Qual agulha desproporcionada e vagarosa, a sombra projectada por uma das chaminés do prédio em frente, assinalava no pavimento da cozinha a pesarosa passagem do tempo, o que, assim atirado para diante dela, em ponto grande, tornava ainda mais doloroso aquele inicio de tarde. Mas o pior de tudo era o espaço vazio na máquina de lavar loiça.
Colocou a chávena do café na máquina, passou um pano húmido pela bancada e lavou as mãos com detergente. Passou um pano seco pela bancada e limpou as mãos a ele. No chão, a sombra estava a meio do último mosaico, preparando-se para daí a nada começar a lenta escalada dos electrodomésticos e armários. Hesitou sobre o que fazer a seguir.
O que fazer quando nada apetece fazer?
No quarto, passou a mão pela capa do livro que estava na mesa-de-cabeceira, sentindo o pó por entre os dedos. Regressou à cozinha, sentando-se junto da janela – a melhor luz do apartamento, àquela hora. Um bilhete de teatro estava colocado a meio do livro. Retirou-o e os olhos percorreram as linhas com avidez, como se estivesse condicionada pelo tempo e da leitura dependesse a vida de alguém. Ainda virou a página, mas estava a enganar quem? Não tinha fixado um único pormenor do que acabara de ler. Por aqueles dias, avidez era tudo o que não se coadunava com o seu estado de espírito.
Colocou o bilhete na mesma página e deixou-se ficar com o livro entre as mãos, a observar a silhueta do ponteiro dissolver-se na pedra fria. Uma mancha cinzenta e informe dominava o céu disponível na janela e as árvores estavam agora particularmente agitadas, desembaraçando-se do peso morto das folhas. Fragmentos dourados e castanho-claro passavam velozes diante dela, rua abaixo. Deu por si a bater arritmadamente com as unhas no vidro. Talvez se tomasse outro café. Sempre sujava outra chávena.
Voltou a tamborilar os dedos na janela, como se assim fosse possível não pensar mais nisso. Tinha passado uma semana desde a última vez que colocara loiça a lavar e, desde então, não sujara ainda o suficiente para voltar a encher a máquina. Sem apetite, não havia razão para cozinhar. Comia pouco, o que calhava, e isso era suficiente. Não pensava sequer em comida. Mas agora, desde que tomara consciência disso, atormentava-a o facto daquele espaço por preencher lhe parecer a exacta medida do vazio que percebia dentro de si.
Talvez se fizesse um bolo.
Procurou no Pantagruel bolos de chocolate. Páginas 827 e seguintes. Pôs-se a ler.
Bata… derreta… junte… mexa… unte… deite… recheie… decore…
A vontade vacilou perante tanta necessidade de atenção e trabalho manual. Na janela, continuava a desfilar o Outono aos pedaços. Inspirou longamente e abriu o frigorífico, de onde retirou manteiga. Quando abriu uma das portas do armário, não viu nada. Ficou algum tempo a encarar os contornos do que lá se encontrava dentro, até perceber que não se lembrava já do que estava à procura. E naquele momento pareceu-lhe que a escuridão do armário se dissipou pela cozinha, tornando-a ainda mais sombria. Vestiu um casaco, pegou nas chaves e na carteira e saiu de casa, apressada, com pensamentos apressados. Porque não tinha o frigorífico iluminado o seu dia? Tudo parecia ofuscar-se à sua volta.
Não viu ninguém quando entrou. Percorreu dois corredores até encontrar o que pretendia. Não havia muita variedade, o que agradeceu. Brownie Chocolatíssimo, o nome soou-lhe bem. Leu brevemente as instruções e achou-se competente para o obter.
O empregado do minimercado tinha-se materializado na caixa e exibia o sorriso de quem, a custo, se conformara com ter de trabalhar aos domingos. É só, perguntou. Ela acenou que sim. Deve ser bom, acrescentou o rapaz, quando lhe entregou o troco e o recibo.
O vento tinha amainado, mas o frio era mais intenso, quando regressou a casa. A calçada estava pejada dos destroços das árvores e a iluminação pública acendeu-se, tornando a rua ainda menos viva. O pensamento de que até a luz, quando chega, é para tornar tudo mais triste, ainda tomou forma no seu espírito, mas foi prontamente reprimido com a certeza que a auto-compaixão não lhe iria fazer bem algum.
