Joguei uma vez na vida. Teria uns 10 anos, se tanto. Recordo apenas fragmentos desse dia, mas foi algo que ficou comigo. Era verão; mais um dia de praia; os meus pais; a surpresa, antes do regresso a casa. Não parece fazer sentido, mas acho que foi num hotel – ou, mais provavelmente, perto de um. Lembro-me de ter achado divertido, aquela coisa de atirar uma bola contra figuras de madeira, que me lembravam pinguins. Não havia bolas para crianças e os meus dedos, pequenos demais, perdiam-se nos buracos, não me permitindo uma pega decente – o peso também não ajudava. Quase deixei cair uma em cima do pé, o que me valeu uma advertência do meu pai. Cuidado, que isso pode partir-te vários ossos. Não era esse, no entanto, o meu maior receio. Era mais o de ir atrás da bola, planando sobre a pista.
Não convencido daquilo que via, preferi contemplar o enorme calhau em que me tinha apoiado, a dar importância à existência da casa. Tinha a certeza que, quando voltasse a olhar, ela não estaria lá, qual jardim. Era algo que se percebia com alguma facilidade, bem vistas as coisas: estava numa planície quase deserta e as miragens são comuns em quem tem a infelicidade de se perder em tão inóspitos lugares. E como me tinha perdido eu ali? A resposta teimava em não surgir.
Estiquei o tronco um pouco para a esquerda e levantei os olhos lentamente, como se estivesse numa sala de cinema, a assistir a uma cena de suspense. A casa continuava lá. Pisquei, esfreguei a vista. Fechei os olhos e abri-os de novo. Ainda lá. E, percebia agora, havia algo mais. Um segundo risco negro atravessava a paisagem, no sentido este/oeste. O cruzamento dos dois caminhos fazia-se à frente da habitação.
Não estava muito longe e não havia o que perder. Ilusão ou realidade, em breve ficaria a saber.
À medida que me aproximei, pude perceber que era uma casa em madeira. Toda ela constituída por tábuas rectangulares e largas, de aspecto robusto, que pareciam coladas umas às outras, já que não eram visíveis quaisquer pregos. Aparentemente sem tratamento, a madeira tinha o tom da terra circundante e imensos nós, que eram grandes círculos perfeitos, de um castanho muito escuro, o que dava um ar pintalgado e desapropriadamente cómico ao imóvel. Curiosamente, o telhado era também em madeira, mas sem nós. Havia duas janelas – que estavam fechadas com portadas da mesma madeira – e uma chaminé. A porta – desproporcionadamente grande e de aspecto maciço e pesado – ficava para lá de um alpendre. Duas traves suportavam a extensão do telhado, proporcionando, pensei eu, uma sombra que seria, por certo, muito apreciada nos dias em que sol estivesse descoberto.
Parei a uns vinte metros. Parecia estar vazia. Diria mesmo, abandonada, apesar do bom estado de conservação. Hesitei quanto ao que fazer: bater à porta, contornar a casa, chamar por alguém, seguir o meu caminho – mas, para onde? O sol rasgou a neblina, mesmo à minha frente, cegando-me. Quando, finalmente, consegui ver, tinha o banco de pedra do jardim à minha frente. Uma gota de sangue escorreu para o relvado mas, com aquela luz tão dominante, não havia sequer contraste entre o vermelho e o verde, e ela perdeu-se num mar de quase brancura, a meus pés. Tive então a distinta sensação que atrás da sebe estava alguém. Aproximei-me, mas estava no alpendre, com a porta à minha frente.
19 comentários:
Mania das modernices. Está bem de ver. Instalaram-me o Office 2007 e, desde então, tem sido chatice atrás de chatice. Pelos vistos, o Blogger e o Word 2007 não se dão. Já tentei tudo, mas sem sucesso. Copio o texto para aqui, mas a formatação não vem: aparecem parágrafos onde não existem; o Arial é transformado em Times New Roman; de tamanho 12 passa para tamanho 48; etc. Bem altero tudo já na zona de edição do Blogger que não adianta nada, ao publicar, sai como calha.
