Tem um trabalho ingrato: apagador-chefe, na Imensa Autoridade dos Caminhos da Vida. Compete-lhe eliminar os vestígios das estradas caminhadas pelas pessoas que não querem voltar atrás.
Só apaga a pedido e quando aceitou tal emprego, julgou que iria ter uma vida regalada de pouco ter que fazer. Quem é que não quer – nem que seja por um instante, para apenas matar saudades ou recordar algo – guardar o caminho que o trouxe ao sítio em que se encontra?
Por má estrada que fosse, por irregular que fosse o piso, sempre foi onde se deixou algo nosso, pedaços daquilo que somos. Podemos até nem querer voltar para trás, mas havemos sempre de querer saber o caminho. Nunca se sabe para onde vamos a seguir e, às vezes, pode ser útil amanhã o que não nos faz falta hoje.
Assim tinha avaliado a coisa. Mas a verdade que encontrou muito o surpreendeu: não havia mãos a medir, a toda a hora recebe pedidos para obliterar trajectos. Sem nunca conseguir evitar o espanto com tanta vontade de esquecer, lá vai ele, empurrando o carrinho de mão, a pá e a vassoura.
Tem um trabalho ingrato porque lhe custa recolher os despojos de vidas vividas. Cada objecto caído, cada memória abandonada, como se fossem partes de corpos, em nada diferentes de um braço, uma perna, um coração. Também eles necessários para viver.
Decididos a serem esquecidos, recolhe corpos mutilados, vidas mutiladas. E sente a sua definhar.
Talvez seja por isso que, ao contrário das ordens que tem, não incinera nada no fim de cada dia. Guarda tudo o que encontra no armazém dos fundos: tem esperança que um dia lhe apareça alguém, arrependido, à procura do caminho apagado, e ele possa depois ajudar.
13 comentários:
Um visionário este nosso amigo apagador-chefe...
Excelente, como sempre. Um abraço.
a tarde inclinou-se toda a tarde para o mar.
Rui, soberbo!
Se precisares de ajuda...conta comigo como voluntaria :)
É o trabalho do escritor...
CSD
ai...
acendedor de candeeiros
apagador de
memórias...
sem mãos a medir.
príncipe de trevas emprestadas.
armazéns de gestos.
eu tu ele e os outros.
beijO
de facto, nunca consegui usar bem a borracha apagadeira...
nunca.
os vestígios da apagação eram sempre mais dramáticos que as
formas apagadas.
aí sim, desisti
e agora
bem, agora, deixo ficar assim...
e queres saber que me parece...mais saudável!!?
~
Simplesmente genial...uma metáfora da vida.
Um beijo
... não é exactamente uma perna ou uma coxa que procuro, eventualmente perdidas nos caminhos de vida que tenho percorrido. No armazém do apagador-chefe -que pela descrição dos "artigos" deve estar cheio de lamentos do género "ai se eu soubesse o que sei hoje!" ou "fui por maus-caminhos, mas o que eu dava para voltar atrás!", o que eu gostaria de encontrar e não de apagar, era a fé. Sim, leram bem: a fé. A fé na esperança, que é verde e conduz ao caminho de Alvalade. Porque a vou perdendo encontro após encontro... perdido ou mal trilhado.
O apagador-chefe é um lírico!... A máquina humana não traz marcha à ré!...
Adorei! Como as palavras podem trazer imagens tão claras!
beijinho
grande armazém dos fundos... :)
ainda bem que as repetições não se avivam.
Gosto da forma como passas os pensamentos para o teclado :)
beijinho
... e porque haviam de querer voltar para trás, então não é para a frente que é o caminho???
diz-lhe que a Ordem dos Psicólogos está quase a sair e que vai ter em breve consultas de borla
fabuloso o texto e a ideia que passa. fabuloso, repito. sendo psicóloga clínica de profissão, este texto arrebata-me não por isso, mas porque antes de tudo, sou gente que, ao contrário da maioria (será?), sempre lutou dentro de si para não apagar um traço sequer do seu percurso. Adorei mesmo! Um abraço para si Rui. Até breve. Azul.
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