quinta-feira, abril 23, 2009

Fingir

Tem sido com olhos preguiçosos que percorro a cidade. A cada dia, demoro mais tempo a chegar. A calçada permanece escura, reflexo do céu, que teima em se não destapar. Pesam-me os pensamentos nas pálpebras que, incapazes de sucumbirem, permitem a orientação suficiente que me vai amparando a queda. Desvio-me de tudo e de todos por instinto – esse traidor que me permitiu o convencimento na minha capacidade para os maiores feitos: uma certeza que chegou, insuspeita, e se instalou mansamente, enquanto a negava – o meu inferno.

Absurda, a crença em que a existência não pode ser apenas isto, que estamos destinados a algo maior e melhor quando, afinal, nos limitamos a apressarmo-nos de um lado para o outro para, no fim, nos encontrarmos sempre no mesmo sítio, da mesma maneira. Sempre iguais ao que de nós esperam. Mais distantes daquilo que verdadeiramente somos e de quem nos quer alguma coisa de bem.

Vi hoje a calçada a ser rasgada pelo negrume da água, de cima a mim atirada para que não esqueça aquilo que sou e, finalmente, senti nos músculos a coragem que só a percepção indubitável das coisas dá.

Derrubei-me ruas acima, cidade abaixo, até aqui chegar. Vim rápido, para ter tempo de te deixar uma palavra. Eu sei, não de viva voz, mas perdoar-me-ás, por certo, mais esta minha fraqueza; tu, que conheces o tortuoso labirinto em que me enclausurei.

É chegado o tempo de fingir.



Amarrotou a folha e deixou-se cair na velha cadeira de madeira, sem saber o que fazer ao papel. O estofo estava degradado e já não dava conforto à dor. O olhar encontrou o espaço entre as cortinas, que não tinham sido totalmente corridas, e o exterior surgiu-lhe em quadrados baços e desfocados, do tamanho dos pequenos vidros de que eram feitas as portas de acesso à varanda. Reparou em como não era a luz vinda da rua que iluminava a divisão, mas antes, era a penumbra da sala que emprestava alguma da sua luminosidade aquele dia de chumbo.

Sim, há demasiado tempo que a falta de vida das nuvens não dava tréguas, mas apenas isso, pensou. Tudo o resto não tinha de ser assim tão definitivamente trágico. Quis ter a oportunidade de dizer isso e de que não existem distâncias tais que uma palavra não consiga encurtar.

Não a teria.

Dobrou-se para a frente na cadeira, como se uma dor insuportável tivesse tomado posse de si. Estava sozinho na sala, mas sentiu-se desconfortavelmente observado pelas memórias que a habitam. Levantou-se ao mesmo tempo que recomeçou a chover. Água que encharca o raciocínio e o enegrece. Abriu a mão e a folha aumentou de volume, revelando a última frase. Ficou largo tempo a olhar para ela. Depois, abriu as portas da varanda e atirou o papel fora.

A calçada ficou ainda mais escura, com a tinta que da folha se derramou.


terça-feira, abril 14, 2009

Vagar

Vinte carcaças… não, quinze carcaças... dez carcaças… quinze carcaças! Talvez sejam demasiadas. Talvez não caibam no congelador. Separadas, às três ou quatro, haverão de caber. E porque não voltar cá amanhã? Duas chegavam…

