. De alguma maneira, sabia que estava grávida.
No domingo seguinte, contou a Joaquim.

- Rapariga, rapariga… o que me contas tu. Logo hoje que tinha uma noticia para te dar… como as coisas são. – Segurou na mão dela. – É que recebi na sexta-feira guia de marcha para Lisboa, vou embarcar daqui a 10 dias para África, parece que há por lá guerra.
O raciocínio rápido era uma das características de que Joaquim mais se orgulhava de possuir. A lábia, era outra.
- Mas vais ver que isso não é nada, que o sangue ainda te vem.

Francelina não tinha tirado os seus olhos dos dele. Não ficou a saber mais, no entanto, ele tinha-os sem vida; cinzentos, frios e duros como aço. Não lhe viu emoção.
Mais frio na barriga.
Depois de lhe dar um beijo na face, Joaquim retirou a carteira de um bolso interior do casaco, abriu-a e procurou algo. Entregou-lhe um pequeno quadrado de papel, recortado em pequenas ondas. De um lado, umas letras escritas à mão - Francelina não sabia ler -, do outro, cercado por uma moldura branca, o rosto dele. Era uma foto.
Joaquim estava muito bem penteado, tinha aquele sorriso magnífico dele. Parecia olhar para o infinito. Ali, na foto, o olhar era diferente: expressivo, vivo.

- Para que não te esqueças de mim.

Após juras de amor eterno e de um regresso em breve, Joaquim desculpou-se com a trouxa para fazer e foi embora.
Francelina nada disse. Limitou-se a vê-lo afastar-se.

Esperou até ao mês seguinte, talvez tivesse tido o período e apenas não se lembrava disso. Um dia, deixou de se tentar enganar a si própria e contou ao irmão.

Depois de muito drama e lágrimas, o irmão procurou Joaquim. Com a foto, foi ao quartel.

- Olha quem é ele! – Exclamou o oficial de dia. – Você ‘tá tramado, amigo. Esse daí é um grande artista. Deixe-me adivinhar, deve-lhe dinheiro… não é o primeiro, deixe. Foi passado à Reserva compulsivamente há mais de seis meses… um aldrabão, roubava munição para vender em Espanha. E veja lá que parece que nem pode voltar para Lisboa, que se o apanham por lá lhe limpam o sebo.

Após aquilo, o irmão foi da opinião que ela devia abortar. Francelina disse que sim mas, depois, mudou de ideias. Ia voltar para a aldeia.

- Estás louca… matavas o pai de vergonha… impossível… o falatório… eu não deixo…
- Tu vais ajudar-me, irmão. A criança vai nascer aqui e vai viver em tua casa até fazer um ano. Nessa altura, vou enviuvar e regressar então a casa. Ninguém vai saber da mentira.

E assim foi. Mandou-se para a aldeia notícia do casamento – coisa simples, sem direito a festa que os tempos eram difíceis -, da gravidez – uma menina linda e saudável - e do infeliz acidente que vitimou o pobre rapaz, tão novo…
Feliz coincidência, foi o pai a propor que Francelina voltasse.

No regresso a Chaves, após deixar a irmã e a sobrinha, o irmão sentiu remorsos. Não tinha sido capaz de dizer à irmã o quanto se orgulhava dela.
Tinha levado, pouco tempo antes, uma miúda frágil e assustada e trazido, agora, uma mulher forte e determinada.

quarta-feira, março 15, 2006

O Olhar de Arminda (II)

No estrangeiro tudo era bonito: havia casas grandes; carros lustrosos; as senhoras eram louras; os homens bonitos e sempre muito bem vestidos, de cabelo arranjado; havia muitas festas no estrangeiro. Aquilo sim, era vida. A vida que Arminda queria.

- Onde vais tu arranjar essas porcarias, rapariga?
- É a professora Adilia que as traz do Porto, mãe… já lhe tinha dito. – Sabia dar um tom convincente às mentiras que dizia, quando queria.
- Vou ter de conversar com essa professora, vou, vou… - ameaçava a mãe, mas Arminda sabia que ela nunca o faria.
- Larga isso e vai ajudar os teus primos a trazer as vacas, anda. Sempre a sonhar acordada. Ainda vai ser a tua perdição!

