Patrícia mordeu o lábio inferior e abriu muito os olhos, como faz sempre que está perante uma dificuldade.
Por momentos, conseguiu abstrair-se da situação difícil em que a filha Joana a tinha colocado. Olhando para ela, reparou como estava diferente, como tinha crescido, desde a primeira vez em que lhe tinha feito uma pergunta a que não sabia muito bem como responder, fazia naquele dia, precisamente, dois anos. Os caracóis tinham-se tornado mais escassos e mais abertos, na exacta proporção em que o cabelo se tinha tornado menos claro; a expressão perdera passividade e os olhos, muito azuis, ganho preponderância no seu rosto redondo e terno.
Quase a completar cinco anos, era um compêndio de dúvidas, exigindo para todas, resposta rápida e convincente.
Após vários meses de luta contra o cancro, o pai de Patrícia morrera e, durante vários dias, Joana fez muitas perguntas sobre o desaparecimento do avô. Havia entre ambos uma relação especial. Viúvo e com apenas aquela neta, coube-lhe, desde cedo, a tarefa de a ir buscar à Creche e entretê-la até que um dos pais a fosse buscar. Foram muitas as histórias que lhe contou, muitos os sítios onde a levou a passear, os lanches que dividiram, as gargalhadas que partilharam. De um dia para o outro, o avô deixou de puder fazer essas coisas, passava o dia deitado num sítio estranho, onde estavam muitas pessoas tristes, e já não a ia buscar, já não lanchavam juntos, nem iam passear. Continuava a contar-lhe histórias, mas também já não ria como antes. E depois, desapareceu.
A mãe falou-lhe do céu, de anjos e de como o avô tinha ido para um lugar melhor, mas isso só lhe aumentou a confusão: se era bom estar no céu, porque não iam para lá, ter com o avô?
Mordendo o lábio e com os olhos arregalados, Patrícia olhou em redor. Não eram muitas as pessoas que tinham vindo propositadamente à missa de celebração do segundo aniversário da morte do pai, mas a igreja estava quase cheia – sobretudo com as paroquianas de sempre, as que, todos os finais de tarde, cumprem o mandamento de Cristo de fazer o que ele mesmo fez na Última Ceia.
Nos últimos dias, tinha tentado explicar à filha o que era uma missa e que esquisita ideia era essa de celebrar o desaparecimento de alguém de quem se gosta. Agora, em plena homilia, era confrontada com o que lhe pareceu ser o seu fracasso.
Os fiéis olhavam para Patrícia. Uns sorriam, outros nem por isso. O padre tinha-se calado e um inusitado silêncio caiu sobre a audiência, como se estivessem todos à espera da sua resposta.
Impaciente, Joana puxou a mão à mãe e repetiu, bem alto, a pergunta:
– Quando é que cantamos os parabéns ao avô?