A escura parede líquida aproxima-se rapidamente. Entre o cinzento carregado da água e o do céu, uma fina linha branca de espuma no topo da vaga.
Balançando suavemente, o barco aguarda o embate iminente. Na ponte, o Mestre da embarcação, olhar perdido que já nada vê para além do vidro encharcado à sua frente, nada mais pode fazer e o Segundo Oficial, agarrado ao leme, reza de olhos fechados e cabeça baixa. Os restantes homens aguardam o seu destino no interior da embarcação, em silêncio.
Subitamente, são sacudidos com violência e ninguém consegue manter o seu lugar; alguns rebolam no chão de madeira. Objectos são lançados pelo ar.
Impotente perante tão grande massa de ar, cede. Há água por todo o lado; a casa das máquinas é inundada e o motor pára. Sem controlo, o barco está perdido. Chegar aos Dóris é impossível e também não adiantava, todos sabem disso.
Ouvem-se gritos de desespero. Alguns, num derradeiro esforço, tentam alcançar o convés.
A água invade todo o espaço em segundos, o barco afunda-se levando consigo a tripulação. O último centímetro cúbico de oxigénio é empurrado para fora. A luta pela vida está a terminar.
E depois, lá estou eu, sentado num beliche, assistindo a tudo, tranquilamente. Não me estou a afogar, sinto-me seguro.
Sinto, então, uma mão que, vinda das profundezas, se agarra à minha canela. Puxa-me para baixo. Sou tomado pelo pânico, debato-me com quanta força tenho, tento agarrar-me a algo, mas não consigo, aquela mão é poderosa e leva-me com ela para o fundo. Afogo-me também.
Dormi pouco mais que três horas e sei que não vou dormir mais. Há já vários meses que é assim.
Mas, daquela vez, decidi fazer um esforço sério para que fosse diferente. A Leonor vinha a pedir-me isso há mais de uma semana e levou toda a viagem de Lisboa ao Bombarral a implorar-me para que fosse “minimamente sociável” com os seus amigos.
- Há alguma coisa em que possa ajudar? – Perguntei eu à porta da cozinha. Fez-se silêncio, todos pararam olhando na minha direcção. A estupefacção era geral.
- Bom, podias desfiar estas postas de bacalhau. – Respondeu a Matilde, um pouco hesitante, sem saber se eu estava a falar a sério ou já tocado pela bebida.
Isto porque eu odeio bacalhau! Não falo em o comer, coisa de que não me lembro de alguma vez ter feito (mas que sei que fiz em pequeno). Eu não suporto sequer a ideia de olhar para ele. No supermercado, evito sempre passar pelo sítio onde está exposto e, há umas semanas, durante um noticiário televisivo, mudei de canal quando a reportagem foi sobre o perigo de extinção da espécie. A notícia agradava-me, as imagens causavam-me repulsa.
E agora, prova suprema, ali estava eu, o namorado mal disposto, antipático e insuportável, tolerado apenas porque andava com a Leonor – uma jóia de pessoa -, tentando, pela primeira vez, mostrar que era mais que isso, sujeitado a tão duro teste.
Aceitei-o, havia que mostrar que alguma coisa a Leonor tinha visto em mim para que me aturasse há mais de dois anos.
Se me recuso à desfia do bacalhau ia ter que explicar esta minha estranha aversão. A juntar a todos os outros defeitos, ia passar a ser também maluco, o que, não sendo absolutamente errado, é manifestamente um exagero.
Também me portei bem na confraternização. Participei nas conversas, misturei seven up no vinho e na cerveja, rejeitei o whisky digestivo. Confesso que, ao contrário das outras vezes, até achei os amigos da Leonor pessoas respeitáveis. É que o álcool não ajuda só o tempo a passar mais depressa, pelos vistos, distorce também a percepção que temos dos amigos das nossas namoradas.
Conhecia na redacção do jornal. Eu tinha ido entregar as fotos em mão, o que é muito raro, e ela lá estava. Trabalhava para o escritório de advogados do jornal e tinha lá ido falar com um jornalista por causa de um processo de liberdade de imprensa em que ele era arguido.
Era também muito raro o advogado ir à redacção e isso ajudou-me a convencer que o nosso encontro não fora só uma coincidência.
Dois anos e meio depois, continuava a ser para mim um mistério o que aquela advogada de sucesso e extremamente bonita, tinha visto num tipo como eu, um mísero fotografo free-lancer, especializado em fotografia de desporto, sem qualquer vida social, com problemas de relacionamento – excepto com o álcool -, de feitio difícil, mal disposto, antipático e, geralmente, insuportável… sim, os amigos dela tinham razão, admito-o.