No seu íntimo, Francelina sabia que já perdera a filha. Era uma daquelas certezas que se lhe instalavam nas tripas. Não o sabia explicar mas, quando sentia aquele frio na barriga, nunca se enganava.
Uma vez tinham-lhe dito que era o “sexto sentido”. Não lhe adiantou muito, mas ficou a saber o que chamar aquela sensação.
À porta de casa, a ver a filha a caminho do campo, Francelina tentava resignar-se à ideia de que um dia a filha ia partir. Esta não nasceu para ficar quieta… sai ao pai.

Arminda nasceu da inocência. Era a sua mãe pouco mais velha que ela quando, por altura da apanha da azeitona, um seu irmão, que vivia em Chaves, convenceu o pai a deixar que ele levasse Francelina consigo. Que por lá havia muito sitio onde trabalhar como criada de dentro; que até conhecia uma família de bem que lhe dava cama, comida e ainda uns dinheiros no fim de cada quinzena.
Com mais cinco filhos a seu cargo, não foi difícil convencer José a deixar partir a filha. E Francelina foi. Contrariada. Arrancada do único sítio que conhecia.
Não lhe perguntaram se queria ir, mandaram-na só fazer a mala, no dia seguinte, bem cedo, iria para Chaves.

Numa coisa o irmão tinha razão: trabalho havia muito. Quase sempre fechada em casa, Francelina era triste. Queria voltar para Espinhosela, para o campo, queria andar na rua, queria tratar do campo e dos animais.
Mas enquanto não voltava, tratava da casa dos patrões e, um dia, ao iniciar o almoço, viu-se sem cebolas para o refogado. Saiu apressada para ir ao mercado. Sem que o soubesse, ia ao encontro do seu destino.
Ao longo da vida, muita espécie lhe fez a maneira como tudo aconteceu, primeiro a inesperada mudança para Chaves e, depois, como uma simples ida ao mercado lhe havia de mudar a vida. Passou a estar muito atenta às coisas simples e desconfiada em relação às inesperadas.
Em particular, aos homens.

- A menina vai muito carregada, deixe-me ajudá-la.
Aquela voz soou-lhe como música. Ao virar-se, tendo o sol pela frente, apenas viu a silhueta dele. Era muito alto, a cabeça grande, a terminar num estranho triângulo. À medida que os olhos se foram habituando aquela luz, viu-lhe os olhos, muito claros, seriam azuis? Talvez verdes… o sorriso enorme, os lábios grossos, os dentes perfeitos.
O triângulo, percebeu depois, era um bivaque. Joaquim, assim era o seu nome, estava fardado. Soldado no Regimento de Infantaria de Chaves, era um Lisboeta de Alfama, ali colocado como castigo por insubordinação em Mafra.
Detentor do charme característico dos malandros, Joaquim tinha decidido que aquela sopeira tímida e encolhida com quem se cruzou havia de ser sua… e estava habituado a ter o que queria, no que dizia respeito a mulheres.

Nem sequer foi difícil, Francelina percebia pouco de homens e tinha ficado fascinada por aqueles olhos e por aquele sorriso.
Apesar de algumas vigorosas negas dela, acabou por a acompanhar a casa. Na tarde do domingo seguinte, única altura em que ela tinha algum tempo livre, esperou-a à porta para irem passear.
Em menos de um mês, Francelina tinha sido sua.

segunda-feira, março 13, 2006

O Olhar de Arminda (I)

Duas características físicas faziam Arminda Maria de Jesus sobressair: sempre foi a mais alta entre as crianças da sua idade - mais alta que qualquer dos rapazes - e também a única nas redondezas com olhos claros.
Com 13 anos era já a mais alta habitante de Espinhosela, a sua aldeia natal, cravada nos contrafortes da Serra de Montezinho. Aos 16, media 1,80m.

Sua mãe sempre atribuiu os desmandos de Arminda a tão inusitado tamanho. Ela sempre foi grande demais para a aldeia… é até grande demais para a Serra…
Na sua maneira simples de ver as coisas, a sua mãe tinha razão, Arminda sempre se sentiu muito maior que a Serra em que nasceu e cresceu.
O seu passatempo favorito, desde tenra idade, era subir ao sítio mais alto que conhecia e ali ficar, a olhar para terras de Espanha, a imaginar o seu futuro, longe dali. Voltava a casa com o horizonte gravado no olhos.

