Abriu o postigo. Precisava deixar entrar alguma da luz daquela tarde e um pouco de ar fresco.
Sentiu uma ligeira brisa passar-lhe pelo rosto, agitando-lhe os ralos e escassos cabelos brancos. Fechou os olhos e inspirou mais prolongadamente que o habitual. Há já algum tempo que não se lembrava de que ainda estava vivo.
Regressou ao velho e coçado sofá, apoiado no cajado. Sim, estava melhor assim, pensou. Era desta maneira que passava grande parte dos dias, sentado, a bater com a ponta do cajado nos gastos sapatos de camurça, os únicos que possuía, a olhar as coisas que havia na sua sala de estar.
Sabia que estava em casa, uma velha habitação de piso térreo na zona antiga de Carnide. Uma resistente do antigamente, de um tempo em que Carnide era campo, longe da cidade propriamente dita. Nos últimos quarenta anos, tudo tinha mudado, primeiro aos poucos, mais recentemente com grande rapidez e hoje, aquele amontoado de casas velhas, era quase uma aberração aos olhos de muita gente. Uma aldeia antiga dentro da cidade.
Entretinha-se a ver as pessoas, a adivinhar-lhes a vida pelas roupas, pelos gestos e pela maneira como falavam. Com a sua idade, achava que conseguia perceber a sinceridade das pessoas à distância, mesmo sem perceber o que diziam umas às outras. Espantava-se com a quantidade de vezes que lhe parecia que alguém dizia uma coisa em que não acreditava.
Ao grupo da noite passada achou piada, pareceu-lhe diferente. Não detectou neles nada dessas coisas que seriam, também, coisas destes tempos de agora, como costumava dizer para com os seus botões. Pareceram-lhe todos um pouco atrapalhados, como se não conhecessem uns aos outros – coisa que, no entanto, não os impedia de estar bastante bem dispostos. Apresentações feitas, cumprimentos trocados, lá foram eles, à procura do tacho. Quando saíram, quase três horas mais tarde, ainda ele lá estava, empurrando uma pequena pedra com o cajado, esperando o sono.
Achou que se tinha enganado, o grupo vinha em tal euforia que, afinal, só se podiam conhecer há muito tempo. Havia ali uma relação forjada num outro tempo, de uma outra maneira, não podiam ter-se conhecido ali, à porta do restaurante. Deixaram-lhe saudades quando se afastaram.
Lançou um último olhar pelas coisas da sua pequena sala. Aquela luz, ainda que filtrada por uma ténue nuvem, dava vida a todos os objectos que lá estavam, algo que a luz artificial não conseguia fazer. Estava a saber-lhe bem estar ali, a olhar para a decoração que um dia a sua mulher tinha escolhido para trazer alguma vida aquele espaço. Permitia-lhe recordá-la. Mas agora tinha mesmo é que fechar o postigo, eram um perigo as correntes de ar.
Ao aproximar-se da porta, deteve-se. Trazido pela brisa, um cheiro doce invadiu-o. Que era aquilo? Lembrava-lhe algo. Se ao menos pudesse confiar na sua cabeça… Dos restaurantes não podia vir, aquela hora estavam todos fechados.
Saiu. No meio da rua, concentrou-se e esperou. Sim, era isso: farturas!
39 comentários:
Hummmmm e a esta hora da tarde, que bem me sabia uma fartura.
Bem regressadoooooooooo, ufaaaaaa custou. Fico à espera de mais.
bj
Farturasssssssssss =)
Gosto muito de Carnide. Descreveste-a muito bem: uma aldeia antiga dentro da cidade.
Um retrato fiel dos nossos velhos bairros de Lx -que mais parecem aldeias- e dos nossos velhinhos, de cabelos brancos e de vida suspensa num tic tac misterioso, de memórias e postigos de luz...
farturas! as memorias das farturas!
beijo!
Van
finalmente, o regresso! E que melhor maneira de acabar o "capítulo" do que com farturas?
Rui, regressaste e ainda bem.
Agora que já consigo comentar, tas tramado.
Regressaste em grande...
Beijos
regresso mto bem feito! abraço!
Rui...zito
Sê bem-vindo! Então que tal de férias nesse Guadiana que passa mansamente pelas minhas terras? Só mesmo tu para despertares em mim as saudades daqueles campos onde muitas vezes vi grandes rebanhos, apascentados por homens bons como este, sempre acompanhados do cajado, indispensável, e de dois ou três cães. Conheci um pastor, o Ti Zé Branco, um dos poucos alentejanos que abandonou a planície e partiu para os subúrbios da capital.Tinha um cão, o Gigante.Nenhuma ovelha lhe escapava. Lembro-me das pequenas hortas, os hortejos, onde não faltavam as couves, os alhos, as batatas para o caldo verde, e as parreiras de latada que cobriam os alpendres das pequenas casas térreas. Muitos desses homens e mulheres eram beirões, simples, sãos, afáveis. Hoje já estarão na leira que os viu nascer ,a viver de magra reforma.Ou já partiram!