Pela aparência também não podia ser, que estou longe de qualquer ideal de beleza. Durante muito tempo, achei que era por eu ser mais velho. Tinha, na altura em que nos conhecemos, 39 e ela 35. Ela sempre contestou isso. - O que quer que seja que eu sinto por ti, não se explica, sente-se. - Responde-me sempre ela.
Sabia-a feliz e prometi a mim mesmo fazer um esforço sério para merecer o que quer que fosse que ela sentia por mim.
Liguei o rádio, coloquei o som baixo e sintonizei a TSF, eram 20h00 e queria ouvir as notícias.
Nada se tinha passado naquele último domingo de Abril. Acabei por me distrair e deixei de prestar atenção ao rádio, até que, minutos depois, algo chamou a minha atenção: alguém parecia estar a tentar colocar uma cassete no leitor, só que o carro tinha leitor de cd’s.
Olhei para a Leonor, continuava a dormir. Uma voz rouca de homem começou a cantar. Percebi então que o som vinha das colunas, era o início de uma reportagem da TSF. Nada mais, nada menos, que sobre a pesca de bacalhau!
30 comentários:
Agora que já consigo comentar, sou logo a 1ª!!!!
Não li o texto, não tou com cabeça...
Beijinhos
Hummmmmmmm, cheira-me a bacalhau...
Já agora tens alguma foto da carolina na catedral com uma camisola rasca onde se lia ( orelhas estou aqui )?
Um abraço
e coincidências não existem meu caro :)))
saudades
demorô, meu caro, demorô!!! mais, mais, mais!!! tb sou como a outra, n acredito nadinha em coincidências!!! bjs
E pronto, o filho pródigo a casa volta e pelos vistos transpuseste (e bem) as tuas ideias :-)
Bjnhs
Rui, lamento (que menti'osa que eu sou!...) que as tuas férias tenham acabado e verifico que não te estragaram! Como disse, ou quase, a Akasha, o filho pródigo na casa do pai entorna... É bom, muito bom, ler o que escreves e este "vida demorada" já promete!...
estou a gostar de ler-te..
conhecer-te.. :)
beijinho
é preciso ter azar, bacalhau também na tsf.
é bom voltar a ler-te agora, desde o inicio, a acompanhar o crescimento.
=)
É sempre bom voltar par te ler...
Difícil comentar a tua escrita. Venho cá só ler e deixo beijinhos, tá?
Para onde nos levas desta vez?!
Já embarquei...
continuando nas coincidências, e depois da ausência a escrita surge quase como o prolongamento, da ausência leve e linda como se espera da primavera
kiss
eheheheh... as mini-férias da Páscoa, deram bons frutos. Bem hajas pelo excelente texto que, por isso, não vou comentar, sou pequenina demais para isso.
beijo
Uma história nova! Yupi!!!
Já estou a gostar:)
Beijinhos
Isto promete!
jinhos
Komo te disse...
Tás como o Vinho do Porto meu kerido...
Vá lá kero mais.
Beijinhos
Upssssss , mas o vinho embebeda poças ehehehe
:)) Rui, pois existe...
Bacalhau... também não sou dos melhores apreciadores... terei que começar a pensar em rever as minhas atitudes? :)
Tenho muito gosto em ler os teus textos.
És um escritor
Rui, há algo que me inebria de certa forma na maneira como combinas a realidade com a ficção. Nunca se consegue perceber se o que contas é baseado na tua história, na de alguém ou simplesmente pura ficção...é genial. Tocou-me profundamente uma frase: "o que quer que seja que sinto por ti, não se explica, sente-se"...esta frase tal e qual foi dita por mim há quase um ano e entendo tão bem o seu significado. Fez me sorrir! Obrigado :)
Beijos
P.s: Ah! Quanto aos códigos de que me falaste...pois agradecia :)
Começa a curiosidade =P
Sorrisos e beijos
És incrível, consegues sempre deixar-me a pensar.
Admiro imenso a tua forma de escrita, a tua sensibilidade. Não desperdices esse dom que Deus te deu.
Bons sonhos
Beijinhos
Dizem que ha mil maneiras de o cozinhar...é como as historias...e das tuas, gosto muito!!!
Viajemos, então :)
fobia a bacalhau é fantástico! :-)
aguarda-se a repostagem sobre a pesca do bacalhau...
Beijo e boa tarde
hum... era mais reportagem...
Começo a achar que tenho que te conhecer melhor...;-)
Aquele abraço
EHEH!
só tu, para ires de lisboa ao bombarral, com tsf e amigos e namorada e bacalhau, tudo à mistura ! :o)
muito giro, por enquanto, deixa lá ir ler o resto.....
BJs
Essa "mão vinda das profundesas" às vezes também me visita... :S
Outras vezes é só um tubarãozinho, com ar guloso, a mordiscar-me as canelas! ehehehe
Beijo, padrinho :P
Enviar um comentário