No início dos anos 70, Espinhosela, como a maioria das aldeias do interior, vivia em isolamento. As condições de vida eram pouco mais que miseráveis, o atraso enorme. As notícias chegavam tarde e o interesse por elas era pequeno. Arminda era quem mais queria saber coisas do que se passava “lá fora”.
Não lhe foi difícil conseguir que Laureano Costa, vendedor ambulante de retrosarias e todos os artigos para o lar, que visitava a aldeia quinzenalmente para vender a partir da traseira da sua camioneta, lhe trouxesse umas revistas do Porto.
Aprendeu muito nova a fazer uso dos seus atributos: corpo bem torneado; pernas a perder de vista; um sorriso inocente como só ela sabia fazer; olhos claros de uma cor indefinível, rodeados por umas longas pestanas que, ao piscar, deixavam o vendedor ambulante afogueado.
Enquanto as senhoras da aldeia se reuniam na traseira da camioneta Bedford, entretidas nas compras e em trocar dois dedos de má-língua com a mulher de Laureano, Arminda colocava-se no adro da igreja, de mão dadas no regaço, cabeça baixa, enquanto com o pé ia raspando na terra batida. Laureano não conseguia tirar os olhos dela, depressa arranjava uma desculpa e escapava-se para uns baldios atrás da igreja com as revistas debaixo da roupa, ao encontro da moça.

- Tens sorte, menina, desta vez trouxe-te a Flama e uma Paris-Match que uma cliente me deu.
- O que é isso?
- É uma revista do estrangeiro. Não se percebe nada, mas tem umas fotografias bonitas.
- Deixe ver…
- Primeiro quero o meu beijinho.

E lá Arminda fechava os olhos e sustinha a respiração, tentando evitar ao máximo o cheiro a suor e o bafo a vinho de Laureano, e lhe dava um beijo por cima da barba por fazer.

- Quando é que me deixas dar-te um abracinho?

Num movimento rápido, Arminda puxou pelas revistas e desatou a correr, limpando os lábios à manga da blusa.

- Arisca esta miúda, um dia perco a cabeça…

quinta-feira, março 09, 2006

Um Momento de Raiva

Arnaldo Faneca era um conformado. Sempre o fora.
De tão apagado, tornava-se quase transparente. Nunca era assunto de conversa entre os seus conhecidos - que amigos não tinha. Fosse ele um dia, por hipótese, o tema de conversa e ninguém seria capaz de dizer que se caracterizava por ser um rebelde, por protestar, por se manifestar. Não, Arnaldo era até conhecido pelo oposto: solitário, não levantava ondas, não questionava nada, nunca se zangava.
Basicamente, não se dava por ele.

Quer dizer, dar até dava, mas por outras razões. Sendo funcionário publico e estando a conjuntura pouco favorável à classe, Arnaldo sobressaía quando era o único a não aderir às greves.
Bem vistas as coisas, nestas ocasiões, ele até era tema de conversa entre os colegas. Sacana e cabrão eram os termos mais simpáticos com que o mimoseavam.
O que ninguém imaginava, é que, pasme-se, Arnaldo não aderia às greves por inconformismo! Achava que se todos faziam, ele devia ser do contra e não aderir. Não gostava de seguir a carneirada mole, como chamava aos que não pensavam por si. É que ele, Arnaldo Faneca - detestava o nome -, ao contrário dos seus colegas, considerava-se uma pessoa esclarecida, informada e com sentido crítico. Só não o demonstrava, paciência.

Aos poucos, foi-se cansando da sua imagem e da troça dos colegas nas suas costas. Revoltou-se.
Era verão, inicio de tarde, um calor abrasador – no seu diário, irá escrever, dias depois, que sentiu “o miolo fritar”.
Tinha aproveitado a hora de almoço para ir à loja da TMN da Avenida da República, para que lhe desbloqueassem o telemóvel (como não o usava por não ter a quem ligar, tinha-se esquecido do PIN).
Tirou a senha 85; no mostrador, que indica o número em que vai o atendimento, piscava o 71; ar condicionado avariado, respirava-se com dificuldade. Meia hora depois, apenas duas pessoas tinham sido atendidas. Começou a sufocar.
Os miúdos que faziam o atendimento pareciam mais preocupados em estar na galhofa uns com os outros do que em despachar as pessoas.
Quando um cliente saiu e o rapaz que o atendeu se pôs ao telefone em vez de chamar a pessoa seguinte, saltou a tampa ao Arnaldo. Atirou com o telemóvel ao mostrador – errando o alvo, mas estilhaçando o Nokia em mil pedaços, tendo um deles ido cravar-se no sobrolho da cliente 80. – e chamou filho da puta, individualmente e de dedo apontado à cara, a cada um dos empregados da loja.
Depois, virando-se para os estupefactos clientes – agora encostados a um canto, com medo dele -, berrou: Foda-se, cansei… querem inconformismo? Pois é isso que vão ter a partir de agora! Aqui o Arnaldo Fan… (engoliu em seco) vai passar a por a boca no trombone e a chamar os bois pelos nomes…

