segunda-feira, novembro 20, 2006

K331 - Alla Turca (segundo andamento)

um telemóvel toca. As luzes acendem-se na sala e no quarto. Ela entra na sala. Veste agora uma saia preta, por cima do joelho e uma camisa branca. Está descalça. Penteia-se. Ao ver quem lhe está a ligar, faz uma careta e inspira, desalentada. Atende sem falar)


- Ana, eu sei, mas deixa-me falar.
- Depressa João, e pela última vez.
- Por muito estranho que isto possa parecer, eu preciso mesmo ver-me livre desta coisa.
- Nem sei que te diga, sinceramente.

(senta-se)
- Tu não percebes, mas isto liga-se sozinho, a toda a hora, sem que eu lhe mexa. Fica imenso tempo sem parar.
- Isso nunca aconteceu antes.
- Acontece agora, acredita. A meio da noite, desata a tocar, é insuportável. Está a deixar-me louco.

(entra no quarto procurando onde colocar a cinza de um cigarro; acaba por virar uma das molduras e apaga o cigarro no vidro)
não suporto mais isto, Ana. Há mais de duas semanas que é isto. Começou por ser de vez em quando, de longe a longe, mas tem vindo a piorar e agora é mais o tempo em que está a tocar do que o que está calado.
- Tens passado muito tempo em casa?
- Eu…

(começa a andar de um lado para o outro; hesita)
pedi licença sem vencimento, foi isso.
- João…
- Estou de baixa. Pedi e eles… o médico deu-me. Ando cansado, durmo pouco, tu sabes.
- Quem foi o médico que te dei baixa?
- er… um amigo do meu primo, é ali para os lados do Saldanha.
- O teu primo não conhece nenhum médico e a minha paciência esgotou-se…
- Espera, espera.

(faz sinal com a mão a alguém que não está presente; custa-lhe o que vai dizer)
eu despedi-me!... fui despedido…
(acrescenta, num sussurro; do outro lado, ela baixa o telemóvel e leva a mão à boca)
- Desde que me deixaste que não consigo atinar. É muita coisa para a minha cabeça.
- Estava a demorar.
- Não percebi.
- Pois não, nunca percebeste.
- Ana, por favor.
- Estás a culpar-me, João, mais uma vez. Agora foste despedido porque eu te deixei.

(o tom de voz é de desalento; fala baixo)
- Eu preciso de ti!
- Meu grande cabrão!

(levanta-se)
- É verdade.
(senta-se)
- Tarde demais.
- Preciso de ajuda.
- Ora aí está uma novidade.

(visivelmente surpreendida)
nunca antes te ouvi semelhante coisa. Reconheceres isso já é alguma coisa.
- Eu sei que errei.
- Não fizeste o mínimo esforço.
- Eu gosto de ti.
- E eu sempre te amei, é essa a diferença. Pena só a ter percebido muito tarde, quando já muito me tinha entregue, quando já tinha dado muito de mim. Tudo… e de ti só recebi pouco mais que nada. Nunca fizeste um esforço, nunca quiseste saber.
- Não é verdade.
- É verdade, sim!
- Casei contigo, não casei? Aliás, quem quis casar fui eu.
- E eu cedi, infelizmente, que não estavas preparado para casar. Lá achei que tu mudavas, que eu te mudava, não sei.
- Não, nada disso, eu casei porque gostava… porque te amava e queria muito estar contigo.
- Achaste que o casamento era a maneira de me ter, de obteres o teu merecido descanso, que a partir dali já estava o problema resolvido. Mas ser feliz não é fácil e o casamento não é o fim de nada, é só o princípio de outra coisa.

(aquelas palavras estavam a custar-lhe mais do que poderia supor; dava-se agora conta de que as não tinha dito no dia em que tudo acabou)

38 comentários:

Alberto Oliveira disse...

