segunda-feira, novembro 28, 2005

Interrupção Forçada

Assaltaram-me o carro! Uma das poucas coisas que levaram foram vários textos, entre eles a continuação do que está a meio.
Vou ter que o voltar a escrever, mas já não vai ser o mesmo. Estou desanimado.

sexta-feira, novembro 18, 2005

As Tuas Mãos

Estás agora muito próximo

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Sinto a tua respiração, o teu bafo

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Subitamente, o ar ficou frio

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Não te senti aproximar, coisa que nunca tinha acontecido

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Nos teus olhos reconheço aquele olhar

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Não lhes vejo vida, estão cegos

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Tento falar mas não consigo

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Agarro-me a ti mas não tenho força, não me sentes

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Quem és tu? Não te conheço

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Onde está o homem por quem me apaixonei?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Quando começaram as tuas palavras a ficarem ocas?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Quando começou a minha vida a ficar vazia?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Quando foi que te afastaste de mim?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Tentei falar contigo, não deixaste

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Quando foi que te perdi?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Em que pensas, o que sentes?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

O que fiz eu?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

O que não fiz eu?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Porquê?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Que loucura é essa que eu vejo no teu rosto?

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Rosto que se desvanece

tenho as tuas mãos no meu pescoço

A luz que se turva

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Já só há sombras nas paredes

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Os sons tornam-se eco

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Abro mais os olhos mas vejo menos

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Estás agora longe

tenho as tuas mãos no meu pescoço

Pairo por cima de ti

Já não tenho as tuas mãos no meu pescoço

segunda-feira, novembro 14, 2005

Luka

O meu nome é Luka. Vivia no segundo andar. Por cima de ti. Nunca soube se apenas me vias passar, ou se alguma vez reparaste em mim.

Certamente deves ter ouvido por mais de uma vez o barulho que vinha de minha casa. Aqueles apartamentos não eram famosos pelo isolamento sonoro, pois não?
Aquele som característico de discussão, os gritos impacientes, as palavras não ditas mas vociferadas, a ira, o ódio. Muitas vezes pensava em como seriam esses sons depois de filtrados pelas paredes, em como chegariam aos teus ouvidos; ao teu cérebro, que entendimento farias deles, se é que fazias algum.
Muitas vezes eram sons de luta. Devem ter-te feito pensar, por certo. Não imaginas as vezes que desejei que te fizessem actuar, subir aquelas escadas, arrombar a porta e salvar-me. Ingenuidade minha, eu sei, mas pouco mais tinha que a minha ingenuidade, na altura.

Numa das piores fases da minha vida, há muitos anos, escrevi-te. Era um misto de explicação e desabafo. Também era um lamento. Sempre escrevi muito porque sempre falei pouco. Guardava tudo para mim. O papel era (ainda é) o meu fiel confidente.
Nunca tive coragem de te fazer chegar o texto, claro, mas ajudou-me muito na altura. Era uma coisa simples, apenas os sentimentos de um jovem em relação à sua vida; um pouco também em relação a alguém que não conhecia mas de quem gostava. Tu.

Sim, gostava de ti. À minha maneira. Nunca falámos, nem sei se alguma vez nos cruzámos na escada. Não me lembro sequer de alguma vez o teu olhar ter cruzado o meu, mas eu gostava de ti. Observava-te ao longe e pensava em como eras bonita. (Se tivesse sentimentos dentro de mim para além de pena e tristeza, diria que te amava).
Na minha imaginação, a partir de certa altura, substitui o papel por ti como minha confidente. Passou a ser a ti que eu contava as minhas dúvidas, as minhas incapacidades, os meus medos, as minhas falhas… os problemas que tinha em casa.
A primeira vez que te escrevi, percebo-o agora, foi uma tentativa de explicação daquilo que tu ouvias, e da ideia que isso te poderia fazer ter em relação a mim. Não queria que tivesses má opinião sobre mim, sobre a minha família. É que tinha uma estúpida esperança de que pudéssemos vir a ser amigos, que pudesses passar de confidente imaginada a confidente materializada. Foi a última esperança que tive durante muitos anos.

