quarta-feira, dezembro 28, 2005

Final de Ano

Fique desde já o(a) leitor(a) ciente que este post está crivado de apartes.

Esta manhã alguém me disse: “mais um ano, hein”? referindo-se ao facto de mais um ano estar a terminar.
Sorri e, encolhendo os ombros, disse que sim. Não fui capaz de dizer mais nada mas fiquei a pensar para comigo que, fosse ele pessimista como eu, teria dito de outra forma: “menos um ano, hein”?
É como a história da garrafa estar meio cheia ou meio vazia. Se é verdade que mais um ano passou, também o é que menos um ano falta para ser desfrutado.

Mas descanse o(a) amável leitor(a) que este post não é para o(a) deixar melancólico ou triste. Para stress e sentimento de angústia, já chegou o Natal – sim, que há quem ache o Natal stressante e angustiante.
Nada disso, este post serve para manifestar alguma incompreensão para com a celebração da passagem de ano – descansem que não é para fazer nenhum balanço do meu ano… se bem que lá para o final, desconfio que não resista a um ligeiro abano.

Se pensarmos bem, esta ocasião que se aproxima – a passagem de ano -, é das poucas celebrações verdadeiramente universais, que todo o planeta celebra. Cada qual à sua hora, é certo, mas todos a festejamos (bem sei que outras religiões têm o seu calendário próprio e que o dia de passagem de ano não coincide mas, aproveitando o balanço da maioria e o facto de não ser uma celebração religiosa, todos acabam por festejar esta passagem de ano, ainda que de uma maneira mais comedida).
Ora, sendo uma celebração universal, é a única (?) em que não se celebra nada de concreto: não nasceu ninguém, não morreu ninguém, não houve nenhum acontecimento naquele dia em anos passados, nada! Celebra-se uma convenção que algumas pessoas estabeleceram para melhor orientarmos as nossas vidas.
Alguém, um dia, decidiu estabelecer um calendário que, por força das circunstâncias, determinou um momento aproximado em que mais uma órbita do planeta é completada à volta do sol – e, quando em 1582 se percebeu que as contas estavam mal feitas e o ano não tinha 365 dias + 6 horas, não custou nada obliterar 10 dias (salvo erro) aquele ano… afinal, tratava-se apenas de uma convenção.
Mais, as zero horas de dia 31 de Dezembro nem correspondem ao mesmo local da órbita, ou seja, o planeta não está exactamente no mesmo local do ano anterior – é que o ano não são os 365 dias exactos.
Já agora, só mais uma coisinha: 2005 vai ter mais um segundo, o último minuto do ano vai ter 61 segundos, não se deixem enganar pelas contagens decrescentes que por aí andam, façam saltar a rolha do espumante à hora certa (podem ficar a saber porquê, aqui).

Isto tudo para propor uma troca, a celebração da passagem de ano às 0h00 do dia 31 de Dezembro de cada ano, por duas: a celebração dos solstícios e dos equinócios.
Sempre era a celebração de algo concreto: do dia mais longo e mais curto do ano. Ou seja, trocava uma festa por duas. Ficávamos a ganhar, ora pensem lá bem: mais umas pontes e tal… em Junho, então, ia ser um festival de feriados… (e também sei que há muitas pessoas a celebrar estas datas, mas não se pode comparar os seguidores de crenças e cultos pagãos com a generalidade da população mundial).
Acho que havia aqui grandes benefícios.

Agora o tão temido balanço, ou abano, que foi como lhe chamei: quanto à minha vida pessoal vou poupá-los a isso, descansem; quanto aqui ao Blog, só quero dizer que tem sido uma descoberta… de mim mesmo e de muitas pessoas a escrever muito bem. Queria ainda agradecer a todos as palavras amáveis.

