Oudezijds Voorburgwal é, talvez, a principal artéria do famigerado bairro da luz vermelha em Amesterdão. No único tempo disponível da minha viagem de trabalho à cidade - um final de tarde e noite em três dias ali passados -, acabei, sem saber bem como, por lá ir ter.
Foi apenas há pouco tempo atrás, no início de Março mas, ao escrever este texto, parece-me que tudo se passou há alguns anos, tal a intensidade dos sentimentos vividos.
Vim a pé desde a Universidade de Amesterdão e dei por mim em pleno Red Light District, que é tal e qual aquilo que sempre tinha ouvido dizer: raparigas de todos os tamanhos, cores e feitios, em trajes mínimos, atrás de janelas ou portas envidraçadas, convidam com um sorriso o/a cliente a entrar.
A iluminação é vermelha, claro, e, em muitos casos, a cama fica logo ali, basta correr a cortina.
Tentei não olhar ostensivamente, o que é deveras uma preocupação sui generis num local daqueles, em que se está rodeado de de sex-shops, casas que oferecem sexo ao vivo e coffee-shops, onde se podem fumar drogas leves.
Ali, ser voyeur é ser menino de coro.
Um quadro em particular, chamou-me a atenção: era uma rapariga, alada, vestida com uma espécie de túnica branca, sentada numa janela que mais parecia uma moldura. Parecia olhar para mim.
Enquanto o contemplava, uma mulher ergueu-se subitamente, ocultando-me o quadro. E ali ficou, à minha frente. Tinha o olhar preso em algo. Olhei em redor mas nada de estranho parecia estar a acontecer: uma empregada circulava pelas mesas e um velhote, curvado sobre si, recebia uma caixa junto ao balcão.
Não fosse o longo cabelo castanho, aquela seria uma típica mulher holandesa: alta, olhos azuis – ou seriam verdes? -, bem vestida, notava-se que, apesar de alguma idade, tinha cuidado consigo. Com certeza, faria inveja a muitas raparigas com metade da sua idade.
Perante a insistência dela, questionando-o em holandês, o homem acabou por berrar-lhe: - Deixa-me passar!
De alguma maneira, tudo o que viria a acontecer depois – e o que ainda está por suceder – veio a colocar-me bem no centro da vida de três pessoas que, conhecendo-se entre si, desconhecem a maneira como as suas vidas estão ligadas.
Sei de cada um e de todos, mais do que eles sabem dos outros e de si próprios. Sabendo eu isto, não sei o que faça.
Aproveitando esse momento de distracção dela, o homem saiu.
Aquela pergunta em português, naquele tom de voz, fez o velho parar e voltar-se.
- Klootzak! Ik zou je moeten vermoorden! Eu sei que és tu! – Falava com sotaque.
- Sou eu, que conversa é essa?
- Já não me reconheces, passou-se assim tanto tempo? Para mim foi ontem!
- Hond! Tu sabes quem sou. Não vás…
- Larga-me, larga-me.
- Ik zal je! Ik zal je!
Estou convencido que nem deram pela minha presença, que não chegaram a tomar consciência de que alguém os tentava afastar.
Foi uma sirene da Policia que acabou por pôr fim à situação. Num assomo de força, o velhote conseguiu libertar-se dela e afastar-se o mais depressa que pôde. Ela tentou segui-lo mas eu impedi-a. Ficou nos meus braços a soluçar, as forças tinham-na abandonado.
Fê-lo num único fôlego, como se sufocasse se o não fizesse depressa. Nunca ouvi tanta urgência, tanta necessidade na voz de alguém. Nunca levantou a cabeça, nunca tirou os olhos do tampo da mesa, não sabia nada de mim mas, naquelas horas em que conversámos, eu fui o seu confessor; comigo tentou expiar os seus pecados; em mim procurou absolvição.
Eu limitei-me a ouvi-la, outra coisa não podia – nem sabia – fazer. E isso bastou.
Ficou a viver nove meses com o casal. Ali, na quinta deles, foi como regressar à sua vida na aldeia, a uma vida calma, sem sobressaltos, ao trabalho no campo, ao contacto com os animais. E foi precisamente isso que, à medida que o tempo passava, a fez partir.
Os sonhos continuava a tê-los, as fotografias das revistas continuavam gravadas na sua memória. Tinha saído de casa em busca de um sonho e só tinha conseguido encontrar um pesadelo, mas agora era mais forte, sabia mais; era altura de voltar a tentar.
Com algum dinheiro emprestado pelo casal – que devolveu com juros assim que lhe foi possível, fez questão de me dizer -, partiu para Andorra. É que, enquanto fazia companhia aos homens na Bodeguita, manteve sempre os ouvidos abertos às conversas sobre negócios. Em Andorra, alguém como ela, ia dar-se bem… na prostituição.
Perante o meu espanto, explicou-me que tinha aprendido a não se enganar a si própria, que sabia de outra maneira nunca iria conseguir o que queria, mas que, vendendo o corpo, teria algumas chances.
