Enquanto esperava por ela, contei seis. Reflectidos nas janelas azuis escuras, cruzavam o edifício numa diagonal descendente, aparecendo e desaparecendo ao longo da fachada.
Entre cada passagem naquele gigantesco espelho azul, eu observava o piso térreo do edifício vizinho, composto por uma porta de vidro - cruzada por barras de ferro branco, metade na vertical, metade na diagonal -, centenas de azulejos dos mais variados feitios e algumas formas em relevo.
Os azulejos, de todas as cores, formam várias imagens em que homens mulheres e crianças estão envolvidos em várias actividades: agrícolas, industriais ou simplesmente a ler. São várias as pombas brancas que esvoaçam pelo mural e os arco-íris que brilham. A mensagem era óbvia.
Desta vez não protestei, não a contrariei, guardei para mim os muitos argumentos que tornavam aquela ideia em algo muito próximo do disparate.
Bebi uns whiskys a seguir ao almoço para me anestesiar um pouco mas, tudo o que consegui, foi ficar indiferente ao objectivo que ali nos trazia e propenso a implicar com tudo e com todos. Sentia-me preparado para o confronto.
Uma lufada de ar fresco enlatado fez-se imediatamente sentir, contrastando com o ar quente do exterior. Leonor agarrou-me pelo pulso: - Não vai ser fácil, mas tenho esperança que se comovam com a tua história.
- Nem penses que lhes vais falar da minha vida, não te atrevas; deixa que eu sei bem o que lhes vou dizer.
- Bem vindos à União Soviética. - Murmurei para Leonor, que me mandou calar.
Aproximamo-nos. Em cima da secretária, apenas um telefone e as mãos gorduchas da mulher: a esquerda em cima da direita.
- Boa tarde. – Leonor fez o seu melhor sorriso.
- Boa tarde. – Respondeu a mulher praticamente sem mexer os lábios.
- Nós pretendíamos…
- Se não te importas, falo eu. – Calei Leonor, que ficou mais vermelha que a bandeira do partido que esvoaça na varanda do último andar do prédio. – Com quem é que nós podemos falar sobre um dos membros do vosso partido?
- Qual é o assunto em concreto? – Era espantosa a capacidade daquela mulher em falar sem, aparentemente, mover um músculo da face.
- É consigo que se tratam os assuntos relativos a membros?
- Não, mas…
- Então chame lá o controleiro que trata desses assuntos. – Disse eu o mais rispidamente que fui capaz.
- João…
- Calas-te, sim? – Leonor engoliu em seco e fez um esforço por se controlar. A situação, essa, caminhava para o descontrolo.
- É favor aguardarem, o meu camarada vem já falar com os senhores. – Indicou-nos umas cadeiras, perto da porta.
- Tu não te podes descontrolar assim. – Leonor falava baixo e procurava os meus olhos. Desviei-os. – Anda, senta-te.
- Não, estou bem de pé. Esta malta complica-me os nervos, o que queres? - Ela ia dizer o que queria, mas calou-se. Percebeu que não ia adiantar.
Foi Leonor quem quebrou o silêncio.
- Sabes quem foi Soeiro Pereira Gomes?
- Algum comuna, só pode.
- Sim, foi membro do Comité Central, nos anos quarenta. Apesar da pouca obra publicada, ficou conhecido como escritor. Foi um dos fundadores do neo-realismo em Portugal.
- As coisas que tu sabes.
- Morreu novo, na clandestinidade, com tuberculose.
- Olha que pena.
- João!
- Sim, está bem.
- Não leste o Esteiros?
- Não sou muito dado a livros, sabes isso, especialmente de autores… - Calei-me.
- Devias ler. O livro é dedicado “aos filhos dos homens que nunca foram meninos”. Conta a história de um grupo de miúdos pobres que têm de trocar a escola pelo trabalho numa fábrica de tijolos. Relata a violência do sistema social, a exploração dos trabalhadores, a falta de compaixão. Revela como o ser humano cria uma armadura para sobreviver. É muito contundente o livro. – Fez uma pausa na esperança que eu dissesse algo. – Não te lembra nada, a história?
Era um homem, magro, que tinha uma farta cabeleira e caminhava lentamente. Só quando chegou perto de nós lhe pude ver a expressão. Aparentava uns setenta anos, tinha a pele do rosto macilenta e, por baixo do queixo, uma prega de pele balançava. Tinha o cabelo todo branco e uns olhos de um azul ainda vivo, como que reflectindo o azul do céu no fundo de um poço, de tal maneira estavam enterrados na sua cara.