Os algarismos contorceram-se no mostrador vermelho, acompanhados pelo habitual ruído que chama a atenção para a progressão numérica. Deu um pequeno passo à frente, indeciso. Tossiu sem vontade e sorriu sem convicção, para ganhar tempo. Quinze carcaças, acabou por murmurar – acrescentou um se faz favor, mas as palavras morreram-lhe ainda antes de chegarem aos lábios. Trocou umas moedas por um saco de papel cheio de pão fumegante, que enfiou dentro de um saco de plástico com asas. Deixou a pastelaria do pão sempre quente e atravessou a estrada, a caminho de casa mas, ao deixar o asfalto, mudou de ideias. Diante de si, reflectido no extenso relvado, o sol de inverno convidava a pensar em mergulhos de verão. Sentou-se num dos bancos de muitos tamanhos e feitios que cercavam o quadrado verde, a contemplar as árvores despidas e os riscos assimétricos e desordenados que elas desenhavam na relva mal tratada. Corriam cães em todas as direcções e não faziam barulho, não ladravam. Jogavam miúdos às cartas, num dos vértices do Largo, e enchiam a tarde de gritos e palavrões. Do outro lado, um dos bancos, de pedra larga e comprida, estava preenchido a todo o comprimento pela indiferença de alguém perante a vida. Dormirá? Uma rapariga com ar de longe, aparentava aflição ao querer muito retirar uma cadeira de rodas, com um velho dentro, do relvado. Para a próxima, não vás para tão dentro da erva. O aroma que se libertava de dentro dos sacos distraiu-o da paisagem, ao mesmo tempo que um ronco profundo e grave lhe percorreu as entranhas. Estava-se bem ali, não fora a gulodice e a cabeça a ficar quente na proporção inversa em que as carcaças arrefeciam. Olá gente estranha, ‘atão? Mais uma rapariga para a molhada do jogo de cartas. Poupados nos cumprimentos de ocasião, que não servem propósito evidente, o grupo respondeu passando-lhe para a mão uma garrafa de litro de cerveja. Quente, foi fácil adivinhar no trejeito contorcido, que ela tentou disfarçar gritando um qualquer disparate mais alto que os gritos do grupo. Juvenil e jovialmente, deu por si a dar aos pés, como se estivesse a dar balanço num baloiço imaginário. Não conhecia outro jardim onde, à frente de cada banco, existissem tão profundas e largas crateras, seguramente escavadas por inquietos e balouçantes pés, ao longo de não pouco tempo. Era de tal maneira assim que, estando sentada normalmente no banco, nenhuma pessoa de estatura corrente conseguiria chegar com os pés ao chão. Sentiu saudades de baloiços. Quando terá sido a última vez que andei num? Vasculhou os recantos mais esquecidos da memória, mas não encontrou a resposta. Pudera, como pode alguém saber que aquela é a última vez que anda de baloiço; é algo importante apenas quando já não se tem idade para isso. Ficou a remoer aquele pensamento. Haverá uma idade para andar de baloiço? Um peso, talvez… – não se achando com coragem para voltar a sentar-se num baloiço, lamentou não se ter despedido convenientemente. Uma súbita sensação de vazio encheu-lhe o peito e o estômago, apontando-lhe o caminho de casa. Para mais, aquele sol era matreiro o suficiente para, aproveitando-se do seu pouco habitual baixar da guarda, o constipar. Devo ir. Mas o vagar daquela tarde manteve-o sossegado por mais algum tempo. Se ao menos tivesse trazido a boina... Teve uma ideia. Retirou o saco de papel com o pão e sacudiu vigorosamente o saco de plástico. Dobrou as asas para dentro e, indiferente aos olhares que sabia que iria atrair, colocou o saco no alto da cabeça. Os cães, ainda em silêncio, continuavam a correr toda a extensão do relvado. No canto do jogo de cartas, jazia abandonada e vazia uma garrafa de litro de cerveja. A rapariga que aparentava ter vindo de longe, já sem aflições, ia atrás da cadeira de rodas, pelo passeio. Escorrendo de dentro do saco de plástico, o ténue aroma de pão acabado de cozer penetrava-lhe as narinas, desassossegando-o. Um novo rugido subiu-lhe das tripas, mas ele deixou-se estar. A abanar os pés, como se estivesse a dar balanço.



quinta-feira, abril 02, 2009

Acreditar

Sentado no banco do jardim, sentiu um estremecimento na mais profunda parte de si. Era um ínfimo vestígio de tranquilidade – algo que já havia esquecido como era sentir. Talvez fosse por estar no jardim; talvez fosse a temperatura amena, espalhada pela brisa suave; ou as cores dos primeiros dias de Primavera e o sossego de estar sozinho. Fechou os olhos, para não arruinar o momento. Deitou a cabeça para trás e a luz do dia entrou-lhe pelas pálpebras cerradas, iluminando-o também por dentro. Cuspiu para o alto e deixou-se ficar: tinha decidido esperar ali, em pausa, pela vida. Acreditava agora que era ela que viria ao seu encontro, por estar demasiado cansado de a procurar. Tinha consciência do seu acto mas, a partir de agora, desafiaria as probabilidades.

Temeu pela pouca intensidade da brisa, mas apenas o tempo de uma contracção do coração.