Juntou à mistura para bolo leite, ovos e uma colher de manteiga. Untou a forma, colocou-a no forno pré-aquecido e sentou-se junto da janela, à luz da rua, em busca do apetite no folheio das pantagruélicas páginas, esperançosa que, assim, lhe custasse menos a passar o tempo que a executar a receita.
O rapaz estava de costas e não a viu. Pareceu-lhe que ele cantarolava, enquanto passava a esfregona no chão junto à porta. Ali especada, na rua, empunhando numa mão um prato coberto com folha de alumínio e na outra, talheres embrulhados em papel de cozinha, a sua primeira reacção foi achar-se terrivelmente ridícula. O súbito embaraço fê-la dar um passo atrás. Mas logo avançou. Tossicou. O rapaz virou-se, a sua expressão adquirindo a forma de uma grande interrogação. Trouxe uma fatia de bolo, disse ela.
Encostados à caixa, comeram devagar e em silêncio. Na rua, o vento renovara forças e trazia as folhas enlouquecidas.
22 comentários:
:) Mt bom!
Até me fez ficar feliz por a loiça lá em casa transbordar da maquina de lavar loiça.
My brownie chocolatíssimo nights? ;)
Já tinha saudades de um dos teus posts.
Mais duas personagens com o cunho "rui". Dava um pequeno filme. Gostei. Espero não esperar tanto pelo próximo como por este.
Beijos
Renovado da longa ausência.
Gostei.
:)
Vim deixar-te um beijo! :))
Está lindíssimo este texto. Cheguei a sentir que estavas a descrever o que senti em certas alturas da minha vida!... Pena que eu nem sempre tenha dado a volta por cima tão bem como a personagem do teu conto...
perfeito
como o dia de hoje
para
o dia de hoje
[ do chocolate
a panta gruel
de panta gruel
às folhas,
~
ora uma fatia de bolo numa noite fria, estes pequenos gestos desarmam e aquecem o coração. boa história.
finalmente ela quebrou o silêncio
que tal? gostaste?
e ele
uma delícia. fazes outro?
e ela
e esperas o tempo que fôr preciso?
ele
não percebo. demoras assim tanto tempo a fazer um bolo?
ela
ah sim?! e tu que fizeste aqueles queques vai quase para dois meses e a partir daí nem um tacho de arroz-doce me passou à frente da vista?!
legível
vocês devem estar cheios de razão mas agora vou comer um pastel de nata.
Acho o texto muito bom pela seguinte razão:
Faz bem a transicção do tédio e ausência de rotina da senhora para uma ocupação tão banal e tão agradável. Afinal só bastava aquela compra, a atenção do empregado, para que a partilha de um doce -- E de tudo o que se deseje imaginar -- entre aqueles dois personagens.
Parabéns.
trouxe um pedaço de bolo...
que os levou e renovar as forças?!!!
abrazo serrano
Lindo. :-)
Marta M.
Que o seu Natal seja cheio de paz e harmonia
em companhia dos amigos e da família.
Que a passagem deste ano
renove e revigore
em todos nós a esperança
de saúde,
prosperidade,
bem estar
e felicidade.
Boas Festas
a reler as pags 827 e ss..
abrazo serrano y europeo
... azar de Hulk e Sapunaru que não repararam na luz ao fundo do túnel...
...de forma muito básica e sem reler qualquer página e ainda por cima, míope, cada vez mais míope sem descurtinar Hulk e Sapunaru sobrepostos à luz ao fundo do túnel, deixo-te aqui os meus votos de um Natal feliz.
:) Beijos
... céguinho a toda a largura do rectângulo de jogo e quase nos descontos, deixo abraços e beijos (lá se me vai a reputação) natalícios.
nesta guerra assanhada
dos que à bolsa abrem os cordões
aqueles que não têm nada
não podem ser campeões?
´tadinho do Braga! Até os lagartos lhe foram buscar o João Pereira!! Por acaso, nesse caso, concordo. É que o pai do rapaz é do Sporting e quando é assim...
É assim a modos como o Veloso, não é? É pá! cometi um agrafe (como diria o Jasus) o pai desse é do... é desses, dos teus, prontos!
Óptimo 2010!!
deixo um brownie
[ enlouquecido
como-folha :)
beijo de recomeço,
~
Escrita envolvente...
deliciosa
.
como esse bolo parece ter ficado.
Bom Ano
Bjs
Gulosa e cada vez mais redonda, vim aqui aos chocolates.
-Então pah :) e ums história nova para um ano novo?? :)
Beijinhos
vejo que ela ainda está a tossicar :)
abrazo serrano
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