quinta-feira, outubro 12, 2006

A Luz (parte 3)

Era o último domingo de Setembro e estava muita gente no Largo da Luz. Os feirantes, conscientes de que era o derradeiro dia forte de vendas, apelavam a toda a sua experiência e sabedoria para escoar a mercadoria.

- Oh dona, escolha! Olhe’ma cólidade do material. Isto é tal qual o da loja.
- Aproveitem agora, qu’é tudo a 5 éros!
- Vá lá minha gente, qu’eu na quero levar a mercadoria pra trás…

A Policia Municipal observava com candura a venda de material contrafeito, que a missão deles ali era apenas a de zelar pelos comportamentos.
O velhote olhava para uns balões de várias formas e feitios que, de tantos serem, pareciam a copa de uma árvore multicolorida. Agitavam-se indolentemente, empurrados pela brisa ligeira. Esperavam a criança que não aparecia. Os fios que os prendiam a uma grande botija de hélio eram os ramos e a botija o tronco.
O homem olhava mas nada via. Antes, pensava nos duzentos escudos que custava a fartura. Era essa a medida da sua desadequação ao mundo em que vivia. Tinha pensado em comprar meia dúzia delas e afinal… Há quanto tempo não saía do seu bairro? Há quanto tempo não comprava algo pura e simplesmente para o seu prazer?
Não raras vezes, esse dinheiro dava-lhe para comer durante mais de um dia; comia uma sopa e um bocado de pão com o que calhasse. Não que tivesse forçosamente de ser assim, não vivia em tão grande aperto, apenas aconteceu que à medida que foi envelhecendo, foi sentindo cada vez menos necessidade de comer, o que, juntando à escassa reforma, o tinha habituado a um regime muito frugal. Decididamente, não seria capaz de gastar duzentos escudos numa fartura.
Há quanto tempo não era feliz?

Os balões tinham-se transformado num frondoso Plátano e ele estava agora em plena Avenida da Liberdade, era jovem e sentia-se nervoso. Suavam-lhe as palmas das mãos.
Tinha vestido a sua melhor roupa, comprada de propósito para a ocasião: umas calças de fazenda cinzenta e um casaco também de fazenda mas num tom ligeiramente mais escuro - tinha a comprado a amigo seu que, por sua vez, a tinha herdado de um primo que morrera tísico -, a camisa, branca, tinha-a comprado nova, nos Armazéns Pinheiros, local de prestigio na Rua Augusta, dois dias antes.
Tinha empatado no traje boa parte do pé-de-meia que possuía, mas não fazia essas contas, a razão porque o tinha feito era a melhor: uma rapariga.
A moça trabalhava numa retrosaria, no número 120 da Rua Tomás Ribeiro, a pouco mais de 50 metros da Garagem Militar, onde ele cumpria o serviço militar. Desde a primeira vez que a viu que soube que tinha de a convidar para sair – coisa que alguma confusão lhe fazia, visto não ser capaz de explicar isso a ninguém, nem mesmo a ele próprio; tal coisa nunca antes lhe tinha acontecido.
E agora ali estava, junto ao Parque Mayer, à espera dela. Nervoso. Mais ainda do que quando, finalmente, ganhou coragem para a abordar, e logo com um convite para ir à Revista. Se a menina me fizesse o favor…, tinha-lhe ele pedido desajeitadamente.
Instruído pelo seu camarada Abílio, moço mais expedito no que a raparigas dizia respeito, aguardava-a com um ramo de malmequeres e com um convite para cear: conhecia uma cervejaria onde se comia um bom prego.
Ei-la que chega, mais linda do que nunca aos seus olhos. Diz adorar os malmequeres. Olha-lhe nos olhos, deixando-o sem saber o que fazer ou dizer.

- Então o que vamos ver?
- A Revista chama-se “Saias Curtas”, entra o Tony de Matos.
- Adoro ouvi-lo cantar. Sempre que posso, ligo a Emissora Nacional.
- Achei que sim… - respondeu ele, sentindo-se descontrair.

SLB… SLB… SLB… GLORIOSO SLB… GLORIOSO SLB…

Berrada a muitas vozes, aquela frase fê-lo estremecer. Estava de volta.
Percebeu que tinha caminhado até à Estrada da Luz, junto à Igreja. À sua frente, um muro de pessoas impedia a passagem. Toda aquela gente parecia aguardar algo ou alguém.
O grupo de rapazes aproximava-se, continuando numa gritaria infernal. Vestiam todos de igual: uma camisola vermelha, cachecol e boné. Um deles desfraldava uma grande bandeira. Riam muito, divertidos consigo próprios.

- Oh minha senhora, qu’é isto aqui? – perguntou um deles, apontando.
- Ora, é a Igreja da Luz.
- Igreja?? Pffffffffff… venha antes ca malta à Catedral que daqui a pouco há jogo. – o grupo soltou uma gargalhada.
- Esta gente… - disse a mulher, afastando-se.
- Como é qué malta? – incitou um outro. – Quem nós somos, todos querem saber…

Todos gritavam agora, enquanto furavam o corredor humano que ladeava a Estrada da Luz.


QUEM NÓS SOMOS
TODOS QUEREM SABER
QUEM NÓS SOMOS
NO NAME… NO NAME


SL BENFICA VAIS VENCER
ESTAMOS CONTIGO ATÉ MORRER
SOMOS RAPAZES SEM NOME
NOSSA VOZ É O TEU PODER

Todos estavam distraídos com o grupo. Uns riam, outros desaprovavam abanado a cabeça. O velhote parecia ser o único que olhava na direcção oposta. Queria dizer algo mas não era capaz. Seria ele o único a ver? Estaria a ver bem?
Ao fundo, por cima da multidão e iluminada pela luz de início de Outono, a imagem de uma santa apareceu.