Que 2006 seja o melhor ano das nossas vidas.

quinta-feira, dezembro 22, 2005

Taxi - O Regresso a Casa (conclusão)

Quando parei à porta do número 29 da Rua dos Condes, o taxímetro marcava 5,70€. Mordi o lábio inferior e saí para ir tocar à campainha.
Do outro lado da rua, à porta do “Mini-Mercado Barrocal”, estava uma senhora já de idade. Abanava a cabeça e tinha um dos olhares mais tristes que me lembro de ver.
Uma sensação de desconforto invadiu-me. Tinha que sair dali e depressa. Toquei novamente.
Nada.
Como a rua só tem um sentido e, com o estacionamento, uma faixa de rodagem, tinha já vários carros a apitar. Estacionei em frente a uma garagem que por sorte existia perto.
À porta do Mini-Mercado estavam já cinco idosas que falavam baixo entre elas.
- Então você não tem ninguém em casa, Sr. Albino? – perguntei.
O homem tentava disfarçar as lágrimas que começavam a cair pela face.
- Tenho sim, não devem ter ouvido.
Toquei de novo, mas sem sorte. Não estava ninguém em casa. E agora? Deixava ali o homem, ao frio? Ia entregá-lo às velhotas à porta do “Barrocal”? Chamava a policia? Toquei de novo.

- As senhoras sabem se está alguém no segundo esquerdo?
As velhotas pareceram surpreendidas com a minha pergunta e agitaram-se. Nenhuma respondeu. Atravessei a estrada e fui ter com elas.
- As senhoras desculpem lá, mas expliquem-me lá o que se passa.
Uma delas acabou por falar. Percebeu-se que teve que ganhar coragem: - Está sim. A filha do Albino. Mas é uma velhaca, quer se ver livre dele, não lhe vai abrir a porta.
- Espere lá! Você está a dizer-me que a filha está em casa e não quer abrir a porta ao pai?
- Foi o que ouviu. Já não é a primeira vez que o faz. Quer é vê-lo morto para lhe ficar com a casa e com o pouco dinheiro que deve ter – retorquiu uma outra velhota.
- Mas as senhoras têm a certeza que ela está em casa?
- Está, eu vi-a a espreitar à janela quando você tocou. Percebeu que era o pai e agora não lhe abre a porta. Aquela cobra – afirmou a senhora do olhar triste.
Agora falavam todas ao mesmo tempo. Uma delas empurrava-me com o indicador enfiado no meu peito. A que devia ser a dona do Mini-Mercado foi ter com o velhote ao táxi.
- … oh dona Beatriz e daquela vez em que a velhaca lhe bateu?
- aquela malvada, que não tem outro nome…
- tem, tem… vaca, é o que ela é. Fornica com uns e com outros, mete-os a todos em casa e só quer ver o pobre do pai morto.
- e ele que lhe deu tudo.
- Deixem-me falar… calma. Isto não pode ficar assim. Eu vou subir aquele segundo andar e, nem que tenha que deitar a porta abaixo, ela vai ter que receber o pai!
- Isso, faça isso. E aproveite e dê uns tabefes naquela cabra.
- Eu vou, mas as senhoras vão comigo também. Vamos todos e vamos armar uma tal cagaçal que ela vai ter que abrir a porta.
O estado de excitação das velhotas acalmou, subitamente fez-se silêncio. Entreolharam-se. Uma réstea de adrenalina que conservavam impulsionou-as, disseram que sim.
- Sr. Albino, volto já. Não se preocupe que na rua não fica.