Calçava uns sapatos de camurça castanha e vestia calças de bombasine, também castanhas. Tinha uma camisa de flanela cinzenta e, pendurados num fio, uns óculos pendiam-lhe no peito. Deve estar a morrer de calor, pensei.
Era, no mínimo, uma figura esquisita.
Trocou um breve olhar com a recepcionista e dirigiu-nos a palavra, estendendo-me, ao mesmo tempo, a mão: - Boa tarde, o meu nome é Evaristo Cordeiro.
- João, Leonor. – Disse eu, surpreendendo-me com a firmeza do aperto de mão do velho.
- Em que os podemos ajudar? – Pelos vistos, a nossa conversa ia decorrer ali mesmo.
- É o seguinte, eu sou jornalista e… er… somos jornalistas… estamos a investigar a pesca do bacalhau, antigamente… a fazer um estudo… isto é, uma reportagem, juntamente com o Museu Marítimo de Ílhavo, sobre os pescadores que iam para a Terra Nova. – A boca secara-me num instante. Leonor mordia o lábio inferior e não tirava os olhos de mim. – Descobrimos que um desses pescadores, da Fuzeta, no Algarve, era do Partido… seu camarada… mas já morreu… o que nós queríamos era saber da mulher dele, se também era… queríamos encontra-la, falar com ela.
- Não sei se entendi.
- Queremos saber se uma tal de Alda das Dores Saraiva é, ou foi, membro do Partido.
- Trabalham para que órgão de comunicação?
- Er… para o jornal A… Público.
- Posso ver a vossa identificação? - Saquei da carteira e mostrei rapidamente o cartão que me dá acesso aos recintos desportivos. – Bom, os arquivos do partido, como devem calcular, são reservados, nós não podemos…
- Eu sei, eu sei… - A impaciência tomava conta de mim. – Nós só queremos saber se a Alda das Dores Saraiva é membro, falar com ela. Pode dizer-me isso?
- Eu não lhe sei responder e a militância partidária é algo que só a própria pessoa pode revelar.
- Ouça… - Inconscientemente, coloquei as mãos nos ombros do velhote, que deu dois passos atrás. A recepcionista ergueu-se como se tivesse uma mola.
- João, por favor. – Senti a mão de Leonor no braço.
- Eu só lhe peço que me diga se essa mulher existe.
- Mas como quer que eu faça isso?
- Quero que vá procurar aos arquivos, agora. – Larguei o homem, mas ele, apoiado que estava em mim, não se aguentou de pé e caiu. A recepcionista e Leonor precipitaram-se imediatamente para o homem, ajudando-o a levantar. Eu tentava perceber o que tinha acontecido, quando dois homens surgiram não sei de onde e me agarraram.
- Vou ter que lhe pedir que saia. – Disse-me um deles, arrastando-me para a porta.
- Eu não tinha intenção…
- Lá para fora.
- Deixe-me explicar. – Uma mulher entrava nesse momento, trazendo um enorme ramo de flores. Fui contra ela, quase fazendo-a cair.
- Fora! – Fui posto porta fora. Leonor saiu atrás de mim, desculpando-se às pessoas. Chorava.
- Tens que acreditar em mim, eu não queria…
- Deixa-me João, por favor. – Passou sem olhar para mim.
- Foi sem querer, acredita.
- Também foi sem querer que contaste aquelas mentiras? – Tinha-se voltado para trás. Grossas lágrimas caiam-lhe pela face. – Explica-me como é que pensas chegar à verdade através da mentira, és capaz?
- Como é que querias que nos deixassem ver o arquivo, bastava aqui chegar e estendiam-nos a passadeira? Logo esta gente…
- Não, explicávamos-lhes a situação, pedíamos que, caso existissem dados sobre a tua mãe, nos dessem o contacto dela. – Um táxi apareceu no início da rua, Leonor fez-lhe sinal e abriu a porta.
- Desde o início que isto sempre foi a tua busca, não a minha. Eu nunca acreditei que encontrássemos a minha mãe. Não acho que haja alguém para encontrar.
- O livro de que te falei há pouco, lembras-te? Os miúdos tinham a vida mais difícil que possas imaginar, mas uma coisa nunca lhes conseguiram tirar. – Olhava-me intensamente. – A capacidade de sonhar. – Entrou no táxi e partiu.
O telemóvel tocou, era do jornal. Não atendi, com quanta força tinha, atirei-o à parede. Mil pedaços saltaram.