27 comentários:

Mipo disse...

e eis que o enredo se complica...

Alberto Oliveira disse...

Ao chegar a esta parte do conto, Gaspar não evitou um sorriso. As coisas estavam a começar a compor-se; com a lesão do Rui Costa pediram a ajuda divina chamando uma santa. E não é que ela apareceu?! Restava saber a que lugar jogava a senhora. O engenheiro do penta teria de usar de muitas cautelas e não a colocar a trinco... não fosse o diabo tecê-las e o colega Petit num lance menos feliz dar-lhe um biqueiro pensando tratar-se de um adversário...
Mas como isto não fazia muito sentido, voltou atrás e percebeu... à segunda. A santa olhava para o velhote das farturas e não tinha nada a ver com o Veiga...

Anónimo disse...

Adorei a parte do traje!

Vanda disse...

Ha coisas que só uns vêm :)

Imagens e luzes :)

Beijo, Rui!

Ahlka disse...

Ainda está a pensar nas farturas?? :))
A partir de uma certa idade, muitos são os que vivem num mundo só seu, onde misturam passado, presente e sonho...

Sofia disse...

Hummm isto promete!

Agora benfica????? Pfffff... e tu dás-lhe com isso. Muda-te, os panteras esperam-te! heheheheh

bjs

Sea disse...

:D:D:D ou não fosse eu benfiquista :D:D
beijo

Isa disse...

Viva o benfica!!!

Polly Jean disse...

Continuo a gostar destes contos.

Sentires Cruzados disse...

Sendo eu uma benfiquista ferrenha digo-te:
Por vezes são precisas várias Santas.
A principal é a Santa Paciência!
Voltada das férias, é bom ler-te e reler-te. :)
Um beijo*

vida de vidro disse...

E a santa fez o milagre do Benfica ganhar? Ó pá, diz-me lá que santa é essa para eu ir pôr umas velinhas!!
A sério, é um prazer continuar a ler-te. **

folhasdemim disse...

Preciso voltar cá com mais tempo para ler todas as estórias.
Beijos,
Betty

Anónimo disse...

Eras capaz de fazer um bom livro, tens uma imaginação incrivel, consegues envolver o leitor...parabens :o)


Nada mais contraditório do que "ser mulher"...
Mulher que pensa com o coração,
age pela emoção e vence pelo amor.

Que vive milhões de emoções num só dia
e transmite cada uma delas, num único olhar.

Que cobra de si a perfeição
e vive arrumando desculpas
para os erros, daqueles a quem ama.

Que hospeda no ventre outras almas,
dá a luz e depois fica cega,
diante da beleza dos filhos que gerou.

Que dá as asas, ensina a voar
mas não quer ver partir os pássaros,
mesmo sabendo que eles
não lhe pertencem.

Que se enfeita toda e perfuma o leito,
ainda que seu amor nem perceba mais tais detalhes.
Que como uma feiticeira transforma em luz e sorriso
as dores que sente na alma,
só pra ninguém notar.

E ainda tem que ser forte,
pra dar os ombros para quem neles precise chorar.

Feliz do homem que por um dia souber
entender A ALMA DA MULHER!

kissesss by pequenita
Bom Fim de Semana

Teresa Durães disse...

ora... com este fim de suspense... nem sei que te diga!!!!!

(não se faz!)

trata de escrever o resto s.f.f que quero ler!!!!!

(excelente como sempre!)

919 disse...

bem, não vais dizer que o senhor estava com a síndrome de lúcia!... andei a ler os teus textos do início do blog, a ver as tuas fotos... o que tu tinhas para aqui, que eu andava a perder!...

Isa e Luis disse...

Olá,

quero mais...

Bom fim de semana


beijitos

Lara disse...

Adorei este teu conto!!!!!

Tens muito ritmo no que escreves :)

beijo

segurademim disse...

... tiveram sorte!!!! lá ganharam, bem podem pagar umas farturitas ao velhote

;)

Alberto Oliveira disse...

... pois, pois. Foi uma fartura. Vamos lá ver é se não gastam tudo de uma vez só... e depois lhes faz falta para outros "entreténs de boca"...

Llyrnion disse...

"Há quanto tempo não era feliz?"

É bom que o ancião se questione sobre isto... mas, qd o vires, diz-lhe q n é necessário gastar um eureko numa fartura pa ser feliz.

Frugalidade n implica, nem de perto nem de longe, infelicidade. Tenho a certeza q o nosso amigo de veneranda idade sabe disso, mas n custa nd recordar-lhe...

Espero q ele n leve a mal.

Um abraço.

Margarida Atheling disse...

Bom texto para recomendar ao meu mano! :)

Beijnhos!

mixtu disse...

bom... isto está a ficar complicado e cuidado com os name que te dão cabo do enredo ou pior do velhote...

excelente, vê-se na tua escrita que corre sangue monárquico

Salvador disse...

E depois, e depois???

está optimo

1 abraço

Martini_Lady disse...

Ainda não li estes 3 últimos posts mas quis deixar um alô! Volto com mais tempo para pôr a leitura em dia ;)

Bj

Anónimo disse...

E mais?
Sabes que aguças a minha curiosidade.... Brrrrr

beijos

Alberto Oliveira disse...

... "era o último domingo de Setembro... "?!

Meu caro amigo, assim também eu vivia mais tempo!!!

Risos a caminho do quarto domingo de Outubro...

Sara MM disse...

essa passagem dos balões ao plátano está fabulosa!!!!!!!!


qt a ser feliz na velhice... sabes o que vou fazer?!?!?! vou comprar todos os balões que os meus pais não me deram!!! :oD


(se entretanto nao enjoar por dar muitos muitos à Panquequinha! LOL)


BJss