Uma miúda pequena, com o cabelo loiro apanhado em dois grandes totós, deu uma dentada numa grande nuvem de algodão doce, ficando com as bochechas cheias de açúcar. Riu-se, denunciando a falta de dois dentes.
Uma senhora de idade olhava com uma expressão interrogativa para um telemóvel, enquanto coçava a cabeça. Ajeitou os óculos no nariz, como se o problema fosse não estar a ver bem.
Um bebé começou a chorar quando o balão que segurava se soltou, partindo na direcção das nuvens, que corriam céleres.
Uma cigana ofereceu uma blusa cheia de palmeiras a uma senhora que não a queria comprar.
Dois rapazes de bicicleta, faziam uma gincana, tentando furar por entre a multidão.
Carregadas com imensos sacos, muitas eram as pessoas que pareciam caminhar sem sentido, como se estivessem perdidas num local que desconheciam.
Até que, a pouco e pouco, o ruído deu lugar a rumor, depois a um sussurro.
As pessoas deixaram de ter pressa e pararam.
As nuvens perderam velocidade.
Os pássaros pousaram.
As ciganas sentaram-se.
O óleo que fritava farturas deixou de borbulhar.
Os pregões, até então berrados em alta voz, cessaram.
A atenção de todos concentrou-se no mesmo local.
A Santa entrou no Largo da Luz pela Rua da Fonte, lentamente, mas sem conseguir evitar alguns solavancos. A certa altura, pareceu que ia cair.
Com imensas pessoas à sua frente, o velhote não conseguia ver bem. Pareceu-lhe uma coroa, aquilo que ela trazia na cabeça. Segurava no braço esquerdo uma criança pequena. O Menino Jesus, por certo. Tinha uma expressão serena.
A mulher à sua frente continuava a acenar o lenço mas já não olhava a Santa, tinha até os olhos fechados. Com o corpo curvado e a cabeça baixa, parecia rezar. Naquela posição, parecia que era ela que suportava o peso da imagem que passava.
O velhote conseguiu então ver o cortejo que participava na procissão da Nossa Senhora da Luz.
Tinha ido acompanhar a mulher, devota da Senhora da Luz, que já estava muito doente nessa altura. Sabiam ambos que já pouco tempo tinha de vida, apesar de nunca terem falado sobre isso.
Ainda hoje achava que todo o esforço que ela fez para estar na procissão, foi para poder encomendar a sua alma, para pedir à Santa que intercedesse por ela junto de Deus.
Depois da morte do único filho no Ultramar, ela nunca mais tinha sido a mesma pessoa. Juntamente com o filho, tinha morrido a sua vontade de viver, a luz que lhe iluminava o rosto a toda a hora, em qualquer situação.
Ele tinha conseguido sentir raiva pela morte do filho, tinha gritado, chorado, dado murros na parede, mas ela não, nunca chorou, nunca desesperou; apenas se deixou ficar, enquanto a vida se escapava de dentro de si.
Nos anos após a morte dela, culpou-se por nunca ter falado com ela, por se ter limitado a assistir, por ter fingido que era assim que as coisas eram…
O velhote deambulava pelo largo. Parecia perdido, sem atinar com o caminho de volta.
De um pequeno palco improvisado, onde apenas estava um microfone e uma grande coluna, saiu um ronco grave, seguido de um guincho ensurdecedor. Depois estática e, quando o velhote já se afastava, uma música que o fez parar. As palavras eram-lhe familiares.
Pela vida fora
Que havemos de fazer
O que rege a sorte agora
Foi escrito outrora
Logo ao nascer
Todos nós somos iguais
Se o destino nos condena
Não vale a pena
Lutarmos mais
podes crer
O futuro não tem dono
Toda a flor por mais
bonita há-de morrer
Quando chega o seu Outono
Temos hoje p’ra viver toda uma vida
O amanhã, que longe vem!
A saudade está escondida
Num destino por medida
P’ra nós dois e mais ninguém
34 comentários:
Dos mais belos que já li, aqui.
Gostodo que escreves e de como descreves cada um de nós, todos. Abraço.
Como sempre escrito duma maneira irresistivel.
Lindo, lindo.
E quanto tempo o tempo tem???
Como sempre...Rui,sem palavras,apenas sensações nas palavras que escreves e onde entrelinhas te leio...
Fantástico Rui. E o velhote lá vai continuando.Sem dinheiro mas com gosto por estas andanças. Ao menos valha-lhe isso.
Beijinhos
Que bonito... O relogio marca o tempo de viver... os que vão partem para correr e dançar em infinitos campos de girassóis. Do lado de cá nums fica a saudade noutros a mais cruel indiferenca.
Sabes Deus deu-me um dom. Eu vejo quem anda pelo mundo sozinho, vejo quem está triste, quem precisa as vezes apenas de um sorriso.
Um texto maravilhosamente bem escrito e muito, muito comevedor.
Ler-te é bom, bonito, barato e faz bem.
Obrigada.
Isabel
Isabel
Gostei imenso! Muito mesmo. (estou arrepiada!)
Entrei na pele do velho e senti o mesmo! Parabéns!
Conseguimos viver uma vida paralela sem que quem nos rodeia tenha noção de que o nosso mundo está ali mesmo, ao lado, sem que a entrada seja visível aos que nos rodeiam. Não há maior solidão do que a que sentimos quando estamos rodeados de caras, braços, sorrisos que nos são caros e de olhares, sempre os olhares que não nos conseguem ver.
Obrigado
A pior solidão é a interior, mais uma excelente história Rui, comovi-me...sabes uns perdem o sentido de viver com a morte de um filho, outros têm-nos e não querem saber deles, este mundo é muito injusto especialmente com as crianças.