... Alcides apanhou um susto dos antigos quando ouviu o pano cair. Tarde percebeu que tinha ficado entre a espada e a parede -que é como quem diz, entre o palco e a plateia. Apenas o fosso da orquestra o separava do embróglio onde se tinha metido e a salvação. Coisa que nunca pensou na vida, foi ser actor. Representar, representava... mas não tinha a ver com a arte de Talma.Era mais a arte de impingir, de porta em porta, um aspirador que fazia maravilhas:«... a senhora verá que, em apenas sesenta minutos, a sua casa ficará completamente limpa. A máquina engole tudo; até a power-box que permite ao seu marido ver a sport-tv e outras coisas menos decentes... » argumentava ele à potencial cliente.
Ouviu o toque de um telemóvel que vinha da esquerda alta do palco e uma luz ténue desenhou-se no palco. De gatas, procurou levantar uma ponta do pano e pôr-se a milhas dali. Transpirou abundantemente que aquilo mais parecia um pano de... ferro, tal o peso, mas conseguiu os seus intentos. Tal como o pano antes, caiu no fosso da orquestra, precisamente em cima de um piano...

joaninha disse...

as vezes custa muito a dizer as coisas mais importantes... mas que tem que ser ditas...

mto giro... tou viciada na história!

Anónimo disse...

e cá vou continuando a ler até a ir visitar ao teatro...:)
jinhos

a_mais_fofa disse...

Tão bem escrito.. fantástico! Impossível resistir a estas narrativas!

Teresa Durães disse...

(pronto, 'tou tramada... o Legível já largou p'ra li uma tirada... e eu nem sei versar...)

saiu do teatro assim que acabou a estreia. apertou o casaco; estava frio. Emocionara-se. "cedi, infelizmente". Estas palavras não-lhe saiam da cabeça (onde estava o parvo do marido que não aparecia? era sempre a mesma coisa...) mas ele afirmara que fora por amor. (estaria estacionado mais adiante?) E ela acusara-o. Não teria sido dura demais? (que coisa, estava gelada e o marido nada). Mas ele tinha sido um fraco, era um facto(teria que ir de taxi?).

a mulher acaba por apanhar um taxi ao fim de esperar meia hora e chega acasa e Não encontra o homem só...

APC disse...

As discussões conjugais, que coisa estranha são... Algo à parte do resto do mundo, numa outra dimensão, obtusa, doentia, cheia de surdos rancores e gritos de culpas. Pedaços disformes de gente dorida; que cortam, que mancham, que ficam, que matam. Bah!
Mas como prende, rapaz!... Muito sinceramente, arrebata desde o zero; e isso é muito bom!
O texto está com uma categoria dos diabos! As sequências, o ritmo, a expressão e o tom... Delicioso!
Acho também um mimo essas brilhantes continuidades a que a fiel claque procede, liderada ali por outro mestre dos contos. Eu nem me atrevo a encostar a ponta do meu dedo em tais escritos; sentir-me-ia como um chavalito que sem querer deixa a sua dedada de chocolate num copo de cristal.
Fica até difícil dizer que foste arrolado nos que não tive como não mencionar... Mas o facto é que foste!
Ainda assim, fui muito previdente em escolher um grupo que se conhece sobejamente, que é para se poderem juntar todos a dizer mal de mim: - "Mas ela pensa que nós, escritores a sério, não temos mais nada que fazer é?" ;-)
Mas, quem sabe, entre esta novela e um conto, entre uma canção e um ponto, entre a razão e o desconto...
See ya soon!
Um abraço! :-)

APC disse...

("imbróglio" ou "embrolho")

Alberto Oliveira disse...

To apc:

... embróglio de embrulho: Papel de Embrulho.


... se isto são horas de andar práqui a prestar esclarecimentos...

(ahahahahah)

Rui disse...

Mas vocês moram ao lado de algum galinheiro, ou deitam-se com o regresso do sol?

Sofia disse...

E a peça continua...fascinante!

bjs

Alberto Oliveira disse...

... na parte que me toca, sta noite não preguei olho. Tive um sonho terrível: eram cerca das vinte e três horas de quarta-feira e em Milão festejava-se a vitória do...




... Porto no dia anterior. Vá-se lá perceber estes italianos. Ou seriam portugueses a labutar na terra do calcio?!

Isabel disse...