Nunca mais é quinta-feira...
...aqui sabe bem ler.
Reolá,
Continuo a gostar...
Beijinhos
Isa
on�rico. misterioso. tenso.
.inconcluso
como...planar sobre uma pista...!!
:)
- O que é que eu te disse Maria? Já foste à praça, já regressaste, tens a mesa posta, o bacalhau com natas pronto e só agora é que ele deu com a porta.
- Se tivesse apanhado o metro em Santa Apolónia, descido na Praça do Comércio, andasse um pedaço até à Rua da Conceição e tomasse o 28 para a Estrela, punha-se aqui no Jardim, num fósforo. Isto é pessoa que não conhece Lisboa, ´tá visto. E que não me faça má cara ao bacalhau...
- Espera lá, mulher... Olha, olha, agora está a olhar para a porta com cara de caso. Será que está indeciso? O melhor é começarmos a comer que pelo andar da carruagem só lá para o terceiro episódio é que ele se decide.
- Pronto, tu é que sabes. Vai lá lavar as mãos e vem para a mesa.
Isto está a ficar cada vez mais empolgante...:)
E face ao aviso supra já fiquei a saber que é melhor evitar o Word 2007...
excelente narrativa das miragens que são dom e aptidão de espíritos errantes. uma viagem pelos jardins e planícies repletos de estranhezas e sobressaltos. cantos da memória que tão bem misturas com a doçura introspectiva com que olhas e trabalhas o que está menos visível.
parabéns!
:)
Delicio-me com as tuas descrições e a forma como escreves. Gosto de vir aqui e ouvir-te contar...
Excelente momento, obrigada
havia muitos sonhos assim.
as peças sobravam
não encaixavam...
ficávamos o dia todo às voltas
e "aquilo" sempre ali!
fiquei assim ontem quando li
o que escreveste!!
e também muito curiosa...:)
beijO
Olá Olá ;)
Embora tenha tido um começo algo estranho enigmático até, meio em jeito de devaneio, agora a escrita começa a ganhar um contorno interessante...
Adoro a tua capacidade de cativar com descrições tão detalhadas!
Espero pela continuação...
;) bjs
Paty
p.s obrigado pelas mensagens que de vez em quando me deixas no blog, tenho andado mais silênciosa do que costume mas sempre atenta a tua escrita. Espero que td esteja a correr bem ctg!
Sigo a descrição quase sem respirar, quase com medo de fazer barulho e, com isso fazer desaparecer a casa.
Deixas-nos suspensos.
Bjs
Que fazer? Fugir e depressa... :) Quero lá saber para onde.
Estou mesmo suspensa do teu conto.**
Raios e coriscos. perde-se uma pessoa em divagações com a beleza do enário e depois aparece o sangue misterioso que ninguém sabe de onde vem. Se o legível não tivesse falado no bacalhau ainda era capaz de pensar que para o amoço estava a ser feito um bife á inglesa mas assim não chego lá.
Rui , tens uma capacidade extraordinária de nos fazeres "entrar" dentro da história. reconheceria esta casa onde quer que ela estivesse. Apetece dizer, eu sei, eu vi, eu estava lá.
O sangue é que dá cabo de mim :))))
Beijos e sorrisos (muitos)
É peculiar a forma como a nossa noção da dimensão do mundo vai mudando à medida que vamos crescendo... como aquilo que era imenso antes, agora nos é insignificante quase.
:)*
(bom fds)
Então e o resto??????
Então e o resto??????
anda tão maltratada e baralhada a natureza, que sangra por dá aquela palha!... quantas lhe deste pra sniffar?
conheço essa casa, tal como a Gi
e atrás da sebe estava uma gaja... muito feia... e por isso não te apareceu... queria que continuasses a ser um menino sem traumas...
yayaya
abrazo monarquico e europeo
Ainda as alucinações?
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