um telemóvel toca. As luzes acendem-se na sala e no quarto. Ela entra na sala. Veste agora uma saia preta, por cima do joelho e uma camisa branca. Está descalça. Penteia-se. Ao ver quem lhe está a ligar, faz uma careta e inspira, desalentada. Atende sem falar)
- Ana, eu sei, mas deixa-me falar.
- Depressa João, e pela última vez.
- Por muito estranho que isto possa parecer, eu preciso mesmo ver-me livre desta coisa.
- Nem sei que te diga, sinceramente.
(senta-se)
- Tu não percebes, mas isto liga-se sozinho, a toda a hora, sem que eu lhe mexa. Fica imenso tempo sem parar.
- Isso nunca aconteceu antes.
- Acontece agora, acredita. A meio da noite, desata a tocar, é insuportável. Está a deixar-me louco.
(entra no quarto procurando onde colocar a cinza de um cigarro; acaba por virar uma das molduras e apaga o cigarro no vidro)
não suporto mais isto, Ana. Há mais de duas semanas que é isto. Começou por ser de vez em quando, de longe a longe, mas tem vindo a piorar e agora é mais o tempo em que está a tocar do que o que está calado.
- Tens passado muito tempo em casa?
- Eu…
(começa a andar de um lado para o outro; hesita)
pedi licença sem vencimento, foi isso.
- João…
- Estou de baixa. Pedi e eles… o médico deu-me. Ando cansado, durmo pouco, tu sabes.
- Quem foi o médico que te dei baixa?
- er… um amigo do meu primo, é ali para os lados do Saldanha.
- O teu primo não conhece nenhum médico e a minha paciência esgotou-se…
- Espera, espera.
(faz sinal com a mão a alguém que não está presente; custa-lhe o que vai dizer)
eu despedi-me!... fui despedido…
(acrescenta, num sussurro; do outro lado, ela baixa o telemóvel e leva a mão à boca)
- Desde que me deixaste que não consigo atinar. É muita coisa para a minha cabeça.
- Estava a demorar.
- Não percebi.
- Pois não, nunca percebeste.
- Ana, por favor.
- Estás a culpar-me, João, mais uma vez. Agora foste despedido porque eu te deixei.
(o tom de voz é de desalento; fala baixo)
- Eu preciso de ti!
- Meu grande cabrão!
(levanta-se)
- É verdade.
(senta-se)
- Tarde demais.
- Preciso de ajuda.
- Ora aí está uma novidade.
(visivelmente surpreendida)
nunca antes te ouvi semelhante coisa. Reconheceres isso já é alguma coisa.
- Eu sei que errei.
- Não fizeste o mínimo esforço.
- Eu gosto de ti.
- E eu sempre te amei, é essa a diferença. Pena só a ter percebido muito tarde, quando já muito me tinha entregue, quando já tinha dado muito de mim. Tudo… e de ti só recebi pouco mais que nada. Nunca fizeste um esforço, nunca quiseste saber.
- Não é verdade.
- É verdade, sim!
- Casei contigo, não casei? Aliás, quem quis casar fui eu.
- E eu cedi, infelizmente, que não estavas preparado para casar. Lá achei que tu mudavas, que eu te mudava, não sei.
- Não, nada disso, eu casei porque gostava… porque te amava e queria muito estar contigo.
- Achaste que o casamento era a maneira de me ter, de obteres o teu merecido descanso, que a partir dali já estava o problema resolvido. Mas ser feliz não é fácil e o casamento não é o fim de nada, é só o princípio de outra coisa.