Ia dizer mais qualquer coisa, mas sentiu uma dor muito forte nos rins que o forçou a dobrar-se para a frente. Atrás dele, o segurança da loja, franzino e de aspecto juvenil, com uma barba mal semeada e por fazer (contrariando, assim, o regulamento interno da Prosegur), tinha-lhe dado um soco ao fundo das costas que o paralisou – um truque aprendido nas Galinheiras e que já o tinha safo de alguns apertos.
Salta de trás do balcão o empregado que se tinha posto ao telefone há pouco, e espeta uma tal biqueirada no flanco do Arnaldo, que lhe colapsa duas costelas contra a pleura. Chama lá nomes agora, pá…

Mas o Arnaldo já não consegue dizer nada, arfa cheio de dores, procurando desesperadamente levar oxigénio até aos pulmões.
Pobre diabo, até uma velhota que tinha entrado na loja no preciso momento em que ele se tinha posto aos berros, e que não sabe o que se passa, lhe baixa o sarrafo umas quantas vezes na cabeça. Seu animal, vir para aqui assaltar as pessoas… toma… toma… desgraçado…

Todo partido, na ambulância a caminho de Santa Maria, ia o Arnaldo a pensar que isto de ser subversivo fazia mal à saúde.

segunda-feira, março 06, 2006

O Baloiço (fim)

José Miguel Antunes
Advogado

Exma. Sra.
Patrícia Fonseca Costa
Rua xxxxxxxxxxxxx, 62 2º
1500-256 Lisboa

Registado com AR

Porto, 2 Fevereiro 2006

Assunto: Testamento.

Exma. Sra.,

Venho por este meio informá-la que seu pai, e meu cliente, Artur Fonseca, me encarregou em vida de ficar fiel depositário do seu testamento.
Em virtude do seu falecimento, no passado dia 31 de Janeiro, compete-me contactá-la, na qualidade de única herdeira, para se proceder à abertura do referido testamento e, assim, dar cumprimento às suas últimas vontades. Pelo que agradecia me contactasse pelo telefone abaixo indicado.

Os meus respeitosos cumprimentos.

* * *

Primeiro, o choque; saber assim da morte do pai. Depois, a consciência de que, ao fim de 9 anos a ignorar a sua existência, outra coisa não seria de esperar. Por fim, a emoção, que não conseguiu evitar.
O chão pareceu fugir-lhe debaixo dos pés. Sentia o quê, afinal? Não tinha perdoado ao pai. As razões da sua saída de casa estavam presentes, ainda. Tinha seguido com a sua vida e deixado o passado para trás. Bem para trás. Não era, por isso, suposto não sentir nada de especial?
Mas sentia algo. Foi invadida por um sentimento de terror: e se tivesse sido injusta? Sentou-se e chorou, chorou muito.

O advogado acedeu a recebê-la no sábado. Contou-lhe como o seu pai o tinha chamado, mais um notário, ao hospital para lhe ditar o seu testamento. Que, apesar de lhe ter explicado que isso não seria necessário uma vez apenas tinha uma herdeira, o pai tinha feito questão em o fazer.
Contou-lhe também da carta que ele havia ditado para lhe ser entregue, uma vez que já não conseguia escrever.

Rodou a chave de casa e entreabriu a porta. Um aroma característico invadiu-lhe o olfacto. Tinha-se esquecido dele; era o odor particular da sua casa.
Abriu todas as janelas para deixar entrar o sol ameno daquela manhã de domingo. Poucas alterações haviam desde o dia em que tinha saído de casa.
Reparou nas várias molduras com fotos suas, do marido e da filha, tiradas ao longe. Ficou confusa, não percebia aquilo. Lembrou-se então do texto do testamento: vais encontrar algumas respostas para as perguntas que te assaltarem.
Subiu ao primeiro andar. Em frente às escadas, o quarto. Na porta, continuava colado o sinal de trânsito: sentido proibido. Entrou. A única diferença em relação à memória que guardava dele, era a cama estar feita. Em cima dela, 3 caixas de sapatos com envelopes por abrir.
Retirou um deles, a meio do envelope, escrito em letras garrafais pela sua própria mão leu DEVOLVER AO REMETENTE. Tinha escrito aquelas palavras centenas de vezes ao longo dos anos. Uma lágrima rolou-lhe pela face.

