Pois é, confirma-se: é mesmo cancro no estômago. Menos mal, afinal não era dos meus cozinhados.
Estou a manter uma atitude positiva quanto a isto, fica sabendo. Aquele pessimista que conheceste, já passou à história. O médico diz que a radioterapia – e uma operação a que não devo escapar -, devem resolver o problema.
Não disse nada enquanto lá estive, não fui capaz. Sentei-me e ali fiquei, no fresco. Desconfio que nem me atrevi a pensar. Pareceu-me um grande descaramento, ao fim de tantos anos, me por a falar com Deus, ou com Jesus, ou fosse com quem fosse – mas eles perceberam a minha presença ali, não achas?
Só tenho mesmo esta amargura da nossa relação, mas as coisas são como são.
(…)
As sombras alongavam-se dentro da cozinha. Tinha perdido a noção das horas, a luz era já mais fraca.
Patrícia atravessou o pequeno relvado e abriu a pequena porta – lembrou-se da última vez que tinha feito aquele gesto.
- Como estão os meus mais que tudo? – Perguntou depois de beijar a filha e o marido.
- Um baloiço! – Exclamou a miúda, correndo para o limoeiro. - Posso, posso?
- Alexandre, vê se ainda está em condições. Se estiver, fica aí com ela mais um bocadinho, que eu já não demoro.
- Esses teus olhos…
- Vai lá, depois falamos. – Virando-se para a filha, disse: - E nada de tirares o casaco, está muito frio.
- Parece em condições, aguentava comigo. Carolina, olha aqui este desenho tão giro no assento. Um dia vais ter que me ajudar a pintá-lo de novo.
E agora as más notícias: tenho outro tumor, agora no pâncreas. Já sei disto há umas semanas mas não quis dizer nada, acho que estava à espera que não passasse de um engano. Não é.
Decidi voltar para casa. Já tratei de tudo, mais uma semana e volto para cima. Vou ser acompanhado no IPO do Porto, prefiro as viagens de Braga para lá do que passar por todo o martírio que me espera nesta cidade, que não é a minha.
Espero que não penses que deixei de querer saber de vocês. É só que há coisas que… olha, não sei explicar, sinto que preciso ir para casa.
(…)
Ontem fiquei internado, já não me deixam ir a casa. Bem os mandei à merda, mas nada feito, aqui estou, a vegetar.
(…)
Essa miúda deve estar enorme, não? As saudades que tenho de vocês. Até do Alexandre, vê lá.
20 comentários:
Prometo que da próxima acaba.
Trata-se de vidas, as vidas.Vivemos sempre como se nunca fossemos morrer, talvez porque não vale a pena viver de outro modo, mas da morte todos sabemos e às vezes não podemos ignorar. Bonito.
Inda bem =D
Mto curiosa mm =P
Sorrisos com beijos
Bom fim de semana
Viva Rui,
Mas...afinal o Alexandre é de Braga?!... Bracaraugusta conheço bem! Vou estar mais atenta ao desenvolvimento desta história;)Bom fim de semana.
Prometes que da próxima acaba? E quem é que disse que nós queríamos que acabasse?
Inquietante.
pois é... o baloiço!!!!
:)
Rui...é uma realidade algo triste, e por vezes esquecemo-nos que nem sempre vamos a tempo de dizer um simples amo-te. A vida é tão macabra que por vezes é tarde demais. Ainda assim continuo a acreditar num final mais feliz...
Beijos e bom fds
Ás vezes por algo que fazemos ou por algo que não conseguimos perdoar, deixamos de viver o melhor das nossas vidas com quem amamos... e isso não tem preço. Gosto da tua sensibilidade, da maneira como escreves, do que tocas com as tuas palavras...
beijinho
"Vai ser muito doloroso a última vez que vos for ver..."
Infelizmente são palavras demasiado realistas. Ainda hj, ao fim de quase 5 anos, é pensar em nunca mais o ver q me dói mais, e sei q era assim q se sentia.
Mais um belo 'trabalho' da tua extrema sensibilidade!
LD
Estava a presentir uma situação destas desde o inicio...
Estes teus textos estão mesmo fabulosos
ARRE!
Não podias tar mais animador, não?!?!
De sopros assim já me bastou a Frida! Mas funcinonou :o)
Mas... pelo que já vi(vi) do cancro do estômago duvido que ele se tivesse safado! - só uma pequena nota "técnica"! :o(
BJs
Parabéns... isto é que é prender o leitor até à última num conto espectacular.
Estou indecisa entre querer que o conto acabe ou entre que se prolongue ad eternum...
Espero que no final deste, mais e mais se sigam.
Bjs
Esta história foi e continua a ser vivida... não sei por quem, mas sei que sim... como podes prometer que acaba para a próxima?!...
Shuackkkkkk
Arrepiei-me todo...
( - Mamã, mamã… - gritava Carolina junto à vedação de madeira.
Patrícia atravessou o pequeno relvado e abriu a pequena porta – lembrou-se da última vez que tinha feito aquele gesto.)
Gestos, os gestos...
Gostaria de pensar que a Patricia vai ter tempo para dizer (Papá Papá), mas como não sou fan de finais cor de rosa...
Rui deixa-te de promessas e continua a contar a tua historia.
A tua historia, mal ou bem, curta ou comprida ( isto não me soa bem ) é a tua que queremos ler, o segredo de um bom filme está também na montagem, até agora, levas jeito para montar ( isto também não me soa bem ).
Continua vá...
Um abraço
Adorei os seus textos! Só tenho de agradecer as minhas "miguitas" Sofia e Fortunata por me terem apresentado este mundo da blogoesfera. Para si Rui muita obrigada por partilhar as suas criações!Até breve, Tosca
Desculpa a observação, mas na minha opinião, foi de má política informares o pessoal que a história acaba no próximo post. Com a tua habilidade narrativa, bem podias fazer "render o peixe" mais uns tempos; mas prontos. Tu é que sabes.
No que concerne a este episódio, sustento a ideia que o pai da Patrícia dava um mau viver à filha que não era brinquedo. Só lhe foi dando "boas notícias".
Olha se ela fosse lendo as cartas em tempo directo?!
Pois é, ha certas coisas de que nos esquecemos no nosso dia a dia que vao unindo as pessoas (o que de repente nos vai fazendo falta quando menos esperamos...). beijo
Escreves duma maneira perturbadoramente comovente...
Parabéns!
*a_mais_fofa*
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