Depressa se tornou atracção na maior casa de alterne do principado, mas que, meses depois, reconheceu vários dos clientes da antiga casa o que a obrigou a partir. Passou por Bordéus, Paris e, em meados dos anos oitenta, rumou a Amesterdão - era o que estava na moda, na altura – onde ainda vive. Fez muito dinheiro, é hoje, em vésperas de completar 50 anos, uma mulher rica.
Que tinha saudades da aldeia e da sua mãe mas que, na verdade, nem sabia se a mãe ainda era viva, uma vez que nunca tinha dado a sua morada.
27 comentários:
Hebben voordien ontmoet wij? = não nos conhecemos?
u ruïneerde mijn leven! = arruinaste-me a vida
Klootzak! Ik zou je moeten vermoorden! = sacana devia matar-te
Hond = cão
Ik zal je! = vou-te dar
Atenção: trata-se de traduções com sentido aproximado, espero que estejam correctas.
:)))))
És o meu escritor predilecto! Cada vez mais. Surpreendes-me a cada post. Sempre positivamente. Continua, estou a adorar!
bjs
Ohh homem... as voltas que tu dás! ;)
Ok, confesso... com esta surpreendeste-me!
(já devia de estar habituada :))))
Beijo
Inês
tás a brincar comigo??? diz-me, diz-me que isto é uma história, que tens uma imaginação fora do normal. demais, demais. surpresa, surpresa. ADOREI! bjs
li os 9 olhares de enfiada! Muito bom! Fico à espera do 10.º!
Boa! Gosto imenso de ler os teus textos! Todos os dias, várias vezes por dia, cá venho eu ver se há mais algum episódio! :)
Cheira-me que estou quase, quase a perceber, o que disses-te que mais tarde ía perceber! ;)
Vim deixar um beijinho e ler mais uma das tuas fantásticas histórias...agora aguardo...
Beijinhos!!
Bem, tou sem palavras... os teus textos tão cada vez melhores.
E obrigada eu... palavras sábias são sempre boas de se "ouvir".
Bjnhs
Arminda versus Roxanne... só uma sairá viva, ou conseguirão ambas conviver em paz?
Que vida triste... e nunca mais ver a mãe... para quê ficar rica, para levar uma vida destas?! Teria sido mais feliz se não se tivesse encantado pelas revistas estranjeiras.
Ontem não consegui comentar, mandei-te um mail, não sei se recebeste.
Depois de ler tão incrível história, resolvi colocar-te um desafio...lol
Vai à Sebenta e logo verás, th
Rui gostei muito, excelente!
Conheces-te esta mulher numa das tuas viagens a Amesterdão? ou ... é uma simples personagem ...
Bom fim de semana e + uma vez, gostei muito só tive pena que esta mulher mulher tivesse uma visão tão deturpada da felicidade, mas somos todos diferentes e cada um escolhe o seu caminho.
Beijinhos grandes da Jaqui.
Cheguei a pensar que ela tomaria outro rumo. Ingénua, eu!
Mas ainda é tempo. Nem é por moralismos, é porque a Roxane não é a Arlinda!
Bom fim-de-semana!
Tenho tanta vergonha, estou atrasada em imensos capítulos, só li até ao três.
Hoje vou por a leitura em ordem, estou a fervilhar de curiosidade!
Beijinhos
e muitos parabéns pela excelente escrita
não ando com psic para grandes leituras... ou leituras grandes... :o)
um dia ainda venho ler a Arminda do principio ao fim :o)
Por agora perdi-me............ sorry!
Olá:)como sempre ficam as duvidas no ar:))mas agora eu sei "que nem tudo o que escrevo eu sou"
Gostei muito! formidavél a tua imaginação.
Bom fim de semana
beijinho
Isa
Uaaaau...
Impressionante e credivel a tua
narração!
Passa um excelente FDS...
Muito bonito!!! gosto da forma como escreves...utilizas uma linguagem simples, correcta, cuidada. Revelas imaginação mas acima de tudo afectos... histórias lindas, cada uma mais do que a outra. è bom saber que se pode ler aqui "com qualidade"...
... surpreendente!!!! (não sei quem é o cão)
Rica e infeliz... será que se pode fazer algo?
beijo ;)
Mais um texto bem escrito como já é hábito
E dura e dura e dura =P
Sorrisos com beijos neste inicio de semana
consegues prender-me e viajar na tua excelente forma como escreves e nos narras cada situação.
muito bem escrito Rui,
surpreendes-me pela positiva
beijinhos muitos para ti
lena
Estou atrasada na leitura querido Rui!
Andei por aí e agora voltei, fui dar um passeio em cima dum caracol!
Beijinhos
Muito bom, agora só nos resta saber o que podes fazer, o que pode o narrador fazer =)
Além de escritor (magnífico), tradutor?
Já te perguntei: quando publicas?
quero mais...
Enviar um comentário