Sentada à mesa da cozinha, viu o último raio de sol desaparecer, escondido pela moradia vizinha. Fechou os olhos.

Tentava procurar um sinal no facto de fazer, precisamente naquele dia, 9 anos em que tinha atravessado aquela cozinha de olhos cerrados pela última vez. Apenas uma daquelas ironias em que a sua vida parecia ser fértil?

Na mão tinha agora o envelope com a última carta do pai, ditada ao advogado. Ia abri-lo quando um grito a fez olhar para o jardim.
No baloiço, empurrada pelo pai, Carolina gritava de felicidade. – Mais alto papá, mais alto…

Ficou a olhar para ela aquilo que lhe pareceu serem horas infinitas.

Fim

Nota: Este texto foi inspirado por duas personagens a que o Clint Eastwood deu vida no cinema: Luther Whitney (Absolute Power) e Frankie Dunn (Million Dollar Baby).

sexta-feira, março 03, 2006

O Baloiço (parte 5)

Amadora, 15 Maio 2004

(…)
Pois é, confirma-se: é mesmo cancro no estômago. Menos mal, afinal não era dos meus cozinhados.
Estou a manter uma atitude positiva quanto a isto, fica sabendo. Aquele pessimista que conheceste, já passou à história. O médico diz que a radioterapia – e uma operação a que não devo escapar -, devem resolver o problema.

Não sou nada religioso, como sabes, mas, no outro dia, entrei numa igreja ali para os lados do Chiado. Acho que nestas alturas acabamos por nos socorrer de tudo…
Não disse nada enquanto lá estive, não fui capaz. Sentei-me e ali fiquei, no fresco. Desconfio que nem me atrevi a pensar. Pareceu-me um grande descaramento, ao fim de tantos anos, me por a falar com Deus, ou com Jesus, ou fosse com quem fosse – mas eles perceberam a minha presença ali, não achas?

Dá um beijo nessa minha neta linda. Aquilo é que ela já corre no recreio, nisso, sai ao avô.

O teu pai.

[…]

Amadora, 8 Outubro 2004

Patrícia,

Tudo parece ter corrido pelo melhor. Soube hoje o resultado dos últimos exames: não há vestígios do tumor. Agora é seguir à risca todos os conselhos médicos – o que vou fazer – e aproveitar bem a vida. Nada como a eminência da catástrofe para apreciarmos as coisas boas que nos restam.
Só tenho mesmo esta amargura da nossa relação, mas as coisas são como são.

Dá os parabéns à pequena, que de pequena não tem nada.
(…)

* * *

O barulho de um carro a estacionar junto à vedação do jardim, fê-la levantar os olhos cansados das cartas.
As sombras alongavam-se dentro da cozinha. Tinha perdido a noção das horas, a luz era já mais fraca.

- Mamã, mamã… - gritava Carolina junto à vedação de madeira.
Patrícia atravessou o pequeno relvado e abriu a pequena porta – lembrou-se da última vez que tinha feito aquele gesto.
- Como estão os meus mais que tudo? – Perguntou depois de beijar a filha e o marido.
- Um baloiço! – Exclamou a miúda, correndo para o limoeiro. - Posso, posso?
- Alexandre, vê se ainda está em condições. Se estiver, fica aí com ela mais um bocadinho, que eu já não demoro.
- Esses teus olhos…
- Vai lá, depois falamos. – Virando-se para a filha, disse: - E nada de tirares o casaco, está muito frio.
- Parece em condições, aguentava comigo. Carolina, olha aqui este desenho tão giro no assento. Um dia vais ter que me ajudar a pintá-lo de novo.

Patrícia voltou para dentro. Já só havia 5 envelopes na caixa.

* * *

[…]

Amadora, 18 Setembro 2005

(…)
E agora as más notícias: tenho outro tumor, agora no pâncreas. Já sei disto há umas semanas mas não quis dizer nada, acho que estava à espera que não passasse de um engano. Não é.
Decidi voltar para casa. Já tratei de tudo, mais uma semana e volto para cima. Vou ser acompanhado no IPO do Porto, prefiro as viagens de Braga para lá do que passar por todo o martírio que me espera nesta cidade, que não é a minha.
Espero que não penses que deixei de querer saber de vocês. É só que há coisas que… olha, não sei explicar, sinto que preciso ir para casa.

