Foi vai já para duas mãos cheias de anos, mas lembro-me bem. Dizia assim: Você Numa Palavra. Não que ligue a esse tipo de análise instantânea como as mousses, mas a curiosidade apanhou-me distraído e acabei por gastar quinze minutos da minha existência a preencher o questionário da revista – o de sempre: uma situação é colocada ao leitor, que depois deverá seleccionar a opção de resposta que mais tenha a ver consigo; somam-se os pontos e consulta-se a tabela junta. A originalidade deste passatempo (que outra coisa não podia deixar de ser) era o resultado ser apenas apresentado numa palavra, mais exactamente, um adjectivo.
Não lhe dando importância, a verdade é que nunca mais esqueci o resultado, embora seja coisa em que faço por não pensar, talvez por receio de concluir que é verdade: resignado. Segundo a tabela, era isso que eu era.
Tudo isto me veio à ideia quando me vi assim reflectido, naquele mágico fim de tarde no Chiado. O toque nas costas – mais um empurrão que outra coisa – foi tudo menos amigável e deu o tom ao dialogo que se seguiu. Vá, vamos lá a mexer, foi a primeira coisa que me disse. Voltei-me e, para meu espanto, tinha perante mim mais uma figura da nossa praça. Vá lá, para casa que o jantar já deve estar na mesa, insistiu. Demorei algum tempo a perceber o que tudo aquilo significava: primeiro, porque não o reconheci imediatamente, depois a surpresa de ter o Luis de Matos a dirigir-me a palavra com maus modos, e por fim, ver o meu reflexo nos seus óculos espelhados.
Bem mais alto do que eu, mirava-me como o Golias deve ter mirado o David. Atrapalhado com tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo, só me via a mim, minúsculo nas lentes dele. Nada de importunar o artista, siga mas é o seu caminho. Eu, que nunca antes tinha sequer estado perto de gente conhecida, naquela tarde, em poucos minutos, era já a segunda vez que me cruzava com alguém conhecido da televisão e das revistas – e ambos pareciam decididos a implicar comigo, que me sentia cansado e só queria chegar a casa.
Luis de Matos, nem mais. O nosso Siegfried. O nosso Roy. O Copperfield lusitano. O homem que atravessa paredes de canecas, faz desaparecer elefantes e adivinha o Totoloto, estava a empurrar-me. Sendo grande mágico, é também a medida da nossa pequenez enquanto país: em 1995 acertou na chave do Totoloto com uma semana de antecedência, mas vejam lá se ele acerta na do Euromilhões. Uns poucos milhares de Escudos? Não custa nada. Uns milhões de Euros? ‘Tá quieto. É a cruz que teimamos em carregar: pobrezinhos, mas honrados. Parece-me mal e tenho para mim que ele devia tentar, quanto mais não fosse, para mostrar mais uma vez a essa Europa aquilo de que o tuga é feito – nem que fosse numa semana em que não houvesse jackpot, para ser mais fácil, que ninguém lhe levava a mal por isso.
Oh amigo, siga o seu caminho, e mais um empurrão. Vejo-me diminuído no reflexo, mas reparo que estão lá dois de mim. Foi o suficiente para sair do estado de torpor em que me encontrava. Resignado, eu? O sangue ferve-me num repente e já o estou a empurrar também. Que é, pá, há azar? Aos impropérios e interjeições que se seguíram, vou poupá-los, mas ainda vos digo que ele depressa percebeu que tinha mais a perder do que a ganhar em continuar a troca de insultos com um zé-ninguém em plena via pública, e acabou por se acalmar. A intervenção de Larry Porter também ajudou, ao se meter entre nós e ao dizer ao amigo mágico que eu não o estava a importunar. Eu só quero ir para casa, pá; se falei aqui com o seu amigo é porque me pareceu conhecê-lo – e estava agora ainda mais convencido disso, que na troca de encontrões, acabei por ver que ele tinha uma cicatriz na testa, tal como eu suspeitara.