À porta, Evaristo Cordeiro e uma mulher segurando um enorme ramo de flores, olhavam para mim. Havia pena no seu olhar.
26 comentários:
ok! ok! é pra ficar em pulgas todo o fds a espera da continuação ;-)
Bjs grandes e optimo fds
Está excelente, empolgante esta história...
Quando quiseres editar os teus contos, avisa amalta, eu quero ter um exemplar encadernado destes teus trabalhos.
Continua por favor.
Está pois...
Enredo fantástico, história empolgante, personagens fortes e com capacidade para revelar «como o ser humano cria uma armadura para sobreviver».
Fiquei fã! Adoro, adoro, adoro!
Só espero é que os próximos "episódios" não façam a regra e que não demorem tanto tempo a chegar...
Claro que a ansiedade torna a história ainda mais apetecível, mas...mas...mas nada!Vamos lá actualizar rápido para todos vermos o desenrolar da história :D
Bj a todos * bom f-d-s
Depois deste episódio vou ressacaro fds tudinho à espera do proximo...ai ai ai! Isso não se faz!!! :D
Bom fds! Beijos (sem recibo verde :D)
depois de almoço, nada melhor do que vir ler-te...
desejo-te um óptimo fim de semana
um grande beijinho
alice
Completamente, e cada dia k passa esta estória tá cada vez mais emocionante, adorei o relato do Partido, é muito real e muitos de nós possivelmente reagiriamos assim.... mas a Leonor tem razão em ficar magoada.... Continuo aki à espera de novo post, cada vez mais entusiasmada. Bom fim de semana
Rui, tens de publicar esta história! É divina. Estou comovida com a sua humanidade (e com o que tu sabes do assunto! :))
... ora já cá estou enfim, que o taxista veio por um caminho que só visto*!
Bom. Este capítulo foi um bocado surpreendente e de grande conflitualidade; parece que o João se passou dos carretos... Aguardo o seguimento.
eles sabem quem é a mãe do joão? sabem? sabem que já morreu tb? hã? responde!!! bjs e bom fds.
e com pena cheguei ao fim do 12º...
um beijo, Rui, e ca estou para as cenas dos proximos capitulos :)
Van
pois... enquanto andávamos todos à procura da mãe e do pai, do porquê do ódio ao bacalhau, enfim, das origens do João, esquecemo-nos que decorria a construção de uma relação entre ele e a Leonor... de repente voltamos ao presente e aparece a dúvida se este não será mais importante que o passado...
just readding... :)
Bem... e cada post traz uma inovação não só da história como da escrita :) Sinceramente, acho que tás cada vez melhor e é realmente um bom momento que nos proporcionas com a leitura dos teus textos. Faz esquecer tudo o que nos rodeia e embrenharmo-nos na história por completo.
Bom fds
Bjnhs
Eu sei que já perguntei mas... porque não pensas em tentar publicar um livro?! Era uma boa ideia!
Continuas inigualável!
Mas... o telefone é assim tão fácil de converter em mil pedaços?
Só agora consegui vir espreitar os meus blogs favoritos! Um delicia!
Beijos! ;)
Cativante esta história.
Beijinhos
... então? ainda não aprendeste que sem mel não se apanham moscas?
descontrolaste-te! que cena mais triste... e que pachorra a da Leonor!
veremos o que o Evaristo e a Senhora das flores ainda irão render... nem tudo está perdido
beijo, bom domingo
os teus textos é que são as flores, rui
bem hajas
um grande beijinho
alice
esta historia está cada vez mais interessante... já estou a ficar viciada... para quando o próximo capitulo?
beijinhos
Ai João, João...
Este rapaz é um impaciente. Mas percebo-o bem... ferve-lhe o sangue!
Continua, continua...
Ah! Bela resposta lá no meu post ;)
Beijos
E um livrinho não saia ja já Rui???!!
Bem esta cativante,
Um beijo com carinho
perdeu o controlo, tadito! até a mim ja me apetece atirar com o telemovel ao pc. acabas ou nao esta agonia?????????
;))))
bjs
mais uma vez parabens pelos teus escritos...são absolutamente bestiais....eras bem capaz de fazer um filme....beijito
Amigo tb. li os "Esteiros" no liceu, lembro ke o livro me marcou e nem sabia muito bem porke, o relato dakeles miudos sem eira nem beira xocou-me imenso...akeles pés descalços metidos na lama.
Tou aki... kero ler-te...
Beijinhos
É um prazer ler-te...
So falta um... amanhã.
Beijinho
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