A vizinha do rés-do-chão abriu a porta da rua e o grupo de justiceiras geriátricas avançou, comigo à frente. Quando cheguei ao segundo andar ia para fazer um último apelo de motivação ao grupo, quando reparei que estava sozinho. Devagar, devagarinho, agarradas ao corrimão em fila indiana, lá vinham elas subindo as escadas, ofegantes.
Dei por mim sem saber se havia de chorar ou de rir.
- Recuperem lá o fôlego que vamos ter que fazer barulho.
Fechei a mão e bati na porta com quanta força tinha.
- Abra a porta. Está aqui o seu pai – gritei eu a plenos pulmões.
Nada. Bati de novo e, desta vez, dei também uns pontapés na porta para mostrar que não estava a brincar.
- Sabemos que está aí, se você não abrir a porta vou chamar a policia, não duvide.
Uns segundos depois ouviu-se um barulho de chaves no interior de casa e um ferrolho a ser corrido. A porta rangeu.
- Eu vou lá a baixo chamar o Sr. Albino – disse umas das mulheres. Foram todas.
Uma figura muito magra e de cara chupada apareceu numa pequena fresta que se entreabriu. Tinha os olhos raiados de sangue e o cabelo em desalinho. Não disse nada.
- Eu trouxe o seu pai do Hospital e você vai deixá-lo entrar, ouviu?
- Estava a dormir, não ouvi – respondeu numa voz rouca de tabaco.
- Não estou minimamente interessado em falar consigo. A sua atitude é inqualificável. Digo-lhe só isto: o seu pai vai entrar e você vai tratá-lo bem; eu que saiba de alguma coisa, percebeu?

Ao passar por mim no patamar mal iluminado daquele segundo andar, o Sr. Albino olhou para mim sem dizer palavra. Senti que me queria pedir algo, mas que não teve coragem.
Entrou em casa e a porta fechou-se. Fiquei ali, na escuridão alguns minutos. Não se ouviu nenhum som.
Quando, por fim, me fui embora, as velhotas continuavam em conversa à porta do Mini-Mercado, por certo sentiam que pela primeira vez tinham feito algo em relação aquela situação.
Tinham feito pouco, pensei eu. Aliás, também eu tinha feito pouco. Decidi voltar ao Hospital, iria falar com a assistente social, contar-lhe o que se passou, algo teria de ser feito.

- Mas eu sei disso tudo. Já não é a primeira vez que aquela criatura finge que não está em casa para não receber o pai. Eu já lá fui, já falei com ela e fiz um relatório para a Segurança Social – afirmou a M. dos Anjos enquanto bebia um chá na cafetaria do Hospital de S. José.
- Então não há nada que se possa fazer?
- Fazer o quê? Ele nunca apareceu aqui com sinais de maus-tratos, nunca se queixou disso. Que ele não está bem lá, é um facto, ela não tem com o pai os cuidados que devia ter com uma pessoa daquela idade, com problemas cardíacos. Olhe, eu faço o que posso e até mais do que devo. De quem é que você julga que eram os 5,00€ que eu lhe dei?
- Sabe o que lhe digo? É triste ser-se velho – afirmei, enquanto me levantava. Tirei 5,00€ do bolso e deixei-os na mesa. – Esta fica por minha conta.

A caminho de casa, percebi o que queria dizer aquele olhar do velhote no patamar, antes de entrar em casa: que não era ali que queria estar.

Continuo sem saber se há quem goste de estar nos Hospitais, mas agora sei que, mesmo sem precisar, há quem se sinta melhor num Hospital.

terça-feira, dezembro 20, 2005

Taxi - O Regresso a Casa (parte 1)

Não gosto de hospitais, nunca gostei. Nem sei se alguém gosta. Tive a minha conta de visitas forçadas e estadias e, por isso, evito ao máximo lá entrar: as recordações não são as melhores.
Não gosto de lá entrar nem que seja por dois minutos para deixar um cliente, o que, sendo taxista, é impossível evitar. Não há semana que não tenha que ir a um hospital duas ou três vezes.
Ontem à tarde não foi excepção. Eu era o primeiro na paragem de táxis de Entrecampos quando um senhor com ar executivo se aproximou; tive um feeling que aquela ia ser uma boa corrida, mas toca-lhe o telemóvel e ele atrapalhado com a pasta que tinha numa mão e um dossier na outra, parou… foi o suficiente para ser ultrapassado por uma senhora: “Hospital de S. José, se faz favor”. Pouca sorte a minha!
E logo S. José, o Hospital de que tenho piores recordações.
Muitas horas lá passei eu sentado naqueles corredores vazios de calor, vazios de sentimento, de bem estar… cheios de dor, de falta de esperança, de vontade de fuga.
Lado a lado num banco corrido, encostados ao azulejo monocromático e frio ou deitados em macas a olhar para o tempo a escoar-se por entre os buracos no tecto falso, fazíamos companhia silenciosa e sofrida uns aos outros.
Manifestávamos a nossa solidariedade com o parceiro de infortúnio no silêncio a que nos entregávamos, na resignação dos conformados que já não protestavam pelo tempo de espera com as enfermeiras que passavam, apressadas e que nem sequer para nós olhavam. Se olhassem teriam de admitir que ninguém merecia nada daquilo.
Dizem-me que está diferente, mais humano. Que se continua a esperar as mesmas horas infinitas mas com mais humanidade. Talvez. Espero não ter que constatar pessoalmente.

