terça-feira, março 21, 2006

O Olhar de Arminda (V)

Mais do que os constantes solavancos, era uma indescritível mistura de cheiros que estava a deixar Arminda enjoada. A cabine da camioneta tresandava a suor e a gasóleo mal queimado. Abrir a janela tinha-se revelado uma tarefa impossível, o vidro há muito que não baixava.
Se a principio ainda tentou responder às constantes observações e perguntas parvas de Laureano, ao fim de uma hora de viagem passou apenas a emitir uns sons guturais sempre que ele lhe dirigia a palavra. Tinha medo que, se abrisse a boca, vomitaria imediatamente.

- Estamos quase a chegar. – A frase saiu a Laureano como se estivesse a pensar alto, distraído.
- Hum?
- Uh… vamos fazer uma paragem… o tipo de quem te falei vai estar à nossa espera ali adiante.

Arminda não estava à espera disso. Era uma alteração aos planos. Só era suposto encontrar-se com essa pessoa no Porto.
Fixou o olhar na estrada à sua frente e tentou recordar a conversa, três meses antes, que a fazia estar ali.
Laureano tinha-lhe levado chocolates dessa vez. Ela estranhara a oferta, mas depois percebeu a razão. Era uma ocasião especial.

* * *

- Tu já fizeste 18 anos, já és maior… não achas que está na altura de sair deste buraco? Não gostavas de ir viver para a cidade? Não foste feita para ficar aqui, esquecida… - Estavam, mais uma vez, atrás da igreja, a tentar passar despercebidos.
- Que diz vossemecê?
- Eu conheço umas pessoas… sabes, um senhor, rico… com negócios lá fora. Ele ajuda pessoas a emigrar… er… quer dizer, se fosse isso que quisesses. De certeza que ele podia ajudar uma rapariga bonita como tu a arranjar um trabalho bom. Com esse corpo…
- A minha mãe não ia deixar.
- Não ia, não ia… eu sei… mas se tu lhe dissesses que ias ter com alguém de confiança…
- Como se vossemecê fosse de confiança. – Interrompeu Arminda.
- Oh, comigo não… tinhas de inventar uma história… e eu sei que se quiseres, és capaz disso. Alguém que te ajudaria lá…
- Sou muito nova.
- Isso é bom… olha, podias até aparecer nas revistas. Este senhor conhece muitas pessoas das revistas, podia levar-te às festas…

Arminda esforçava-se por parecer desinteressada, tamborilando os dedos na caixa dos bombons, mas o pensamento estava longe, naquilo que via nas revistas e o olhar traia-a. Isso até Laureano conseguia perceber.

- No final do mês que vem, vou ter que vir sozinho a Bragança, ias lá ter comigo. Acredita em mim cachopa, é um negócio de confiança.

* * *

- Cabrona, pá! – O grito de Laureano trouxe Arminda de volta. As palavras negócio e confiança, matraqueavam-lhe o pensamento.
Durante muito tempo não tinha dado esperanças a Laureano, recusara sempre o seu plano. Até que, há duas semanas, na última visita dele antes de ir sozinho a Bragança, lhe tinha dito que aceitava, iria para o Porto – isto apesar de a decisão a ter tomado logo no primeiro dia.
Antes, nunca pensara naquela aventura como um negócio - que Laureano não era de confiança, isso sabia.
Pela primeira vez, questionou a sua decisão.

– Viste aquela lebre a atravessar-se na estrada? Quase que levávamos daqui o almoço! – Exclamou Laureano passando a língua pelos lábios.

Depois de mais uma chiadeira ensurdecedora, a Bedford deteve-se à beira da estrada. Arminda saltou logo para o chão, enchendo os pulmões de ar fresco. Estava pálida. À sua frente, uma placa indicava o nome de uma localidade: Faiões.

- Onde estamos? – Perguntou ela.
- Perto de Chaves. O senhor de quem te falei vem aqui ter. – Laureano parecia nervoso. – Vou mijar. – E desapareceu atrás de uns arbustos.

Voltou pouco depois, limpando as mãos às calças. Começou a andar de um lado para o outro, agitado.
Arminda reparou nos casebres da aldeia, eram feios e tristes. Não ia gostar de ali viver, pensou.
Um carro preto, grande, que vinha em sentido contrário, atravessou a estrada e, levantando uma nuvem de pó, parou à frente da camioneta. Laureano aproximou-se imediatamente, olhando para Arminda com uma expressão que queria dizer não saias daí.
A porta de trás do carro abriu-se e um homem alto, de óculos escuros e fato, saiu. Tinha um ar distinto. O cabelo grisalho, penteado para trás e a maneira como se movia, poupando todos os movimentos supérfluos, conferia-lhe uma pose igual à dos homens que Arminda via nas revistas.
Laureano estendeu-lhe a mão mas o gesto foi ignorado.

- É aquela a rapariga de que lhe falei.
- Tem bom ar. – Respondeu o homem depois de a mirar. - É saudável?
- É moça do campo, bem alimentada, não vê o tamanho dela, é quase da sua altura… aquelas pernas… - estremecia sempre que pensava nas pernas dela.
- Sim, parece que desta vez não fizeste borrada. De certeza que ela ainda é…
- Oh sim, sim, como lhe prometi, ela nunca saiu da aldeia… você vai poder confirmar por si…
- Toma lá. – Interrompeu-o o homem. Tirou um rolo de notas do bolso e entregou vinte contos a Laureano. – Como combinado. – Os olhos do vendedor brilharam. – E agora põe-te a mexer.