Luís de Matos fez-me ver que, nunca tendo eu saído do país – com a honrosa excepção de ter ido uma vez a Ayamonte, não havia ainda ponte no Guadiana – pura e simplesmente não podia conhecer o Larry, que nunca antes estivera em Portugal. Pela televisão, contrapus. Impossível, rebateu o mágico, ele nunca apareceu na nossa televisão. Eu calei-me que, por não os ter, não me lembrei do cabo nem da parabólica. A tudo isto o visado respondia com o sorriso amarelo de quem está numa situação desconfortável. Com a mochila onde tinha guardado os artefactos da profissão, às costas, parecia um miúdo no primeiro dia de aulas, numa turma em que todos os colegas se conheciam. Ia fazendo festas à coruja que, de olhos fechados parecia dormitar no seu braço, e dizia: no problem, lads, that’s quite alright, e virando-se para mim, acrecentou: really, i never been here before. Estive quase para lhe dizer quem eu achava que ele era, mas o medo do ridículo não me deixou falar e acabámos por ficar uns minutos na conversa.
Já a sorrir, o Luís explicou-me o que era o festival Lisboa Mágica e os seus planos para o futuro. Larry, por sua vez, contou como não tinha ainda tido tempo de visitar a cidade, como estava a achar as pessoas muito simpáticas e que ia aproveitar para ficar uns dias por cá, para jogar golfe, a sua nova paixão, depois de ter deixado de praticar o seu desporto favorito. Football, disse eu. Oh no, Quid… Nesse momento, a coruja abriu os olhos e bateu as asas, soltando um grito que fez parar o Chiado. Curling, acabou Larry por dizer, i just love to sweep the floor, e estampou um sorriso ainda mais amarelo que o anterior. Eu ia falar de vassouras, mas ele levantou-se rapidamente e disse que tinha de ir, que a mulher e os dois filhos estavam para chegar à estação de comboio. Estendeu a mão e eu agarrei-a, sacudi-a, e não a larguei. Disse-lhe que teria todo o gosto em o acompanhar a Santa Apolónia e, de caminho, parávamos para comer qualquer coisa na “Taberna do Menino Jesus”. Pork sanduíche, very nice!, e pisquei-lhe o olho. Larry não conseguiu evitar um esgar e, educadamente, rejeitou a oferta da sandes e da boleia, até porque, disse ele, a estação era já ali perto, no Rossio. Impossível, expliquei eu, que essa estação estava fechada há muitos anos para obras. No trains. Ele soltou a gargalhada mais bem disposta que ouvi nos últimos anos. Don’t worry, it’s a special train.
* * *
Ao passar pelo Luís de bronze, encolhi os ombros na sua direcção: ou estavam todos doidos ou estava eu. Ele manteve-se impávido, sereno e cagado de pombo.
Demorei-me uns segundos a ver as cabines do elevador da Bica, já meio encobertas pela escuridão, cruzarem-se a meio da calçada, e comprei um pacote de manteiga no supermercado vizinho. Encontrei lá a Dona Alzira, a minha vizinha de baixo, e ajudei-a a trazer o saco das compras. Falámos da carestia de vida, de como os políticos são uns bananas, que só querem dar cabo da vida das pessoas e de como as paredes da nossa rua estão todas conspurcadas com desenhos estúpidos, feitos por gente estúpida. Depois mudei de roupa, fiz um chá de camomila e uma torrada, que comi devagar, à janela das minhas águas-furtadas, a ver as luzes acenderem-se pouco a pouco, do outro lado do rio. Ao colo, o livro de aventuras que estava a ler e que olhei com desconfiança, não fossem essas mesmas aventuras estarem a dar-me a volta ao miolo. Ia pegar nele quando, pelo canto do olho, me pareceu ver a silhueta de uma coruja a fazer um voo rasante aos telhados que cobrem a encosta até, à frente da minha janela. Estiquei o pescoço para fora, mas já só ouvi um piar a desvanecer-se ao longe.
Ao apanhar o livro do chão, reparei que no lugar do bilhete de cinema que servia de marcador, estava um envelope lacrado. Na frente, em letras grandes e estilizadas – com aspecto antigo e distinto – uma frase: Always Believe.
(fim)