Deixei a senhora nas consultas externas e passei pela Urgência. Uma assistente social fez-me sinal e desapareceu no interior do edifício.
Qualquer taxista minimamente experiente sabe que isto não é bom sinal. Confesso que estive quase a ir-me embora, cheguei a meter a primeira. Não fosse a imagem do passado daqueles corredores, das pessoas à espera da ajuda que não chegava, tinha-me ido embora.
Eu não podia fazer o mesmo, mas sabia que aquele desaparecimento da assistente social não era bom sinal.
Voltou pouco depois empurrando uma cadeira de rodas. Nela, um velhote aparentando uns oitenta anos, curvado sobre si, de pijama e roupão. Saí para ajudar – já estava a ter trabalho extra…
Na cadeira, o velho parecia pouco mais que um monte de ossos dentro da roupa mas, ao levantar-se, percebi que era muito mais que isso. Impressionou-me o seu porte, apesar de continuar curvado e seco.
A idade avançada e a doença tinham-no feito pagar uma factura pesada. Apresentava os olhos saídos das órbitas, a pele pendia-lhe em bocados da face, a barba era rala e estava por fazer há dias, estava muito amarelecido.
Ainda assim, o porte era evidente. Na juventude teria tido perto de um metro e noventa, tinha com certeza sido um homem elegante, garboso. Agora metia pena, que é dos piores sentimentos que podemos ter por alguém.
Julgo que ele percebeu isso. Quando o meu olhar cruzou o dele, vi reprovação e mágoa. Sem que me tivesse dirigido a palavra, pedi-lhe desculpa entre dentes.

- Entre lá Sr. Albino. Não tarda nada está em casa… não diga nada, eu sei, eu sei… mas tem mesmo que ser.
- Deixe-me ajudá-lo a por o cinto – disse eu.
- Vai levar este Sr. à Rua dos Condes, 29, 2º esquerdo, às Janelas Verdes, conhece?
- Conheço muito bem. Foi para essa rua o meu primeiro serviço como taxista.
- Coincidências… está bem sentado, Sr. Albino?
O velhote não disse nada.
- 5,00€ chegam, não chegam? – perguntou-me a assistente social M. dos Anjos, ajeitando a placa com o nome que quase lhe caia da bata.
- Vão ter que chegar, não é verdade? – respondi-lhe.

Ao sentar-me ajeitei o espelho retrovisor de maneira a poder ver melhor aquele saco de ossos embrulhado num roupão. Dizer que ele estava triste não é faltar à verdade, mas também não é dizer a verdade toda, havia na expressão do homem algo que me escapava. Afinal, ele estava a sair do Hospital para ir para casa.
Preparei-me para não abrir a boca o caminho todo.
Na Rua dos Fanqueiros o Sr. Albino falou. Num tom de voz surpreendentemente perceptível, disse-me: - É triste ser-se velho.
- É triste é estar doente – respondi-lhe.
- Ser velho e estar doente…
Reparei que olhava pela janela e não lhe respondi.