Maravilhoso.
Parece que entrei no meio da vida desse casal, que no fundo todos nós casados e/ou divorciados já vivemos dialogos semelhantes.
Tanto sabemos de cominicação na teoria mas a prática é bem diferente. Falhamos e voltamos a falhar mesmo depois de analisados os erros, ficamo-nos pela intenção de para a próxima evitar errar de novo.
A vida a dois é dificil e amar não chega por mais que se ame... é preciso mais muito mais e esse muito mais é todos os dias e não dá descanso... entre duas pessoas que se amam não se pode descansar... o amor labuta-se todos os dias...
Senão acaba e ai apenas sobra tempo para os arrependimentos e para de repente à luz da saudade ver o que nunca se tinha visto antes.

Adorei o teu texto.
Escreves, com entrega total... eu adoro isso... fascina-me ver o autor do texto espalhado pela sua própria escrita... vejo-te a ti.

( neste momento em que te escrevo acabei de receber um comentário teu, curioso estar-mos a ler-nos ao mesmo tempo)

Até breve.

Isabel

Isabel Magalhães disse...

Tenho andado ausente...


vim expressamente deixar um beijinho. :)

I.

Klatuu o embuçado disse...

Excelente prosa!
Voltarei para ler com mais disponibilidade.

sotavento disse...

O que eu acho extraordinário é que se consiga tanto diálogo!... :)

Obrigada pela visita.

Paula D´aviz disse...

Este post diz tudo, as discussões conjugais são mesmo assim... do nada se parte para tudo.

Parabéns! O teclado do computador para ti é como as teclas de um piano para um músico... os dedos flutuam ao sabor da alma!

Gostei muito e vou ancorar por aqui mais vezes.
Algures deste país de poetas á beira-mar plantado!
Jinho

919 disse...

Rui, tu consegues tão bem criar "suspense"!... Aguardo o desenrolar da históia e continuo a pensar que vem aí, não um final feliz, mas um final divertido!...

Farinho disse...

Cá fico ansiosamente á espera do terceiro andamento. O 1º e 2º estão optimos.

Beijocas

Anónimo disse...

Para quando, a estreia?

Gina disse...

Bom dia amiguito.

Ainda não li os teus andamentos...mas vou ler.
Só passei para te dar um beijinho de saudaditas

Sea disse...

:)
um beijo Rui

BlueShell disse...

Precisei de um abraço…e tive-o nas tuas palavras ternas.
Obrigada.BShell

inBluesY disse...

andava aqui a volta, a modos que pedir demissão de meus nrs, e pensei ora ora, café e leitura em dia :)

que ideia a minha, fantastica! serio serio, muito muito bom. excelentes promenores.

1bj*

Fortunata Godinho disse...

Mas isto pega-se???
Ando eu no meio das artes Cénicas e tu adar-me mais trela.
MUITO BOM!
Estou fascinada, com isto. Aind ao proponho ao encenador para próxima actuação ;)
E logo vou ao Teatro, ver "O Homem sem cara".

Anónimo disse...

Beijo

Anónimo disse...

Gosto muito... mas vou confessar que isso de ler aos bocados só aumenta mais a vontad... :*

segurademim disse...

... é tal e qual como ela diz! mas esquecem-se! depois as consequências são drásticas... ficam infelizes, pois ficam!!! adoecem...

acabou, não há nada a fazer...

espera! há sim! uma viagem! sempre pode ir passear no "barco do amor"

boa Rui, dá-lhe com força (...)achaste que o casamento era a maneira de me ter, de obteres o merecido descanço ????? (...)

beijo :)

Anónimo disse...

Só para dizer que tenho estado a ler... de olhos abertos, mas tenho lido tudo.

Estou a gostar desta historia.

Alberto Oliveira disse...

... dá gosto trabalhar nesta companhia. Entre cada acto um actor pode fazer umas férias valentes! Completamente diferente dos "Morangos" onde já me "mataram" uma vez e regressei no dia seguinte dando "voz" a um cão...

Alcides Rebelo, artista residente.

Anónimo disse...

Talvez por ser espelho de tantas realidades, esta tua peça prende-nos definitivamente (pois, li os dois posts). Revelas um conhecimento muito bom da psicologia feminina. :)**

Clara Hall disse...

