Não foi há muito mais de duas semanas que, por manifesta estafa e contra o mais elementar bom senso, me sentei numa das cadeiras da “Taberna do Menino Jesus” – coisa que só inconscientes e alheados da vida fazem de bom grado. O Metro tinha avariado, os autocarros da Carris atulhado e eu, como não ganho para táxis, inconformado tive de palmilhar a calçada desde o Saldanha até à Baixa. E cansado, sentei-me…
Já a caminho de casa, uma inusitada sensação de corrente de ar nas costas teimava em me acompanhar. Entrei na Rua do Carmo com a desconfiança que um pedaço de camisa tinha ficado para trás, agarrado ao sebo das costas da cadeira.
O rosto sumido e desfocado da Ana Salazar surgiu entre dois manequins femininos que, desprovidos de braços e pernas, mas elegantemente vestidos em vários tons cinza, se suspendiam do tecto, presos pela cabeça. Eu, espantado, encostei o nariz à montra para a ver melhor. Ela, assustada, deu um passo atrás e começou a manear a cabeça para cima e para baixo, como que me perguntando que diabo estava eu a fazer.
Tentar explicar à Ana Salazar que estava a usar a montra da loja dela para ver, pelo reflexo, se tinha um buraco nas costas da camisa, feito numa taberna, enquanto comia uma bifana e bebia uma mini, foi impossível. Ingénuo, eu até estava cheio de boa vontade: virava-me de costas e apontava para trás, quase encostado ao vidro. Afinal, nunca antes tinha gesticulado com uma figura pública. Mas ela não estava pelos ajustes e fez sinal que ia discar um número de telefone – são já alguns os anos em que andamos a pressionar teclas para telefonar mas, pelo menos para quem anda nisto de estar vivo há já uns tempos, há gestos que ficam para sempre. Por entre a mímica, percebi-lhe no desenho dos lábios uma palavra: policia.
Enchi-me de ganas e retorqui-lhe logo ali, no meio da rua, bem alto e com gestos dramáticos. Qué que foi, pá? Só por seres quem és, pensas que mandas nisto? Abaixo o 24 de Abril! Ficas a saber que tive um bisavô que lutou contra os alemães e foi preso pela PIDE. A mim, também ninguém me cala. E, num rasgo de duvidosa inspiração, acrescentei: e ficas a saber que nunca mais te compro nada!
Na montra, já não estava a Ana Salazar, apenas o seu dedo médio da mão direita tinha ficado breves segundos para trás, esticado na minha direcção. Depois, ficou o meu reflexo, as duas bonecas desmembradas mas elegantes, cinco feios sapatos desemparelhados e o reflexo de uma coruja branca. Quando me virei, algumas pessoas olhavam para mim e eu vi-lhes pena no olhar. Retomei a ascensão da Rua do Carmo com passos pesados. Demorava-me o cansaço e agora também, o desalento. Aquele desentendimento com uma figura do jet-set tinha-me enchido de um inesperado e estranho desalento. Triste fado o meu.
Uma coruja branca, eu não tinha visto uma coruja toda branca? Que raio, teria sonhado? Só podia, que outra explicação para tão estranha presença na Baixa, não encontrava. E foi então que senti de novo o arrepio nas costas. A camisa não estava rota, e no entanto… Um piar estridente sobrepôs-se à cantiga que enchia a rua, fazendo-me voltar a cabeça. Em cima do carro antigo, que faz a vez de loja de discos, dois grandes olhos de coruja, fitavam-me. Um papel colorido soltou-se das suas garras e veio ter comigo. O título anunciava: Lisboa Mágica — Street Magic World Festival.
20 comentários:
o vento bramia, bramia
e eu não dormia.
juntei-me ao rebanho
p´ra tomar um banho,
mas o vento uivava
como um cão danado
e eu sem o banho tomado
o vento era forte
e perdi o norte
fiz um buraco no chão
e se não fosse o cão
(que não era inglês)
tinha desaparecido de vez.
Acordei arrelampado e ouvi a voz da Ana Salazar "Não estejas triste que eu vou dar-te um banho bem quente. Tiro-te essa areia toda que trouxeste da praia, os teus receios do vento e... nem precisamos de chamar a Judite. Sim, a minha assistente loira".. Senti como que um soco no estômago e a bifana e o panalty tinto estiveram quase a sair por onde tinham entrado. Dois pesadelos no mesmo dia era fado...