Parado atrás de um autocarro turístico, daqueles de dois andares, descapotáveis, reparava nos turistas que, de pé, fotografavam a metálica árvore de Natal que domina por estes dias a Praça do Comércio. A maior árvore de Natal da Europa… quando fazemos, fazemos em grande.
Dois pensamentos me assaltaram: um foi que não sabia se o instrutor de Spinning da Quinta da Marinha tinha conseguido entrar para o Guiness por pedalar oitenta horas seguidas sem sair do mesmo sítio (se é para se fazer, que se faça em grande); o outro pensamento, foi que se o autocarro arrancasse naquele momento, o camone ia desequilibrar-se, cair e, bati três vezes numa madeira imaginária, aterrar-me no colo.
Estava eu a tentar recordar quanto tinha custado o último pára-brisas que me partiram e se o seguro cobriria quebra de vidros por queda de turista, quando o Sr. Albino falou novamente: - Hoje não é o seu dia de sorte.
Continuava a olhar pela janela.
- Porque diz isso?
- Ter-me apanhado, você vai ter chatices…espero eu.
- Como é que é, espera que eu tenha chatices?
- Você não me ligue, eu não sei o que digo, é da medicação, da idade.
Decididamente, devia ter-me ido embora quando tive a oportunidade de o fazer.
Calei-me. Achei que se o tentasse fazer falar ia ser pior.
O velhote sabia que algo ainda estava para acontecer.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

Um Passeio no Jardim

Lembro-me que naquela altura pensava com frequência nos meus pais. Recordava a toda a hora episódios da minha vida com eles, de todos tentando retirar uma lição, um ensinamento.
Tentava também avaliar se tinha sido um bom filho, se eles tinham sido bons pais; onde é que cada um de nós tinha falhado e onde é que a sabedoria deles me tinha auxiliado.
Fazia isto automaticamente, sem dar por isso, não era nenhuma decisão consciente. Até que um dia a razão para o fazer se tornou evidente. De tão óbvia, não sei porque nunca tinha tomado consciência dela: eu ia ser pai pela primeira vez em breve.
Esta iminência da paternidade assustava-me um pouco. Queria ser um bom pai - o melhor pai -, e não fazia a menor ideia de como o podia ser. Por vezes, ficava algo angustiado com a ideia, com a dúvida se seria eu capaz. Estaria preparado para tão grande mudança na minha vida?
Esta preocupação só era superada pelo fascínio que sentia com a ideia de gerar vida, de eu estar na origem desse processo fantástico.
Se as mães o sentem de uma forma especial, única, nós, os pais (alguns, pelo menos), sentimos as coisas de maneira diferente, claro, mas também intensamente. Eu era dos que sentia assim.
A ideia de gerar uma vida fascinava-me, enchia-me de um sentimento maior que eu.

Até que um dia…

Não sei se as pessoas que andam de comboio alguma vez pensam em quem os vai a conduzir. Num autocarro, num táxi, é fácil perceber quem vai os comandos, damos pelos condutores (mesmo nos aviões, sem o vermos, o piloto está mais presente que no comboio, quanto mais não seja porque no inicio da viagem o seu nome é referido e durante o trajecto ele faz uma pequena comunicação aos passageiros), num comboio não, aquilo pára, arranca, abre portas e quase nunca se dá pela pessoa que o vai a conduzir.
Eu sou maquinista da CP e gosto muito do que faço. O anonimato da função permite-me pensar em coisas como a paternidade mesmo enquanto estou a trabalhar.
Sendo uma função de grande responsabilidade, está de tal maneira automatizada, que acaba por ser relativamente calma e livre de stress, afinal, não temos horas de ponta e basta alguma atenção à sinalização que aquilo até as curvas faz sozinho.

Há três anos atrás, estava eu absorvido nos pensamentos de que vos falava, quando, ao sair de uma curva antes da estação de Barcarena, algo me arrancou ao torpor em que me encontrava.
A princípio não consegui apreender o que era, foi o inconsciente que me alertou para algo de errado; o cérebro demorou uns segundos a processar a informação mas, quando tomei consciência dela, não podia ser pior: estava uma pessoa na linha a tentar subir para a plataforma da estação.
Freio em emergência mas, tal como um petroleiro em mar alto, várias dezenas de toneladas de comboio a uma velocidade razoável, não param em poucos metros.
Aflição, muita aflição. De um momento para o outro, vemo-nos numa situação surreal, é como se fossemos transportados para um filme, algo de terrível está prestes para acontecer e nós não pudemos fazer nada. Só que neste caso não estamos sentados na plateia ou no sofá de casa, estamos no meio da acção, somos intervenientes directos. Pânico, muito pânico.
São breves segundos que demoram muitos minutos, muitas horas a passar, ao serem recordados vezes sem conta. É algo que nunca mais me vai abandonar. Terror, muito terror.