A camioneta partiu e, depois da nuvem de pó assentar, Arminda viu-se frente-a-frente com aquela figura, enorme, encostada ao carro, com os pés cruzados. Sorria-lhe, e o sorriso pareceu-lhe magnífico.

- Aproxima-te, não tenhas medo.

No chão, entre os dois, estava a mala de Arminda. Apanhou-a e, hesitante, foi ter com ele. As coisas não estavam a correr como previsto mas, e isso percebeu facilmente, naquele momento não havia nada a fazer, estava entregue aquele homem.

- És muito bonita. Esses olhos, o rosto… lembras-me alguém… mas anda, entra no carro, vou levar-te para um sítio onde podes descansar, depois conto-te tudo sobre a tua nova vida. Tens fome, queres alguma coisa?

Arminda apenas fez um gesto de negação com a cabeça. O homem segurava na porta e ela entrou para o banco de trás. Ele foi sentar-se à frente, ao lado de uma cabeça enorme, cheia de caracóis pretos.

- Este é o Albertino, o meu motorista.

Arminda não falou, Albertino também não. Sem sequer se virar, ligou a ignição e seguiram viagem.
Num cruzamento próximo, tomaram a direcção de Espanha.

21 comentários:

Anónimo disse...

Ai que esta história não me cheira nada bem...!!! By the way...faz me lembrar um livro do paulo coelho, uma história muito triste. Ai que não aguento o suspense...como irá continuar??!!! ;) beijos

Anónimo disse...

... engraçado que cada um destes episódios faz-me lembrar os "Onze Minutos" do Paulo Coelho, tenho pena de todas as "Armindas" que correm atrás de sonhos que se desfazem no ar.
Rui beijinhos grandes da Jaqui ;-)

Rui disse...

Encaro as referências ao Paulo como um elogio. :)
Nunca o li.

Sofia disse...

ohhh rui, tadinha da Arminda!

Anónimo disse...

O roçar dos lábios...
A língua no canto, passeando, explorando...
As palavras suaves, serenas, tão cheias de amor.
São momentos de êxtase...
Que trago comigo, guardados, sentidos...
O roçar, o apalpar, o gemer...
O sussurrar no ouvido...
a barba a roçar...
o olhar no olhar...
a vontade latente...
explodindo em nos...
querendo muito mais...
explorando os momentos anteriores..
ao acto final....
Curtindo..sentindo...cada pedaço...
cada gesto...um olhar...um molhar de lábios
um passear pelo corpo... uma paradinha aqui...
outra ali, mais longa, demorada e subtil...
Um sorriso nos lábios e no olhar...
O calor do rosto, que subiu pelo corpo,
e está pronto a explodir...
O latejar vagaroso dos corpos se amando..
sem mais esperar...

Dani disse...

Tu é mau!

Isa disse...

ai bailha-me deuzzz coitadita da piquena... bjs

Martini_Lady disse...

Hummmm... tenho um palpite que esse homem distinto é o pai dela ou familiar.E se lhe faz lembrar alguém... :-)
Bem, venha o resto ;-)
Bjnhs

Anónimo disse...

Tenho lido sem comentar esperando o final =P
Beijos com sorrisos

Anónimo disse...

Que disse eu? Tivesse a Francelina uma relação diferente, para aconselhar e acautelar a filha...

Vanda disse...

e pronto!!!!

De Espanha nem bom vento nem bom casamento...
Fico à espera do VI :)

Mãe disse...

Ainda acabada de chegar e sem ter tempo de ler tudo tinha de dizer que já gostei...

Anónimo disse...

Calma ok, só vão comprar caramelos.

Anónimo disse...

... claro que é um elogio ;-)
Bjs. Jaqui
PS.: hehehheheheeh X(chiquinho) sempre optimista.

Salseira disse...

Escreves mesmo muito bem!

Esta história prende-nos e esta é uma das maiores vantagens que pode ter uma história.

Susie disse...

Adoro os teus diálogos. Invejo-lhes a naturalidade.

Um beijo

Susie disse...

Por muito que eu queira....é demasiado para resistir a Lisboa!

Um beijo

Anónimo disse...

Vim deixar um Sorriso :o) Que grande bênção é um sorriso presente no ser humano. Um gesto tão pequenino breve ou mesmo contínuo, que vai se propagando como suave hino! Um sorriso espanta a dor e a todos contagia. Um sorriso é como o amor que nos enche de alegria. Um sorriso faz milagres,deixa a vida bem melhor. Cura até nossos ataques quando estamos na pior. Um sorriso gera a luz,aumentando a esperança. E os efeitos que produz nos faz virar crianças. Por isso sempre agradeço a Deus, de coração este dom que não tem preço e que é pura emoção!
beijinhoooo bommmm

segurademim disse...

é nestes contextos de simplicidade e ingenuidade que se recrutam os 1000 portugueses que desaparecem por ano, sem deixar rasto...

ai Rui, talvez lhe valha o olhar frio

;)

Alberto Oliveira disse...

... e a velocidade a que o Albertino ia, quase não me permitia fazer o comentário neste capítulo! Pede lá ao sujeito para cumprir o código no que toca à máxima...

Anónimo disse...

Até este post pensei q estava a ler algo do tipo 'Torga revisitado'...

Superb!

LD