Estuaram ali. Na vista ensombrada do contexto. Mudos e sisudos. Um começou a desenhar no chão com o bico do sapato. A palavra era não. O outro começou a relembrar velhos conflitos, gritos convictos, outros ditos e constrangimentos. Ambos apontaram confluências, foram buscar interferências daqui e dali, disto e daquilo. Amplificaram o eco e enumeraram diferenças, chapinharam nos (des)entendimentos e nas impossibilidades. Chamaram todas as mentiras e algumas verdades que não eram para ali chamadas.
Por fim, recapitularam semelhanças e outras danças. Invocaram a magia, a capacidade de renovação da vontade e reviveram os momentos de fama íntima. Recitaram beijos, tremeram desejos. Andaram dali, rumo à regeneração e à continuidade. Das afinidades, das fragilidades e do esplendor da ilusão.


...e claro, estou atenta e a gostar dos teus andamentos. Bom trabalho!

APC disse...

E pela minha parte (sim, porque eu estava noutra parte que não a do Legível, há que deixar claro, para não haver embrulhos) é assim: quem dorme de noite vive apenas metade da vida. Entendeu?
:-P

APC disse...

Dove hai imparato a parlare italiano, Leg? [imbroglio!!!]
;)

APC disse...

E ainda tou para descobrir o que há de Turco nesta Alla. Ah, mas eu chego lá!!!

Llyrnion disse...

"(aquelas palavras estavam a custar-lhe mais do que poderia supor; dava-se agora conta de que as não tinha dito no dia em que tudo acabou)"

O dia em q td acabou?

Ou o dia em q nos apercebemos q td já tinha acabado?

Um abraço.

Lara disse...

a realidade!

não há um terceiro andamento????

beijo grande!

Anónimo disse...

A Loucura resolveu convidar os amigos para tomar um cafe em sua casa. Todos os convidados foram.
Apos o cafe, a Loucura propos:
- Vamos brincar ao esconde-esconde?
- Esconde-esconde? O que e isso? - Perguntou a Curiosidade.
- Esconde-esconde e uma brincadeira. Eu conto ate cem e voces escondem-se.
Ao terminar de contar, eu vou procurar, e o primeiro a ser encontrado sera o proximo a contar.
Todos aceitaram, menos o Medo e a Preguica.
1,2,3,... - a Loucura comecou a contar.
A Pressa escondeu-se primeiro, num lugar qualquer.
A Timidez, timida como sempre, escondeu-se na copa de uma arvore.
A Alegria correu para o meio do jardim.
Ja a Tristeza comeýou a chorar, pois nao encontrava um local apropriado para se esconder.
A Inveja acompanhou o Triunfo e se escondeu perto dele debaixo de uma pedra.
A Loucura continuava a contar e os seus amigos iam-se escondendo.
O Desespero ficou desesperado ao ver que a Loucura ja estava nos noventa e nove.
- CEM! - gritou a Loucura. - Vou comecar a procurar...
A primeira a aparecer foi a Curiosidade, ja que nao aguentava mais querendo saber quem seria o proximo a contar.
Ao olhar para o lado, a Loucura viu a Duvida em cima de uma cerca sem saber em qual dos lados ficar para melhor se esconder. E assim foram aparecendo a Alegria, a Tristeza, a Timidez...
Quando estavam todos reunidos, a Curiosidade perguntou:
- Onde esta o Amor?
Ninguem o tinha visto.
A Loucura comeýou a procura-lo.
Procurou em cima da montanha, nos rios, debaixo das pedras e nada do Amor aparecer. Procurando por todos os lados, a Loucura viu uma roseira, pegou um pauzinho e comecou a procurar entre os galhos, quando de repente ouviu um grito.
Era o Amor, gritando por ter furado o olho com um espinho.
A Loucura nao sabia o que fazer. Pediu desculpas, implorou pelo perdao do Amor e prometeu segui-lo para sempre.
O Amor aceitou as desculpas.
Hoje, o Amor e cego e a Loucura acompanha-o sempre!

Bom Fim de Semana
Kissesssssssss Pequenita

Ahlka disse...

Mais uma vez, fico 'suspensa' esperando por mais...

Por acaso já te disseram que a tua escrita é agradável? ;))