Uma rapariga com a sua filha pequena ao colo decidiu atravessar a linha, achou que conseguia subir a plataforma em segurança e assim poupar duzentos metros de caminho e cinco minutos de tempo.
Colocou a filha no apeadeiro e, quando se preparava para tentar subir, ouviu o comboio aproximar-se. Ao vê-lo sair da curva, também o seu cérebro demorou a processar a informação, também ela deve ter pensado que algo de terrível estava para acontecer. E, depois, tomou a decisão errada, fatal: em vez de, num último esforço, ter tentado subir, optou por se encolher e ficar imóvel. Apesar de a velocidade ser já reduzida, o comboio entrou na estação e o degrau da primeira porta apanhou-a, depois outro, e outro…
Aflição, pânico, terror? Seria isso que eu sentia? Com uma tremenda descarga de adrenalina a correr-me no corpo, o ritmo cardíaco descontrolado e o cérebro em desatino, consegui realizar os procedimentos habituais nestas situações, mas em piloto automático: não me lembro de ter contactado o posto de comando da Refer/CP e de ter chamado o Revisor, mas sei que o fiz. Lembro-me de “voltar a mim” quando, ao olhar para o espelho retrovisor, vi a criança, ali, parada, perdida. Parecia olhar para mim. Em que pensaria ela?

Quando fui para esta profissão sabia que era praticamente inevitável passar por esta situação. São raros os maquinistas que não tenham passado por isto e os mais velhos fazem questão de lembrar isso a quem começa – o monitor do meu curso tinha 16 casos no curriculum.
Se noutros países quando algo semelhante ocorre, a empresa não deixa o maquinista conduzir mais nesse dia e coloca ajuda psicológica à disposição, cá, pergunta-se via rádio se o corpo está a obstruir a via; caso não esteja, depois da polícia tomar conta da ocorrência, somos mandados seguir viagem - tenho um colega a quem isto aconteceu num sentido e, ao fazer o trajecto de volta, voltou a acontecer.

Como numa fracção de segundo, sem qualquer aviso, sem um sinal, a nossa vida pode mudar. Absorvido pela ideia de ser responsável por gerar vida, eu acabava de estar envolvido na perda de uma.
Este conflito – há falta de melhor termo -, abalou-me profundamente. Durante muito tempo as coisas deixaram de fazer sentido, pelo menos o sentido que faziam habitualmente. Questionei tudo. As certezas que tinha desapareceram. Tudo era transitório, efémero.
Se pensava na minha filha que ia nascer, logo pensava naquela figura no espelho retrovisor. Porquê? Tinha sido apenas uma decisão errada da sua mãe. Como é que um acto irreflectido, mas simples, banal, podia ter consequências tão dramáticas, sem possibilidade de segunda chance, sem direito a arrependimento?
E no centro de tudo, estava eu.
Conseguiria amar a minha filha? Seria eu digno de uma filha? Haveria o destino de, um dia, procurar vingança?
Com o tempo, as duvidas foram sendo menos, a compreensão do que aconteceu maior. Tenho hoje a consciência exacta do meu papel em tudo o que aconteceu, mas continua a custar. Lembro-me ainda muitas vezes de tudo. Revejo os detalhes da cena com frequência.

No outro dia, parado na mesma estação em sentido contrário, reparei numa mulher que estava parada junto à linha, fora da plataforma. Percebi que aguardava que eu passasse para atravessar pelos carris. O local era exactamente o mesmo do acidente, atravessar ali na altura em que um comboio está a chegar, é tragédia pela certa.
Apitei-lhe. Por gestos perguntei-lhe se sabia o perigo que corria. A resposta foi insultar-me; chamou-me todos os nomes que sabia.
A vontade que tive foi sair e dar-lhe uma carga de porrada. Juro, foi por pouco que não o fiz!
Não têm noção. Não querem saber.

