Francelina observava a filha ao longe, via-a recolher as vacas à loja – nome dado na aldeia à parte da casa reservada aos animais. Percebia nela a força e a determinação que um dia ela própria se vira obrigada a arrancar de dentro de si. Em Arminda isso era natural, tinha nascido com ela.
Quis sorrir mas não conseguiu. Sabia que essa mesma força e determinação da filha era o que, um dia, a ia levar a partir.
Tinha parado de chover há poucos minutos. Nuvens escuras corriam velozes no céu, empurradas por um vento frio que soprava vindo de Espanha. Apesar de serem três da tarde, a pequena divisão, que servia de cozinha e de sala, estava envolta em semi-escuridão. A luz que tinha jorrado da lareira extinguira-se por falta de combustível sem que Francelina se tivesse apercebido disso.
Um relâmpago cortou o ar bem perto da aldeia, iluminando o rosto da mulher, que levantou os olhos do solo. As rugas marcavam-lhe a expressão. Os olhos brilhavam. Estava serena.
Seguiu-se o som do trovão, forte, próximo, fazendo-a estremecer.
- Sim, filha? – Respondeu sem se virar.
- Vou viver para o Porto.
- Quando?
- Daqui a uma semana.
- É isso que tu queres?
- Sim, mãe…
- Vens visitar-me às vezes?
Também lá fora a água começou a cair.
Pegou no candeeiro a petróleo e ajoelhou-se. Espreitou para baixo da cama e puxou uma pequena mala de cartão empoeirada e algo bolorenta. Tinha sido dada à mãe por um seu tio que vivia em Chaves. Era às riscas, em vários tons de castanho, já sumidas.
Limpou-a o melhor que conseguiu e arrumou algumas revistas e a roupa. Deixou de fora uma saia preta de tyrilene, com um macho, uma blusa pérola e um casaco de malha beige; ofertas de sua mãe, que as comprara à mulher de Laureano, dias antes. Sapatos, só tinha um par, sem salto, em pele castanha.
Vestiu-se e guardou o dinheiro que ia levar, no bolso. Bebeu uma caneca de leite e uma fatia de pão de milho com mel. Guardou na mala um pequeno farnel preparado pela mãe, e saiu de casa no preciso momento em que o primeiro raio de sol venceu o contraforte este da Serra. Estava pronta para a sua nova vida.
- Prometes que tens cuidado?
- Sim, mãe.
- Obrigado mas não, dona Leontina, eu desenrasco-me.
- Então boa viagem.
De volta à central de camionagem, esperou. Segurava na pequena mala com ambas as mãos e espreitava para um lado e para o outro.
Dez minutos depois ouviu o barulho ao longe. Sim, é a camioneta, pensou para si. Fixou os olhos naquele ponto azul que se aproximava no meio duma nuvem de fumo.
Reconheceu a camioneta: era a Bedford de Laureano que se aproximava.
Por entre uma chiadeira infernal, o veículo deteve-se junto a si. Arminda não se mexeu.
Abrindo a porta por dentro, a cara barbuda e suja de Laureano, apareceu à sua frente. Sorria, mostrando os seis dentes que tinha.
24 comentários:
Parceria perfeita de pormenores que nos dão azo à imaginação e ao vislumbre perfeito do cenário com suspense :-)
Bjnhs
Eu ouvi esse trovão :o]
Espero que o "carinha laroca" esteja associado a tanto carinho como pareceu... gosto de finais felizes :o]
quem sai aos seus não é de genebra ou o filho pródigo na casa do pai entorna...
Estou como a Sara, gosto de finais felizes
...que raiva, ser tal e qual a vida!
Mas é mesmo assim, Rui.
Beijinhos e boa semana de trabalho!
Aposto que o Laureano tem uma unhaca daquelas enormes para tirar a cera dos ouvidos e para palitar os dentes ( quais dentes? ).
Venha mais
Um abraço
Não adianta: criam-se os filhos para o mundo. É inútil tentar controlá-los. Mas é uma pena que a Francelina não tivesse oportunidade para aconselhar a filha, sobre o Laureano...
Mau, mau...
Ui!!!!!!!!!! isto promete.....
Tentar aprisionar um passaro selvagem é o que dá...mais dia menos dia...ele voa e foge! A ingenuidade, a exuberância, e a vontade de viver a aventura levam a arminda a soltar as asas e voar. Mas os voos radicais nem sempre são os melhores. Fico à espera de um final feliz...
beijos
Tentar aprisionar um passaro selvagem é o que dá...mais dia menos dia...ele voa e foge! A ingenuidade, a exuberância, e a vontade de viver a aventura levam a arminda a soltar as asas e voar. Mas os voos radicais nem sempre são os melhores. Fico à espera de um final feliz...
beijos
quem é o laureano??? ai caragos que isto parece o lost... bjs
Bem...já dizia o grande mestre..."mais vale asno que me carregue, que cavalo que me derrube..." 1 abraço Rui do Anónimo
... agora -penso eu, é que vai começar à séria a vida atribulada da Arminda.
... e tenho uma suspeita que as coisas não vão ser fáceis para a moça.
(felizmente que o Rui não mete publicidade pelo meio... )
Nao consigo parar de ler...ate chorei quando ela se despediu da mãe...conta mais,anseio!
Bj
É que, de facto, e mais uma vez, não prevejo nada um bom desenlace...
Contas tão bem a história que até chateia, Rui!
estas viagens fora da city ,ainda por cima de camioneta, são estimulantes.
então??? :(
pronto, esta bem, bati com o nariz na porta :)
beijokas
...qual bacalhau qual carapuça ;)
vim cá mesmo por causa da carinha laroca :)
Apaga tu aqui, porque no meu, quem lê o que eu escrevo, tudo me perdoa ahahahaha
Não antecipo um final feliz!
Beijinhos!
gostei do twist, não estava nada a espera, muito bem conseguido, mesmo.
=9
hummm cá a mim parece-me que a Arminda ainda vai ter muitas saudades da loja e dos seus ocupantes...
;)
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