Era o último domingo de Setembro e estava muita gente no Largo da Luz. Os feirantes, conscientes de que era o derradeiro dia forte de vendas, apelavam a toda a sua experiência e sabedoria para escoar a mercadoria.
- Oh dona, escolha! Olhe’ma cólidade do material. Isto é tal qual o da loja.
- Aproveitem agora, qu’é tudo a 5 éros!
- Vá lá minha gente, qu’eu na quero levar a mercadoria pra trás…
O velhote olhava para uns balões de várias formas e feitios que, de tantos serem, pareciam a copa de uma árvore multicolorida. Agitavam-se indolentemente, empurrados pela brisa ligeira. Esperavam a criança que não aparecia. Os fios que os prendiam a uma grande botija de hélio eram os ramos e a botija o tronco.
O homem olhava mas nada via. Antes, pensava nos duzentos escudos que custava a fartura. Era essa a medida da sua desadequação ao mundo em que vivia. Tinha pensado em comprar meia dúzia delas e afinal… Há quanto tempo não saía do seu bairro? Há quanto tempo não comprava algo pura e simplesmente para o seu prazer?
Não raras vezes, esse dinheiro dava-lhe para comer durante mais de um dia; comia uma sopa e um bocado de pão com o que calhasse. Não que tivesse forçosamente de ser assim, não vivia em tão grande aperto, apenas aconteceu que à medida que foi envelhecendo, foi sentindo cada vez menos necessidade de comer, o que, juntando à escassa reforma, o tinha habituado a um regime muito frugal. Decididamente, não seria capaz de gastar duzentos escudos numa fartura.
Há quanto tempo não era feliz?
Tinha vestido a sua melhor roupa, comprada de propósito para a ocasião: umas calças de fazenda cinzenta e um casaco também de fazenda mas num tom ligeiramente mais escuro - tinha a comprado a amigo seu que, por sua vez, a tinha herdado de um primo que morrera tísico -, a camisa, branca, tinha-a comprado nova, nos Armazéns Pinheiros, local de prestigio na Rua Augusta, dois dias antes.
Tinha empatado no traje boa parte do pé-de-meia que possuía, mas não fazia essas contas, a razão porque o tinha feito era a melhor: uma rapariga.
A moça trabalhava numa retrosaria, no número 120 da Rua Tomás Ribeiro, a pouco mais de 50 metros da Garagem Militar, onde ele cumpria o serviço militar. Desde a primeira vez que a viu que soube que tinha de a convidar para sair – coisa que alguma confusão lhe fazia, visto não ser capaz de explicar isso a ninguém, nem mesmo a ele próprio; tal coisa nunca antes lhe tinha acontecido.
E agora ali estava, junto ao Parque Mayer, à espera dela. Nervoso. Mais ainda do que quando, finalmente, ganhou coragem para a abordar, e logo com um convite para ir à Revista. Se a menina me fizesse o favor…, tinha-lhe ele pedido desajeitadamente.
Instruído pelo seu camarada Abílio, moço mais expedito no que a raparigas dizia respeito, aguardava-a com um ramo de malmequeres e com um convite para cear: conhecia uma cervejaria onde se comia um bom prego.
Ei-la que chega, mais linda do que nunca aos seus olhos. Diz adorar os malmequeres. Olha-lhe nos olhos, deixando-o sem saber o que fazer ou dizer.
- Então o que vamos ver?
- A Revista chama-se “Saias Curtas”, entra o Tony de Matos.
- Adoro ouvi-lo cantar. Sempre que posso, ligo a Emissora Nacional.
- Achei que sim… - respondeu ele, sentindo-se descontrair.
Percebeu que tinha caminhado até à Estrada da Luz, junto à Igreja. À sua frente, um muro de pessoas impedia a passagem. Toda aquela gente parecia aguardar algo ou alguém.
O grupo de rapazes aproximava-se, continuando numa gritaria infernal. Vestiam todos de igual: uma camisola vermelha, cachecol e boné. Um deles desfraldava uma grande bandeira. Riam muito, divertidos consigo próprios.
- Oh minha senhora, qu’é isto aqui? – perguntou um deles, apontando.
- Ora, é a Igreja da Luz.
- Igreja?? Pffffffffff… venha antes ca malta à Catedral que daqui a pouco há jogo. – o grupo soltou uma gargalhada.
- Esta gente… - disse a mulher, afastando-se.
- Como é qué malta? – incitou um outro. – Quem nós somos, todos querem saber…
Todos gritavam agora, enquanto furavam o corredor humano que ladeava a Estrada da Luz.
QUEM NÓS SOMOS
TODOS QUEREM SABER
QUEM NÓS SOMOS
NO NAME… NO NAME
SL BENFICA VAIS VENCER
ESTAMOS CONTIGO ATÉ MORRER
SOMOS RAPAZES SEM NOME
NOSSA VOZ É O TEU PODER
Ao fundo, por cima da multidão e iluminada pela luz de início de Outono, a imagem de uma santa apareceu.
27 comentários:
e eis que o enredo se complica...