A ternura que me despertaste por este homem não tem conta, nem tem peso nem medida.Era capaz de lhe levar as farturas ao bairro.
Hoje foi dia de post do contista.
E foi tão bom!
Beijinhos
Lindissimo... lembrou-me uma pintura do meu amigo Real Bordalo.
Nessa pintura não eram farturas eram castanhas.
Lindo esse quadro, fiquei a admira-lo na exposiçaõ muito tempo... parecia que tinha cheiro a castanhas.
No teu texto senti o cheiro das farturas... isso é escrever.
Obrigada pela tua visita, aguardo novas visitas.
Eu tambem voltarei.
Isabel
Excelente regresso Rui...
Ate podia sentir o cheiro das farturas ao ler-te! Como sempre no teu melhor, prende-nos, fixa-nos e faz-nos sentir que estamos no centro da acção!
;)
Obrigado pelas palavras no meu canto!
Beijinho gd
P.s. Espero que os pequenotes estejam bem e cheios de vitalidade!
HUMMM Farturas!!! :D.
Como sempre, um primeiro post especial para um desenrolar que todos aguardamos ansiosos...
É a primeira vez que faço figuração num conto da blogsfera. Nada a dizer que é sempre bom experimentar todas as artes.
Gostei de voltar ao local do crime, agora sem os problemas da primeira vez. E como é curioso representar o que fizemos na vida real...
Abraço.
Farturas...? Farturas...?
Como era isso possível??? Já não se viam farturas naquela zona há anos. Haviam sido dizimadas com a introdução dos polvos na região. As farturas, pouco habituadas a predadores com tantas "mãos", acabaram por entrar em extinção...
Pelos vistos, algum outro predador tinha começado a fazer sentir o seu efeito na população dos polvos, pertmitindo, assim, o regresso das farturas...
Um abraço, e cumprimentos ao venerando senhor, que ainda consegue viver a vida ao seu ritmo natural.
Bom dia amiguito!
Ainda bem ke voltas-te, poxa já tinha saudades de te ler Rui.Espero ke tenhas tido boas ferias, eram merecidas sim senhor.
Vai o próximo, livra-nos mais um pouco do suspense.
beijinhos fiko á espera
Na minha terra às farturas dá-se o nome de Massa Frita e não, não se comem só em dia de feira, todos as terças e sábados o casal da massa frita, monta a reloute, a senhora vende queijos de cabra, vaca e mistura enquanto o senhor se entretem com a seringa.
A minha terra é Reguengos de Monsaraz.
*
faz algum tempo que não vinha aqui :)
Beijo
As saudades que eu já tinha das tuas "historias". Bela narrativa.
E as Farturas, hum!!!
Á porta do "meu" Intermarché existia uma reloute com farturas, pipocas e algodão doce, foi roubada.
Jokinhas
Carnide, o Largo da Luz, a Feira anual onde ía pela mão da minha avó...
E as Farturas...! e a fartura de nativos de caranguejo que andam pela blogosfera! :)))
Gostei de ter passado por cá.
Deixo um abraço. :)
I.
como eu gosto de farturas
hum........
Aguardo a segunda parte ;-)
Bjs
Bem vindo à outra 'feliz maioria', com contos, muitos contos e textos.
A tua escrita é límpida e fluída, agradável...nada que não saibas já, mas não dito por mim ;)
a velhice assusta-me. e se juntarmos a isso a pobreza e a solisão, não há nada mais triste.
fiquei com um nó na garganta ao ler o teu texto. ás pergunto-me qual é o objectivo da vida...trabalhar e trabalhar, para depois definhar num qualquer quarto em "carnide"?
gostei, e obrigada pela tua visita.
beijo
gostei! escreves mt bem
… e logo à noite,
quando a brisa ainda quente
encobrir os nossos corpos
suados e derramados.
…quando soltarmos a torrente
de paixão que nos incendeia,
nos transforma num abraço
escaldante e fogoso.
… quando em ti beber o desejo
que vertes e me lanças nos lábios,
que te beijam e invadem.
