a vida é pouca.
Disse ele, sumido, sem que o tivessem escutado.
o que foi que ele te disse?
Cassilda estava visivelmente divertida com o ar apreensivo com que Avelino entrara na loja, agora transformada em local de festa.
disse-me que aqui não entram complexos nem mágoas, que se quer divertimento em carne viva.
Ela riu-se.
não te conhece, foi a maneira de te desejar as boas vindas.
pois não, não conhece.
Acenando a alguém, Cassilda olhava já noutra direcção.
A loja não parecia uma loja. Cheia de uma luz amarela que tudo uniformizava num tom torrado, lembrava o décor de um filme antigo, cuja acção decorria em casa de uma família que vivia para lá da sanidade. A vertigem acentuou-se e fez ricochete na cabeça de Avelino. Havia em tudo aquilo, uma familiaridade que o deixou ainda mais inquieto.
Ocupando o espaço de uma forma aparentemente caótica, mobiliário de escritório confundia-se com móveis de casa; havia roupa pendurada em suportes horizontais, com rodas, que iam sendo mudados de lugar pelos convivas; televisores a preto e branco; marionetas, bonecas de porcelana e de pano vigiavam um pouco por todo o lado o decorrer dos acontecimentos; rendas de muitos tamanhos e formas serviam de base a telefones de disco – alguns ainda com o número da habitação de onde tinham vindo –, a despertadores, candelabros, molduras com gente antiga dentro e, pelo chão, sapatos de todas as formas e feitios ameaçavam rasteirar os mais incautos. Todo aquele ajuntamento de coisas passadas, rodopiava e se derramava em torrente sobre Avelino, que era agora um adolescente encolhido a um canto do seu quarto, enquanto no exterior se acendia furiosamente uma discussão. Tapou os ouvidos com as mãos e apertou com força.
Cassilda interrogava-o – mais com o olhar que com o sorriso – e ele deixou cair os braços.
aqui é tudo retro. Anos cinquenta, sessenta e setenta. Mesmo a roupa e os adereços. A música também, claro. Parece-te um bocado alta? Por acaso, eles até costumam ter o cuidado de não por o som muito elevado, para se conseguir ter uma conversa. É a tal preocupação de ser diferente, acho. O tema das festas, por exemplo. Hoje, celebra-se o facto de ninguém fazer anos, lembras-te? Estavam ali a dizer que em vez de bolo, vai haver pão.
Deu uma gargalhada.
parte-se um pão aos pedaços e partilha-se.
e se eu te disser que faço anos hoje?
a sério? Isso é o máximo! Vai ser uma galhofa. Deixa-me…
não faço. Estava só a… não sei, não percebo nada disto.
fazer anos está por demais valorizado. Tudo isto não passa de uma brincadeira, uma desculpa para nos juntarmos mas, se pensares bem, o que mereceria realmente uma celebração era o desfazer os anos.
é indiferente.
não é! Nunca caias nesse erro. Os anos só nos trazem velhice, decadência. Começa-se com as festas quando se é novo e depressa se tornam um hábito. Celebra-se sem se pensar no que se está a fazer. O estarmos mais perto do fim? Bah! Mas que digo eu?! Estou a dar-te cabo da noite. Anda, vamos beber alguma coisa.
Encontrando um tema de conversa, Avelino ia identificar a palhinha pela qual Cassilda sorvia a sua bebida, quando foi interrompido pelo grito estridente que uma rapariga, com uma cabeça muito redonda e protuberantes maçãs do rosto, soltou. Usava um vestido antigo, a rigor com o cenário.
cás!
cát! Estás linda, como sempre. Deixa-me apresentar-te o meu amigo. Avelino, Catarina, Catarina, Avelino.
Ela aproximou o rosto rechonchudo e ele estendeu a mão. Depois, ela estendeu a mão e ele o rosto.
Cassilda ria.
prazer, Lino. Não vos cheira aqui a…
Catarina inalou profundamente algumas vezes.
não é naftalina, mas ao mesmo tempo…
O olfacto guiou-a até Avelino. Sentiu o sangue subir-lhe à face, como se tivesse sido apanhada a fazer algo que não devia e a voz saiu-lhe um nada esganiçada quando perguntou,
como te sentes, já estás melhor?
sim, já passou.
Cassilda deu um grande gole, como que para não ter de dizer mais nada. Olhou para Avelino que, à tangente da conversa, hesitava entre o alívio de ter agora com quem dividir a atenção de Cassilda, ou a aflição de se ver envolvido numa conversa. Tudo isto misturado com o perturbador facto de ter sido tratado por Lino.
cada vez que penso nisso. Meus deuses!
Catarina rolou os olhos e fez uma careta. Continuou,
se fosse comigo, caramba, nem sei, mas acho que ficava a bater mal para o resto de todo o sempre.
não vamos falar disso. Olha, sabes alguma coisa de um pão que vão partilhar?
Outras conversas foram colocadas em dia e Avelino veio a revelar-se um excelente ouvinte. Muito antes do fim da festa, Cassilda convidou Avelino para sua casa. A voz dela estava fria como a noite, quando já na rua, e depois de acender um cigarro, lhe disse,
deves ter ficado a pensar naquela conversa de há pouco.
Ele não tinha.
A Cát, ela diz as coisas sem… Lembras-te de eu te ter falado naquela rapariga que morreu há umas semanas… que foi morta…
Avelino começou a suar abundantemente das mãos, enquanto um misto de excitação e pânico tomava conta dele. Não conseguiu pronunciar palavra.
fui eu quem encontrou o corpo.
Uma ténue expressão de pena aflorou o rosto dele. E só ao limpar as mãos nas calças se apercebeu da erecção.