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Espero que estejas bem. Temos todos muitas saudades. Tenho o João ao colo, ele vai falar… diz olá ao pai… farta-se de falar, mas agora nada, é sempre assim. Todos os dias lhe mostro a tua foto e falo-lhe de ti. O tempo tem estado bom, dias de sol, sem vento. Aceita um beijo de quem mais te quer.
Parei a gravação e deixei-me ficar. Olhava em frente mas não via nada. Estava longe dali, sem saber bem onde. Não tinha raízes! Tal como o meu olhar não tinha onde pousar, também eu senti naquele momento que não pertencia a lugar algum. Nem a ninguém.
Mais do que nunca, apeteceu-me uma bebida. Tinha que sair dali e depressa.
- Whisky? Na Cantina não temos whisky. – O empregado olhava-me com espanto.
- O que é que têm com álcool?
- Cerveja, só isso.
Saí do edifício e o sol acertou-me em cheio, com violência. Fechei os olhos e senti uma tontura. Tive que parar. Sentei-me num banco, à sombra de uma pequena árvore. Sentia-me prestes a desmaiar.
O movimento era escasso, alguns alunos dirigiam-se para o edifício da Cantina. Olhei para o relógio, eram quase 13h00 e eu não comia nada há muitas horas. Tinha bebido um café e comido metade de um queque ainda em Lisboa, antes das 8h00. Pagava o preço das emoções fortes e de um estômago vazio.
- Então é aqui que você está. – Uma voz atrás de mim trouxe-me à realidade. Era Alberto Cosme.
- Ah, sim… precisava apanhar ar.
- Fui lá ter consigo para virmos almoçar, mas não estava. Andei à sua procura.
- Ouça, você por acaso… er… não tem… er… nada, deixe, vamos lá almoçar, sim.
- Você está bem? Está branco, homem.
- Dor de cabeça, isto passa.
- Então venha daí, não é nenhuma especialidade o que aqui se come, mas é barato.
Eu disse-lhe que sim, na altura quase nem o ouvia com atenção.
- E só encontrou uma gravação da sua mãe?
- Desculpe, como disse?
- Se só encontrou uma gravação da sua mãe.
- Há mais que uma? – A minha surpresa era grande.
- Como deve calcular, não faço ideia, mas era frequente voltar às mesmas localidades, algum tempo depois, noutra campanha, ou seja, pode haver mais mensagens da sua mãe… ou de outro familiar seu. – Alberto falava com a boca cheia de omeleta, agitando as mãos no ar, segurando os talheres.
- De facto, eu não ouvi mais nada, pensava que só havia uma gravação.
- Então vai ter que procurar mais um pouco. Nós, no estudo que fizemos, ouvimos as gravações e encontrámos várias pessoas com mais que uma mensagem. E olhe que a Fuzeta era das terras mais visitadas pela RDP.
Veio-me à memória a reportagem da TSF. Tinha sido lá que os técnicos do Museu Marítimo tinham realizado as primeiras entrevistas fora de Ílhavo, reagindo assim à extraordinária manifestação de disponibilidade de muitos pescadores da Fuzeta para a partilha das suas memórias, ainda em 2005, no âmbito da itinerância da Exposição de fotografia A Campanha do Argus, em Olhão.
Meu local de nascimento, ao qual nunca tinha dado importância.
O início da mensagem era idêntico ao anterior, o meu pai estava de novo na Terra Nova, mas pude perceber facilmente que a voz da minha mãe estava alterada, não parecia sequer a mesma. Ao contrário da calma anterior, do sorriso na voz, havia agora algum temor nas palavras ditas.
Parei a gravação e procurei a data na caixa do cd. 1970, dois anos depois da primeira mensagem, o ano em que tudo tinha acontecido. Aquela seria a derradeira campanha do meu pai. Poucos meses depois daquela gravação a minha mãe iria suicidar-se. Teria isso alguma coisa a ver com aquele tom de voz alterado, com toda aquela emoção?