Vai ser muito doloroso a última vez que vos for ver. Espero que não o seja, que vocês me vão lá visitar.
(…)

[…]

Porto, 25 Janeiro 2000

(…)
Ontem fiquei internado, já não me deixam ir a casa. Bem os mandei à merda, mas nada feito, aqui estou, a vegetar.
(…)
Essa miúda deve estar enorme, não? As saudades que tenho de vocês. Até do Alexandre, vê lá.

Se quiserem – e puderem – aparecer, estou no piso 5, sala 2, cama 4.

Desculpa a letra, mas estou entubado e as forças já não são as mesmas.

O teu pai.

quinta-feira, março 02, 2006

O Baloiço (parte 4)

[…]

25 Outubro 1998

Filha,

Espero que não te zangues comigo, mas estou a viver em Lisboa. Isto é, arrendei um T1 na Damaia, que em Lisboa não conseguia arrendar nada com a pensão de invalidez. Espero, também, que não te zangues por ter descoberto a tua nova morada.

Não sei como aguentas esta vida aqui em baixo, é tudo caríssimo e uma confusão sem fim. Um horror! Vivo na esperança que mudes de ideias e voltes para Braga – não me desfiz da nossa casa, não seria capaz; um dia vai ser tua.
Fiquei muito contente quando conseguiste esse emprego na empresa que vai gerir os terrenos da Expo. Sempre soube que te ias safar bem, tu és muito inteligente.
Se bem que a arranjar namorados, nem por isso. Então agora é um oculinhos? Não o achas com ar demasiado intelectual para ti? Aposto que é daquele partido que apoia os maricas.

Eu estou bem. Vou indo. Habituar-me a esta mudança é que não está a ser fácil, mas eu aguento-me, quero estar perto de ti.

O teu pai

* * *

O toque do telemóvel assustou-a. Estava incrédula com as atitudes do pai. Aquele não era o homem que tinha conhecido. Mudar-se para Lisboa, incrível! Custava-lhe a crer.

- Mamã… o pai quer saber se ainda demoras.
- Vou demorar sim, Carolina. A mãe precisa tratar aqui de umas coisas. Passa o telefone ao papá.
- Diz.
- Tens que lhe dar o almoço e entretê-la, eu ainda vou demorar por aqui.
- Então passa-se algo…
- Conto-te depois.

* * *

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Amadora, 2 Março 2001

Com que então vou ser avô. Estou radiante, nem calculas. E eu que achava que o oculinhos só disparava tiros de pólvora seca.
Ah valente!, está a revelar-se um tipo às direitas – ironia minha, que ele não engana ninguém. Olha lá, ele vai cortar aquelas barbas algum dia? Será promessa?
Tu cuida de ti, nada de esforços. Achas que vai ser rapaz? Era bom.
(…)

PS – O que eu digo do Alexandre é brincadeira, ele é bom moço e eu sei que gostas muito dele. Ele também gosta muito de ti, acredita.

[…]

Amadora, 5 Outubro 2003

Patrícia,

Até parece mentira, mas a Carolina já vai fazer 2 anos para a semana. Está cada vez mais parecida contigo.
No mês passado estive quase a meter-me com vocês, no Zoo, enquanto assistiam aos golfinhos. Custou-me imenso estar ali, sentado tão perto, e ao mesmo tempo… Mas promessas são promessas e eu não quero quebrar mais nenhuma. Um dia, vais perdoar-me e vamos poder recuperar o tempo perdido, sei disso.

Ando com uma dores de estômago que nem queiras saber. Tudo o que como me põe a barriga a arder. Nunca fui grande cozinheiro, mas que diabo, também não sou assim tão mau.
(…)

* * *

Procurou os lenços de papel na mala, mas encontrou apenas a embalagem de plástico vazia. As lágrimas dançavam-lhe no canto dos olhos, o nariz pingava.
Havia na parede um rolo de papel de cozinha, tirou uma folha, limpou os olhos e assoou-se.

De volta à mesa, pegou na terceira caixa de sapatos. Esta, ao contrário das outras duas, não estava cheia de envelopes.