(aquelas palavras estavam a custar-lhe mais do que poderia supor; dava-se agora conta de que as não tinha dito no dia em que tudo acabou)
38 comentários:
... Alcides apanhou um susto dos antigos quando ouviu o pano cair. Tarde percebeu que tinha ficado entre a espada e a parede -que é como quem diz, entre o palco e a plateia. Apenas o fosso da orquestra o separava do embróglio onde se tinha metido e a salvação. Coisa que nunca pensou na vida, foi ser actor. Representar, representava... mas não tinha a ver com a arte de Talma.Era mais a arte de impingir, de porta em porta, um aspirador que fazia maravilhas:«... a senhora verá que, em apenas sesenta minutos, a sua casa ficará completamente limpa. A máquina engole tudo; até a power-box que permite ao seu marido ver a sport-tv e outras coisas menos decentes... » argumentava ele à potencial cliente.
Ouviu o toque de um telemóvel que vinha da esquerda alta do palco e uma luz ténue desenhou-se no palco. De gatas, procurou levantar uma ponta do pano e pôr-se a milhas dali. Transpirou abundantemente que aquilo mais parecia um pano de... ferro, tal o peso, mas conseguiu os seus intentos. Tal como o pano antes, caiu no fosso da orquestra, precisamente em cima de um piano...
as vezes custa muito a dizer as coisas mais importantes... mas que tem que ser ditas...
mto giro... tou viciada na história!
e cá vou continuando a ler até a ir visitar ao teatro...:)
jinhos
Tão bem escrito.. fantástico! Impossível resistir a estas narrativas!
(pronto, 'tou tramada... o Legível já largou p'ra li uma tirada... e eu nem sei versar...)
saiu do teatro assim que acabou a estreia. apertou o casaco; estava frio. Emocionara-se. "cedi, infelizmente". Estas palavras não-lhe saiam da cabeça (onde estava o parvo do marido que não aparecia? era sempre a mesma coisa...) mas ele afirmara que fora por amor. (estaria estacionado mais adiante?) E ela acusara-o. Não teria sido dura demais? (que coisa, estava gelada e o marido nada). Mas ele tinha sido um fraco, era um facto(teria que ir de taxi?).
a mulher acaba por apanhar um taxi ao fim de esperar meia hora e chega acasa e Não encontra o homem só...
As discussões conjugais, que coisa estranha são... Algo à parte do resto do mundo, numa outra dimensão, obtusa, doentia, cheia de surdos rancores e gritos de culpas. Pedaços disformes de gente dorida; que cortam, que mancham, que ficam, que matam. Bah!
Mas como prende, rapaz!... Muito sinceramente, arrebata desde o zero; e isso é muito bom!
O texto está com uma categoria dos diabos! As sequências, o ritmo, a expressão e o tom... Delicioso!
Acho também um mimo essas brilhantes continuidades a que a fiel claque procede, liderada ali por outro mestre dos contos. Eu nem me atrevo a encostar a ponta do meu dedo em tais escritos; sentir-me-ia como um chavalito que sem querer deixa a sua dedada de chocolate num copo de cristal.
Fica até difícil dizer que foste arrolado nos que não tive como não mencionar... Mas o facto é que foste!
Ainda assim, fui muito previdente em escolher um grupo que se conhece sobejamente, que é para se poderem juntar todos a dizer mal de mim: - "Mas ela pensa que nós, escritores a sério, não temos mais nada que fazer é?" ;-)
Mas, quem sabe, entre esta novela e um conto, entre uma canção e um ponto, entre a razão e o desconto...
See ya soon!
Um abraço! :-)
("imbróglio" ou "embrolho")
To apc:
... embróglio de embrulho: Papel de Embrulho.
... se isto são horas de andar práqui a prestar esclarecimentos...
(ahahahahah)
Mas vocês moram ao lado de algum galinheiro, ou deitam-se com o regresso do sol?
E a peça continua...fascinante!
bjs
... na parte que me toca, sta noite não preguei olho. Tive um sonho terrível: eram cerca das vinte e três horas de quarta-feira e em Milão festejava-se a vitória do...
... Porto no dia anterior. Vá-se lá perceber estes italianos. Ou seriam portugueses a labutar na terra do calcio?!
Maravilhoso.