Não era possível, a minha mãe não podia adivinhar o que iria suceder. Teria tido um sonho, uma premonição? A minha cabeça fervilhava, começava a doer imenso. Sentia alguma desorientação. Respirei fundo várias vezes e ouvi a mensagem de início:
Não havia terceira mensagem. Fiz cópias das duas gravações e regressei a Lisboa.
A Leonor concordou comigo, era muito estranha aquela segunda mensagem, nada tinha a ver com a primeira, quase nem parecia a mesma pessoa.
- O que é que eu posso fazer? Não há mais nada nos arquivos que me possa ajudar. Ainda perguntei ao Dr. Alberto, mas vagamente, não quis dizer-lhe o conteúdo da segunda mensagem. Eles não têm mais nada relacionado com as gravações.
- Só vejo uma coisa que possa ser feita, João. – Leonor fitava-me com um olhar muito particular dela, o mesmo que lhe bailava nos olhos quando ela descobria uma saída para um caso difícil em que trabalhasse.
- O quê? – Perguntei eu, receando a resposta.
- Temos de ir à Fuzeta perguntar pelos teus pais.
24 comentários:
...só mesmo essa doce Leonor...coisa de mulher nao desistir, ir mais longe :)
Gosto dele.Do homem que tem o bacalhau enrolado nas tripas da vida, à espera de um sol que o seque. para por fim poder ser digerido...
bacalhau, prato servido com sal.
Por falar nisso, há muito tempo que não faço bacalhau com natas :) e ainda bem :)
duas beijokas :)
excelente o mistério :)
um BJ
Muito bom!
Bom fim de semana
Beijinhos
Continuam os cortes na altura certa.
=)
E agora a intriga aumenta...
E eu novamente suspensa nas tuas próximas palavras. Gosto do teu modo de escrever.
Beijos
Só no fim, já sabes...
Beijoca.
E vê lá se vês aquiulo dos fados
Que grande e emocionante aventura Rui!
fico a espera de mais.
bj e bfs
Humm, um policial?! Adoro policiais...! Haverá na Fazeta alguma Miss Marple?!
Ai ai.. boa sorte pro João!!!!
já sabes, a ler apenas :)
Ola Rui
Tenho tid pouco tempo,mas adoro sempre ler-te,e agora fiquei espantada com mais uma historia.
Beijos
Ai ai ai...a coisa complica-se!!
Que raiva na parte melhor...zumba!
:P Lá terei que esperar pelas cenas dos proximos capitulos :D
Beijos e bom fim de semana
ummm.. à fuzeta, isto está interessante... tou a calcular mas como modificas sempre o sentido da cosa...
cumprimentos monárquicos
à procura de raízes desconhecidas... essa é uma viagem sempre proveitosa... mesmo que, neste caso, o João nunca venha a entender a sua repulsa pelo bacalhau...
Uma viagem no tempo, em busca de respostas para uma história de vidas. Acompanho. Sempre.
Bom fim de semana!.
Acabei de ler a 3ª e a 4ª parte. Mais um desenrolar fabulástico de mais uma história que, as usual, promete :-)
Gostei do pormenor da advogada/analista, não podia concordar mais :-)
Bjnhs e bom fds
Quando se inicia algo, temos de ir ao fim
Cada vez mais cativante. Aquela escrita que prende mas de forma pura, por si só. Parabéns mesmo Rui.
Voltarei!
meu caro encontrei por acasso o seu blog, e tenho que lhe dizer que é verdadeiramente maravilhoso.
muitos parabéns
Lá tive eu que ficar aqui um bom bocado a actualizar-me...
... o imaginário das crianças adoptadas deve ser complexo... nada é linear nos seus, percurso e desenvolvimento
temos de ir à Fuzeta
beijo, dia feliz Rui :)
demora o V...e eu suspensa à espera...
Amanhã volto...
Tenho muito que ler por aqui.
Beijo do olimpo
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