Agora vou terminar, tenho que ir buscar a minha filha à escola, prometi-lhe que íamos passear ao jardim.


Ao amigo Quim, aquele abraço.

domingo, dezembro 11, 2005

É Natal

- Estou?

- Sim, quem fala?

- Sou eu, pá, o Pai Natal.

- Ah, olá Pai Natal. Deixe-me aqui tirar o som ao televisor…

- Estavas a ver o quê?

- Nada de especial, estava a ver a Arlinda a abandonar a Base.

- Também vês essas merdas, pá?

- Naaa, estava a fazer zapping quando vi a Arlinda a bater continência a um gajo de microfone na mão. Fiquei a ver. Mas deixe lá isso, conte-me como vão as coisas por aí.

- Mal, pá. Vão mal.

- Então, que se passa?

- Ora, o que é que se havia de passar, estamos no Natal!

- Pois, imagino que deva estar caótico.

- Caótico é em Agosto quando chego da praia, nesta altura nem há palavras para descrever isto, pá.

- Maldita invenção esta do natal.

- Podes crer, se eu soubesse que ia dar nisto, nunca tinha aceite esta brincadeira.

- Mas você não tem aí muita ajuda?

- Sabes lá o que é ser ajudado por Duendes, Elfos e Gnomos… estes gajos não se gramam uns aos outros, é só chatices, só queixas, só lamentações, pá. Os Elfos não podem ver os Gnomos, estes boicotam o trabalho dos Duendes, e estes só sabem é chatear as Renas. É de dar em doido, pá.

- E você não dá um murro na mesa?

- Eu atirei foi com a mesa ao ar! Ameacei-os com despedimento colectivo. Eles que vão trabalhar para Holywood, que fiquem lá à espera de mais filmes em que os da raça deles entrem. Mas que esperem sentados! Lá porque houve uns filmes em que entraram, devem pensar que todos os anos há mais. Eu bem lhes disse que aqui, pelo menos, era garantido: Natal há todos os anos, já filmes…

- E eles?

- Os sacanas na altura não disseram nada, meteram as orelhongas nos barretes e deram meia volta. No dia seguinte aparecem-me aqui uns quantos, auto-intitulados “comissão de trabalhadores” e ameaçaram que iam criar um sindicato! Tu já viste isto, pá?

- Um sindicato?

- Um sindicato, pá. Já tinham nome e tudo. Esta malta das criaturas dos contos de fadas não bate bem, tu repara nisto: Sindicato dos Técnicos Operadores de Natal E Diversos. Nem dá para acreditar.

- Você tem que ter calma, olhe a sua tensão. Você já não é novo.

- Qual tensão, pá. Esta cambada dá é cabo da cabeça de um santo.

(em fundo, ouve-se uma música: “eu sou e serei, coração, coração sem dono… não me quero prender a ninguém, ainda é cedo para me entregar, quero viver o que a vida tem, um dia mais tarde se verá… quero o peito livre pra voar e a mente solta pra curtir, o meu coração a palpitar, durante muitos anos sempre assim… porque eu sou e serei, coração, coração sem dono…”)

- Que música é essa, pá?

- É a TVI, a Ruth Marlene está a cantar.

- A Ruth… no outro dia via-a a fazer flexões. Deixa cá ver se ela já pediu alguma coisa ao Pai Natal…

- Veja lá.

- Não tenho cá nada em nome de Ruth… ou de Rute Marlene.

- Ainda não teve tempo, anda muito ocupada na guerra.

- Mas olha que os portugueses são quase sempre os primeiros a pedir. Logo em Outubro recebi daí os primeiros pedidos.

- Gente ansiosa, por certo.

- Pareciam, sim. Bom, os quatro primeiros, pelo menos.

- Pediram o quê?