Há magia onde a pusermos
;)
se fechar os olhos ainda nos consigo ver aos tres a passear por essa lisboa. E bem me lembro da loja da Ana. Ainda bem que lá nao fomos! Talvez nos tivessemos cruzado com o Juvenal e ele nos confundisse com alguém do jet-set.
beijos
Faço passeios além-mar, inclusive porque aprecio a magia de um bom texto. Também gosto de papéis coloridos soltos no vento. Abraço aí - Riodaqui.Paulo Vigu
Sou bem mandada, vi as fotos. Aquelas e as outras todas :)
Julguei que íam aparecer um par de asas de coruja no buraco da camisa mas afinal não :(
beijinhos, fico à espera da continuação
Gostei desta continuação e da forma categórica como a mandaste à fava e, especialmente, do penúltimo parágrafo. Muito bom.
O Legível para além de também deixar as “gralhas” nos comentários, deu em poeta?
Abraço aos dois.
Escrita brilhante, como sempre. Confesso que não tenho passado por aqui desde a tua "greve" - este texto demonstra que tenho feito mal. Agora vou pôr a "escrita em dia" - e com muito agrado.
Um abraço
PS - Obrigado pela oferta do teu texto à minha toca. Bastante melhor que o texto comentado, diga-se.
Deambulando por onde haja magia para deixar ao vento...
Estiveste belíssimo! :-)
:) Já tive a rir um bocadinho com isto :)
vou continuar a ler :)
Em tempos tb me encostei a montra da Fátima Lopes a cuscar os modelitos e tb olharam pra mim com um ar altivo ... não liguei e tanto não liguei, que todos os sabados passava lá no meu passeio de bicicleta e encostava para lá ir cuscar ... não é que tivesse nada para ver ou que esses modelitos fossem o meu estilo, creio que era mesmo pra chatear, heheheh, é o espirito de contradição que falta + alto. Depois dizia alto "não tem nadinha de jeito, que vergonha de farrapada" eu de calções, sapatinhas, boné e bike ...
Haja paciência!!
Mas é engraçado como uns tostões, um carro, uma marca, fazem creer certas pessoas que são superiores as outras.
Vivemos num mundo de tolos e ilusão, e muitos ainda se deixam deslumbrar por estas futilidades.
Tomará a Ana Salazar ou a Fátima Lopes poder entrar numa taberna comer uma bifana e beber uma mini sem vergonha de lá estar.
Vivem para mostrar, para serem vistas, para parecer bem, elegante e bonito ...
Adorei as fotos ;-) adoro fotos, ando sempre de maquina fotográfica, hehehe
Beijinhos e aguardo mais...
SS
Eh p�!!!
Desancaste a senhora!!!
Devia, pensei eu, ser a coruja do harry potter - mas ppor que raio me veio o potter � cabe�a.???
Mas pronto... se estas a falar de magia... n�o fiquei longe!
Eheheh
sim senhor saíste-te bem da discussão da montra!
...vagamente bem...
coruja branca...pois já vi! mesmo!:)
Infelizmente a qualidade do jet-set que temos é de dar vómitos.
Falo do jet set que faz de tudo para aparecer nas revistas cor-de-rosa nem que seja através dos escandalos relacionados com a sua vida privada.
não daqueles que se impõem pela força do seu talento.
Acho que esses são cada vez mais espécimes em perigo de extinção.
Mas estiveste muito bem. É ridícula a situação.
Quando for à rua do carmo vou fazer pior. Vou entrar, cuscar, experimentar, desarrumar a loja toda e no final saio sem sem comprar rigorosamente nada.
(eheheh...)
CSD
Oh pá!!! não acredito?!??! isso foi mesmo assim!!? não pode...
ai o que me ri... só por isso valeu a pena!!!
e olha que em vez de pena, aqueles olhos deviam ser de admiração!!!
se fossem os meus, seriam...
mesmo se (como cavalheiro) podias ter-te aguentado mais um xisco! :oD
bjss
:) eu adoro o chiado!
*
Expectante pela continuação.
Além de saber contar uma história, tu combinas a mestria da escrita com a "cor" do ambiente... e consegues manter o leitor sempre interessado. **
Bom dia,
Tu encantas com o teu canto....
Sexta feira é dia de festa no virtualrealidade,dois anos de felicidade, vem participar da nossa alegria.
Beijo!
Isa
caramba, ainda não comentei este já vais no outro????
vou ler
Continua- magicamente!
Enviar um comentário