Parece que entrei no meio da vida desse casal, que no fundo todos nós casados e/ou divorciados já vivemos dialogos semelhantes.
Tanto sabemos de cominicação na teoria mas a prática é bem diferente. Falhamos e voltamos a falhar mesmo depois de analisados os erros, ficamo-nos pela intenção de para a próxima evitar errar de novo.
A vida a dois é dificil e amar não chega por mais que se ame... é preciso mais muito mais e esse muito mais é todos os dias e não dá descanso... entre duas pessoas que se amam não se pode descansar... o amor labuta-se todos os dias...
Senão acaba e ai apenas sobra tempo para os arrependimentos e para de repente à luz da saudade ver o que nunca se tinha visto antes.
Adorei o teu texto.
Escreves, com entrega total... eu adoro isso... fascina-me ver o autor do texto espalhado pela sua própria escrita... vejo-te a ti.
( neste momento em que te escrevo acabei de receber um comentário teu, curioso estar-mos a ler-nos ao mesmo tempo)
Até breve.
Isabel
Tenho andado ausente...
vim expressamente deixar um beijinho. :)
I.
Excelente prosa!
Voltarei para ler com mais disponibilidade.
O que eu acho extraordinário é que se consiga tanto diálogo!... :)
Obrigada pela visita.
Este post diz tudo, as discussões conjugais são mesmo assim... do nada se parte para tudo.
Parabéns! O teclado do computador para ti é como as teclas de um piano para um músico... os dedos flutuam ao sabor da alma!
Gostei muito e vou ancorar por aqui mais vezes.
Algures deste país de poetas á beira-mar plantado!
Jinho
Rui, tu consegues tão bem criar "suspense"!... Aguardo o desenrolar da históia e continuo a pensar que vem aí, não um final feliz, mas um final divertido!...
Cá fico ansiosamente á espera do terceiro andamento. O 1º e 2º estão optimos.
Beijocas
Para quando, a estreia?
Bom dia amiguito.
Ainda não li os teus andamentos...mas vou ler.
Só passei para te dar um beijinho de saudaditas
:)
um beijo Rui
Precisei de um abraço…e tive-o nas tuas palavras ternas.
Obrigada.BShell
andava aqui a volta, a modos que pedir demissão de meus nrs, e pensei ora ora, café e leitura em dia :)
que ideia a minha, fantastica! serio serio, muito muito bom. excelentes promenores.
1bj*
Mas isto pega-se???
Ando eu no meio das artes Cénicas e tu adar-me mais trela.
MUITO BOM!
Estou fascinada, com isto. Aind ao proponho ao encenador para próxima actuação ;)
E logo vou ao Teatro, ver "O Homem sem cara".
Beijo
Gosto muito... mas vou confessar que isso de ler aos bocados só aumenta mais a vontad... :*
... é tal e qual como ela diz! mas esquecem-se! depois as consequências são drásticas... ficam infelizes, pois ficam!!! adoecem...
acabou, não há nada a fazer...
espera! há sim! uma viagem! sempre pode ir passear no "barco do amor"
boa Rui, dá-lhe com força (...)achaste que o casamento era a maneira de me ter, de obteres o merecido descanço ????? (...)
beijo :)
Só para dizer que tenho estado a ler... de olhos abertos, mas tenho lido tudo.
Estou a gostar desta historia.
... dá gosto trabalhar nesta companhia. Entre cada acto um actor pode fazer umas férias valentes! Completamente diferente dos "Morangos" onde já me "mataram" uma vez e regressei no dia seguinte dando "voz" a um cão...
Alcides Rebelo, artista residente.
Talvez por ser espelho de tantas realidades, esta tua peça prende-nos definitivamente (pois, li os dois posts). Revelas um conhecimento muito bom da psicologia feminina. :)**
Estuaram ali. Na vista ensombrada do contexto. Mudos e sisudos. Um começou a desenhar no chão com o bico do sapato. A palavra era não. O outro começou a relembrar velhos conflitos, gritos convictos, outros ditos e constrangimentos. Ambos apontaram confluências, foram buscar interferências daqui e dali, disto e daquilo. Amplificaram o eco e enumeraram diferenças, chapinharam nos (des)entendimentos e nas impossibilidades. Chamaram todas as mentiras e algumas verdades que não eram para ali chamadas.