- O primeiro pedido a chegar foi do menino Mário, explicava-me que já não tinha idade para escrever ao Pai Natal, mas que o fazia porque não pedia só para ele, que o que queria era para o bem comum, etc. Enfim, uma ladainha para me pedir um Tacho. Achei muito estranho tanta coisa por causa de um simples Tacho.

- Não é um tacho qualquer, Pai Natal, é um Tacho muito apetecível.

- Percebi isso nos dias seguintes, pá. Então não é que o menino Manuel, logo no dia seguinte, me escreve a pedir desculpa por já não me escrever há muito tempo, mas que tem escrito outras coisas e que depois não tem tempo nem para uma carta. Pedia ainda que, caso eu já tivesse recebido um pedido igual do seu grande ex-amigo Mário, o ignorasse, porque era ele, menino Manuel que tinha direito a o Tacho, que o Mário já tinha tido o dele.

- São piores que as crianças…

- Depois foi o menino Chico a pedir-me o Tacho. Que me achava um bocado capitalista e ao serviço do grande capital e por isso não me tem escrito, mas que, este ano, excepcionalmente, contava comigo, com a minha reflexão ponderada de homem vivido para me passar para o lado dos oprimidos, dos que têm pouco, das vitimas dos barões que controlam esse tal capital. Que eu podia começar por lhe dar acesso ao Tacho.

- Não me diga que o menino Jerónimo também lhe escreveu.

- Escreveu, pá! Que era a primeira vez que o fazia, que antes os seus camaradas lhe confiscavam o selo e a carta para o Pai Natal e que por isso nunca tinha conseguido. Mas que sempre me achou piada, vestido assim de vermelho, a viver no meio da neve; que isso o lembrava da Sibéria, dos trabalhadores que para lá iam trabalhar para o bem dos outros camaradas. Que no fundo eu era um símbolo do operariado. Concluía dizendo que também ele queria ajudar os outros, mas que para isso precisava do tacho. Vou-te contar, pá, já mandei investigar que raio de Tacho é esse que eu também o quero oferecer à Mãe Natal.

- Não recebeu nenhum pedido do menino Aníbal?

- Aníbal? Não me recordo, mas deixa-me consultar a base de dados.

- Veja lá isso, agora estou curioso.

- De facto, há aqui uma carta do menino Aníbal, mas não pede nada ao Pai Natal. São só duas linhas, diz ele que não quer escrever muito para não se prejudicar, que o ano lhe correu bem e que vai acabar melhor, que não tem nada para me pedir, que o Tacho já é dele. Despede-se desejando-me um bom Natal.

- O menino Aníbal é muito sabido. Tem o Bolo Rei na barriga, é o que é.

- Parece que isso anda muito animado por aí neste Natal.

- Nem queira saber. É a corrida ao Tacho, às compras e foi também a abertura da época de transferências religiosas.

- Hã, que é isso, pá?

- É muito parecido com a reabertura do mercado futebolístico agora em Janeiro. É a altura em que se volta a poder negociar o passe dos jogadores entre clubes. Neste caso, tem a ver com a mudança de paróquia por parte de alguns padres. Há sempre polémica com a decisão de algum bispo iluminado que, quando percebe que a população local gosta do padre e até vai à missa, trata logo de o transferir. Cá para mim, os bispos são como os empresários de futebol, devem ganhar à comissão com as transferências que fazem.

- O que passará pela ideia dessa gente…

- É mistério insondável, mas este ano a transferência do padre Luís António de Ranhados para Sendim, deu mais que falar que a transferência do Figo do Barcelona para o Real Madrid.

- E como acabou isso?

- Ora, no fim-de-semana passado não houve missa nem em Ranhados nem em Sendim. Parece que ficaram todos a perder.

- É sempre o mesmo… pá, agora tenho de ir, a Mãe Natal está a chamar-me. Vai começar o AB… Sexo.

- Grandes malucos que vocês são.

- Curiosidade cientifica, apenas.

- Sim, claro. Pai Natal…

- Diz lá depressa.

- Cuidado com a distribuição de prendas este ano, não vá o trenó ser confundido com uma avião da CIA. E feliz Natal para si também.