Bom fim de semana para ti.
............ estamos todos sós no meio da multidão!
gostei de ter passado por cá.
*** I.
Quero lá saber dos certificados. Quero lá saber se a casa se valorizou. Gostava de ser feliz!
Respirar fundo!
Abrir os braços e dançar à chuva!
Sentir-me apaixonada e cheia de confiança no presente, futuro e dias vindouros.
Mas como tu sabes "o futuro não tem dono" e só nas canções há "destinos à medida"....
Triste fado.
Acenda-se a luz.
beijo
Van
Se tu soubesses o bem que me está a fazer este teu conto... Ele faz-me regressar a um passado tão distante mas tão presente que tu nem calculas. Vivi muitos anos na zona de Benfica -ainda nem se falava no estádio da Luz do glorioso como as novas gerações chamam agora ao Benfica referência desportiva da qual o meu falecido era o o sócio 252 (uma capicua, imagina! que não lhe trouxe sorte nenhuma, pois um belo dia ao assistir a um treino, uma bola perdida acertou-lha em cheio na cabeça e foi uma vez marido... ). Mas não quero maçar-te com as minhas desgraças. Se soubesses as vezes que fui à Feira da Luz e as farturas que comi; era sempre uma fartura de farturas. Foi também nessa feira que conheci o meu segundo marido que por sinal era polícia e adepto do Sporting. Mas isso não obstou que fôssemos felizes durante seis maravilhosos meses. Faleceu com um ataque cardíaco enquanto assistia a uma surpreendente derrota dos lagartos perante o Estoril Praia. Foi ainda na Feira da Luz que... Não. Por hoje chega. Só para terminar, não sei como é que adivinhaste, mas o meu cantor preferido sempre foi o Tony. Era o romantismo em figura de gente e tinha aquele tique sedutor de piscar o olho para a plateia feminina. Também um belo dia em que tive a sorte de ficar na primeira fila de um espectáculo em que ele actuou, na Feira Popular e de me piscar o olho. Não casámos mas ele foi à minha frente como os outros...
Ermelinda das Neves.
Brilhante!
Tem uma carga emocional muito grande ou pelo menos assim transmite...
Tem um fado, uma melancolia propria deste país à beira mar plantado...
Muito tocante...
Beijus
P.s. E fique descansado que eu faço um aviso publico quando andar por aí em aulas de volante nas mãos...vou ser um perigo!!!! ;p
Beijinhos aos pequenotes!
Quero agradecer as tuas palavras no meu blog, numa altura que pensava o ter perdido para sempre.
confesso que não li o texto, mas vou voltar daqui a pouco para faze-lo
beijossssssssss
Nós vamos contando...
Bom fim-de-semana!
Luis
Lindo o seu cantinho,é a 1ª vez que o visito e estou a adorar. Boa escrita. Beijocas.
o chefe Tuiavii admirava-se pela ousadia do papalagui em querer meter o tempo numa caixinha e cortá-lo aos bocadinhos... e tinha razão, toda a razão!... os relógios até nos fazem pensar que já não temos tempo pra corrigir erros passados!... que estúpidos!
Ai, gostei tanto!!!!!......
Abraço!
Rui muito pobrigada, no entanto... da trabalho e ja tou atrasada um dia na cultura do país :))))
Sim, o relógio marca o tempo de viver, mas o tempo não tem qualquer importancia quando os sentimentos e sentires são intemporais...
A tua prosa é brilhante, prende o leitor de início ao fim, bebe-se cada palavra com sofregidão sem se conseguir matar a sede. Gosto imenso de te ler.
Beijos e bom fim de semana :)
pois marca!!! será que o tempo do nosso protagonista ainda resiste
nesse destino por medida?
já me estou a afeiçoar a ele
beijo Rui, bom fim-de-semana :)
Excelentes narrativas, voltarei com mais tempo__________Meu rasto,
Cõllybry
A vida dividida em coisas que ganhamos e perdemos e retemos e contamos... Sob o pulsar do gelógio dos dias, o desfolhar do calendários dos anos.
Deambulando vamos, ora felizes, ora aflitos, por vezes loucos. Por vezes parece que o amanhã é longo, outras que o passado o foi. Geralmente é sorrir e pronto, outras não dá, pois dói.
De grande qualidade literária e sensibilidade, o teu texto.
Juro que já nem sei como aqui vim parar, mas também que já não contava dar de caras com um blog assim! Valeu!
Deixo um abraço!:-)
O relógio nunca para e é cruel, e é do contra, e corre quando devia serenar e serena quando devia correr e sim, marca, sem duvida o tempo de viver, deviamos olha-lo mais, ou não o olhar nunca!
=)
Tão lindo, tão sentido, tão profundo. E o que nos espera ainda nesta linda historia?
bjs
4 ?!?!?!?!
AI AI...
... lá vai a minha Sombra do Vento ficar prejudicada uma noite destas...
BJs*4
:) sim, o relógio marca o tempo de viver...
Lindo... lindo.
beijinhos :*
Lindo... fiquei presa nas palavras e no texto que, apesar de longo, se leu até ao fim... e agora? Saudades...
Beijo
É a morte consequência do tempo. E disso esquecemo-nos vezes demais.
Um beijo grande.
Só posso agradecer com uma lágrima, sem cor, a tua visita e as tuas palavras.
Mais do que nunca o meu Muito Obrigada!
BShell
:)
Muito bonito e bem escrito. Como sempre!
Beijinhos
Olá Rui,
Lindo, uma torrente de sentimentos e emoções.
beijinhos
Isa
a letra da música é tua!?!?!?!? ou era suposto eu conhecer?!? :o/
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