Por fim, recapitularam semelhanças e outras danças. Invocaram a magia, a capacidade de renovação da vontade e reviveram os momentos de fama íntima. Recitaram beijos, tremeram desejos. Andaram dali, rumo à regeneração e à continuidade. Das afinidades, das fragilidades e do esplendor da ilusão.
...e claro, estou atenta e a gostar dos teus andamentos. Bom trabalho!
E pela minha parte (sim, porque eu estava noutra parte que não a do Legível, há que deixar claro, para não haver embrulhos) é assim: quem dorme de noite vive apenas metade da vida. Entendeu?
:-P
Dove hai imparato a parlare italiano, Leg? [imbroglio!!!]
;)
E ainda tou para descobrir o que há de Turco nesta Alla. Ah, mas eu chego lá!!!
"(aquelas palavras estavam a custar-lhe mais do que poderia supor; dava-se agora conta de que as não tinha dito no dia em que tudo acabou)"
O dia em q td acabou?
Ou o dia em q nos apercebemos q td já tinha acabado?
Um abraço.
a realidade!
não há um terceiro andamento????
beijo grande!
A Loucura resolveu convidar os amigos para tomar um cafe em sua casa. Todos os convidados foram.
Apos o cafe, a Loucura propos:
- Vamos brincar ao esconde-esconde?
- Esconde-esconde? O que e isso? - Perguntou a Curiosidade.
- Esconde-esconde e uma brincadeira. Eu conto ate cem e voces escondem-se.
Ao terminar de contar, eu vou procurar, e o primeiro a ser encontrado sera o proximo a contar.
Todos aceitaram, menos o Medo e a Preguica.
1,2,3,... - a Loucura comecou a contar.
A Pressa escondeu-se primeiro, num lugar qualquer.
A Timidez, timida como sempre, escondeu-se na copa de uma arvore.
A Alegria correu para o meio do jardim.
Ja a Tristeza comeýou a chorar, pois nao encontrava um local apropriado para se esconder.
A Inveja acompanhou o Triunfo e se escondeu perto dele debaixo de uma pedra.
A Loucura continuava a contar e os seus amigos iam-se escondendo.
O Desespero ficou desesperado ao ver que a Loucura ja estava nos noventa e nove.
- CEM! - gritou a Loucura. - Vou comecar a procurar...
A primeira a aparecer foi a Curiosidade, ja que nao aguentava mais querendo saber quem seria o proximo a contar.
Ao olhar para o lado, a Loucura viu a Duvida em cima de uma cerca sem saber em qual dos lados ficar para melhor se esconder. E assim foram aparecendo a Alegria, a Tristeza, a Timidez...
Quando estavam todos reunidos, a Curiosidade perguntou:
- Onde esta o Amor?
Ninguem o tinha visto.
A Loucura comeýou a procura-lo.
Procurou em cima da montanha, nos rios, debaixo das pedras e nada do Amor aparecer. Procurando por todos os lados, a Loucura viu uma roseira, pegou um pauzinho e comecou a procurar entre os galhos, quando de repente ouviu um grito.
Era o Amor, gritando por ter furado o olho com um espinho.
A Loucura nao sabia o que fazer. Pediu desculpas, implorou pelo perdao do Amor e prometeu segui-lo para sempre.
O Amor aceitou as desculpas.
Hoje, o Amor e cego e a Loucura acompanha-o sempre!
Bom Fim de Semana
Kissesssssssss Pequenita
Mais uma vez, fico 'suspensa' esperando por mais...
Por acaso já te disseram que a tua escrita é agradável? ;))
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