…logo à noite,
humm direi apenas as palavras
que o silêncio devora
em chamas de prazer…
Bom Fim de Semana...beijocasss
um beijo no postigo cheio de luz!
bom fim de semana :)
Van
Eu também gosto muito da Luz que vem deste teu postigo :)
Quase que me revi nesse teu personagem, também tenho a mania de observar as pessoas e imaginar o que são, o que vivem, tento "ler-lhes" a alma...
Pois esse encontro à porta do restaurante só podia ser um grupo de bloggers que finalmente se conheciam fisicamente ;))
Farturas..humm, quase que lhes sinto o cheiro, e ainda bem que é só o aroma que de resto sabem bem mas fazem tão mal ;)))
Beijinho e bom fds
A velhice, a solidão... e uma luz que leva a um cheirinho de farturas. Esta é a primeira parte? Quero ler o resto.:)**
já li! adorei a parte da observação das pessoas pelos gestos!! ehehhe (faço o mesmo e olha que às vezes também me perco no tempo - se é que existe!). E tu também o fazes porque de outro modo não o descreverias assim ahahah
é giro não é??
fico à espera do resto!!
(e claro que o aroma das farturas é inconfundível)
Solidão, muita solidão, no eterno vazio da vida o que preenche é um cheiro...farturas, continua tou a gostar
até aqui se sentiu o cheiro das farturas, para mim com pouco açúcar e muita canela, se faz favor, obrigada
adorei reler-te, rui
continua, sim?
beijinhos,
alice
definitivamente! Farturas!
Gosto da tua escrita!
BShell...e um beijo azul!
Olá Rui
Encontrei neste texto, não a solidão no seu lado mais triste, mas sim uma luz suave que estimula o espírito dos que sentem em profundidade aquilo que vivem. Uma chama doce e terna que os afaga nas dificuldades que, muitas vezes, sentem ao viverem as suas afectividades. É uma luz que aclara as memórias, trazidas pelos aromas eternos que andam soltos por aí, no espaço e no tempo.
Percebi neste velhote melancólico e reflexivo a vida vivida, mas também uma frescura na alma que o coloca ao abrigo de qualquer envelhecimento. Deve ser por isso que com a sua idade ainda se espanta com a quantidade de vezes que lhe parece que alguém diz coisas em que não acredita.
Gostei muito, claro.
devia vacinar-se...
farturas, é oah tem muito óleo...
yaya
vou à 2ª
Que bonito retrato...
E que pormenor engraçado e subtilmente metido, esse dos encontros de conhecidos forjados noutras paragens e que só agora se conhecem, mas que na realidade já se conheciam. Têm sido boas as surpresas que tenho tido nesse campo. E pelos vistos, as tuas também. :)
Um abraço
... depois, a possibilidade de lá encontrar alguém do tal grupo que tanto lhe chamou a atenção, levou-o a desejar ir até lá, rever cores e cheiros, tão próximos, conhecidos...
esboçou um sorriso, os olhos iluminaram-se
algo o chamava, tinha que ir... a energia pressentida, naqueles seres harmoniosos, as boas noites que com toda a naturalidade lhe deram, estimulavam-no, dando-lhe a força necessária, o impulso...
sim, iria!
beijo
Que saudades tenho eu desses tempos de outrora em que as casas rusticas e antigas recordam passados felizes,familias unidas e cheiros que não se esqueçem de pessoas queridas. Perderia tempo a encontra-las dentro da cidade e a olha-las e imaginar como teria sido antes...por vezes quando passo por elas no meio de tantos predios e tanta gente ponho-me a imaginar como teria sido aquela casa em tempos,as pessoas que la viviam e tento viver essas recordações como se fossem minhas...é o meu centro de paz.
Farturas?! Mas a festa da Luz foi em Setembro!! :o)
Perguntemos-lhe se não costumava ver um casal da idade dele, com o filho e a nora, e as duas netas... ah pois via! de certeza!
Ultimamente já via só a senhora da sua idade e o filho... não era? ah pois era!
Qt ao grupo... aposto que era um Blogdate!! eh!eh!
BJss
ps- E agora não sei se algum dia terei corajem de lá voltar....
:)
Lembraste-me um pouco a noite de Julho em que atabalhoadamente lá nos encontrámos todos... dá ainda que pensar, passados meses, nos porquês de tais encontros, desencontros e aventuras passadas...
Curiosamente, inspiraste-me para uma pequena história.
Carnide lembra-me também outros jantares, com amigos e amigas de velhos tempos... e é uma zona bonita... digo eu, que nem sequer sou de Lisboa :)
Beijos (vou ler a parte dois agora)
Olá Rui,
regressas com um tema repleto de realidades dos nossos dias.
Parabéns!
Beijinho (vou ler a segunda parte)
Isa
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