Ao chegar a esta parte do conto, Gaspar não evitou um sorriso. As coisas estavam a começar a compor-se; com a lesão do Rui Costa pediram a ajuda divina chamando uma santa. E não é que ela apareceu?! Restava saber a que lugar jogava a senhora. O engenheiro do penta teria de usar de muitas cautelas e não a colocar a trinco... não fosse o diabo tecê-las e o colega Petit num lance menos feliz dar-lhe um biqueiro pensando tratar-se de um adversário...
Mas como isto não fazia muito sentido, voltou atrás e percebeu... à segunda. A santa olhava para o velhote das farturas e não tinha nada a ver com o Veiga...
Adorei a parte do traje!
Ha coisas que só uns vêm :)
Imagens e luzes :)
Beijo, Rui!
Ainda está a pensar nas farturas?? :))
A partir de uma certa idade, muitos são os que vivem num mundo só seu, onde misturam passado, presente e sonho...
Hummm isto promete!
Agora benfica????? Pfffff... e tu dás-lhe com isso. Muda-te, os panteras esperam-te! heheheheh
bjs
:D:D:D ou não fosse eu benfiquista :D:D
beijo
Viva o benfica!!!
Continuo a gostar destes contos.
Sendo eu uma benfiquista ferrenha digo-te:
Por vezes são precisas várias Santas.
A principal é a Santa Paciência!
Voltada das férias, é bom ler-te e reler-te. :)
Um beijo*
E a santa fez o milagre do Benfica ganhar? Ó pá, diz-me lá que santa é essa para eu ir pôr umas velinhas!!
A sério, é um prazer continuar a ler-te. **
Preciso voltar cá com mais tempo para ler todas as estórias.
Beijos,
Betty
Eras capaz de fazer um bom livro, tens uma imaginação incrivel, consegues envolver o leitor...parabens :o)
Nada mais contraditório do que "ser mulher"...
Mulher que pensa com o coração,
age pela emoção e vence pelo amor.
Que vive milhões de emoções num só dia
e transmite cada uma delas, num único olhar.
Que cobra de si a perfeição
e vive arrumando desculpas
para os erros, daqueles a quem ama.
Que hospeda no ventre outras almas,
dá a luz e depois fica cega,
diante da beleza dos filhos que gerou.
Que dá as asas, ensina a voar
mas não quer ver partir os pássaros,
mesmo sabendo que eles
não lhe pertencem.
Que se enfeita toda e perfuma o leito,
ainda que seu amor nem perceba mais tais detalhes.
Que como uma feiticeira transforma em luz e sorriso
as dores que sente na alma,
só pra ninguém notar.
E ainda tem que ser forte,
pra dar os ombros para quem neles precise chorar.
Feliz do homem que por um dia souber
entender A ALMA DA MULHER!
kissesss by pequenita
Bom Fim de Semana
ora... com este fim de suspense... nem sei que te diga!!!!!
(não se faz!)
trata de escrever o resto s.f.f que quero ler!!!!!
(excelente como sempre!)
bem, não vais dizer que o senhor estava com a síndrome de lúcia!... andei a ler os teus textos do início do blog, a ver as tuas fotos... o que tu tinhas para aqui, que eu andava a perder!...
Olá,
quero mais...
Bom fim de semana
beijitos
Adorei este teu conto!!!!!
Tens muito ritmo no que escreves :)
beijo
... tiveram sorte!!!! lá ganharam, bem podem pagar umas farturitas ao velhote
;)
... pois, pois. Foi uma fartura. Vamos lá ver é se não gastam tudo de uma vez só... e depois lhes faz falta para outros "entreténs de boca"...
"Há quanto tempo não era feliz?"
É bom que o ancião se questione sobre isto... mas, qd o vires, diz-lhe q n é necessário gastar um eureko numa fartura pa ser feliz.
Frugalidade n implica, nem de perto nem de longe, infelicidade. Tenho a certeza q o nosso amigo de veneranda idade sabe disso, mas n custa nd recordar-lhe...
Espero q ele n leve a mal.
Um abraço.
Bom texto para recomendar ao meu mano! :)
Beijnhos!
bom... isto está a ficar complicado e cuidado com os name que te dão cabo do enredo ou pior do velhote...
excelente, vê-se na tua escrita que corre sangue monárquico
E depois, e depois???
está optimo
1 abraço
Ainda não li estes 3 últimos posts mas quis deixar um alô! Volto com mais tempo para pôr a leitura em dia ;)
Bj
E mais?
Sabes que aguças a minha curiosidade.... Brrrrr
beijos
... "era o último domingo de Setembro... "?!
Meu caro amigo, assim também eu vivia mais tempo!!!
Risos a caminho do quarto domingo de Outubro...
essa passagem dos balões ao plátano está fabulosa!!!!!!!!
qt a ser feliz na velhice... sabes o que vou fazer?!?!?! vou comprar todos os balões que os meus pais não me deram!!! :oD
(se entretanto nao enjoar por dar muitos muitos à Panquequinha! LOL)
BJss
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