Foi uma fase muito má da minha vida. Muitos problemas em casa, muitos problemas comigo próprio. Anulei-me, reduzi-me a pouco mais que o estritamente necessário para sobreviver. Fiz tudo isso inconscientemente. Pura e simplesmente convenci-me de que era assim que as coisas tinham que ser.
Esse convencimento da inevitabilidade dos maus-tratos, da falta de amor, do não ser desejado, fizeram com que interiorizasse que nada estava errado comigo ou com a minha vida e comecei a negar a evidência. Desde logo a mim próprio.
Hoje, quase me custa a crer tudo isto. Vê bem que desenvolvi um pensamento unidimensional e convergente em que nada era questionado, tudo era aceite porque sim. Convenci-me mesmo de que o melhor que me podia acontecer era ficar sozinho para o resto da vida, de que nunca ninguém ia querer saber de mim que não fosse para me magoar. Para sofrer, antes estar sozinho. Isolei-me, fechei-me dentro de mim.

Demorei muitos anos a perceber o isolamento em que vivia, o automatismo, a rotina em que estava transformada a minha vida e, acima de tudo, a perceber que não tinha de ser assim, que havia mais vida para ser vivida, que não tinha que me limitar a sobreviver, a chegar ao dia seguinte. A perder o medo de voltar a sofrer, que em grande medida acho que era isso.
Quando percebi que conseguia voltar a lidar com o sofrimento, com a perda, acho que voltei a viver - sim, estou convencido que não se vive sem sofrimento e que temos que aprender a lidar com isso.
É claro que todos esses anos marcam uma pessoa. Eu hoje sou também quem fui nesses anos em que fomos vizinhos. Sendo diferente, tenho esses anos bem presentes, fazem parte de mim.

(Há uma descoberta minha que é muito recente e que me tem dado que pensar: se, apesar de tudo, não foi esse isolamento, esse fechar para o mundo que me salvou, que me permitiu chegar aqui, hoje. Mas isso fica para outra altura).

Entretanto, voltei a escrever muito. Nunca mais tinha era escrito para ti. Lembrei-me hoje de o fazer. Porquê, não sei, ou melhor, talvez por ter percebido que da última vez em que o fiz, terminava dizendo-te para não me perguntares como eu estava; hoje escrevo-te para te dizer que já não tenho medo dessa pergunta, nem da resposta… já não preciso mentir!
Hoje consigo falar do que ficou para trás, do que me aconteceu, de quem eu era. Mas também só se for preciso, só a ti. Interessa-me muito mais o futuro, o que falta viver, não o que foi (sobre)vivido.
Hoje já não quero estar sozinho. Apesar de não ter nenhuma relação de momento, sou relativamente feliz, acima de tudo, tenho esperança, sabes? Foi essa a minha maior conquista: recuperar a esperança. Agora tenho razões para sair da cama todas as manhãs, tenho uma ocupação, tenho vontade de ser feliz.

Espero que esteja tudo bem contigo. Let me ask you: how are you?

PS – Um óbvio agradecimento à Suzanne Vega pela música… por todas as músicas.

quarta-feira, novembro 09, 2005

Das Relações Entre as Pessoas

Querido diário,

Tenho estado ausente, eu sei, mas nesta altura do ano é sempre assim, para mais com a minha relação com o Sérgio no estado em que está.
A última coisa que partilhei contigo foi a angustia que sentia por mais um aniversário que se aproximava. Todos os anos a mesma coisa: esta sensação de finitude que se aproxima. Agora que já fiz os malditos 60 anos, a angustia continua.

Tal como eu temia, o jantar de aniversário foi muito difícil para mim. Cada vez era mais complicado fingir que tudo estava bem. Nessa noite, depois de todos terem ido embora, reuni todas as minhas forças e coloquei a questão ao Sérgio.
Falámos por meias palavras, como tem sido habitual nos últimos anos, mas falámos. Decidimos que, entre nós, para já, vamos deixar de fingir que ainda temos uma relação. Vamos continuar a viver juntos, a partilhar a mesma casa, mas estamos já a ocupar quartos diferentes.
O divórcio está fora de questão. Para os amigos vamos manter uma aparência de normalidade, mas à Beatriz e à Ana já dissemos. O Sérgio ainda tentou convencer-me que não lhes devíamos contar, mas já me custa bastante fazer isto com as outras pessoas, não o conseguiria fazer com as minhas filhas.

Os primeiros dias foram difíceis, afinal, andamos os dois aqui por casa quase sem nos falarmos, como se fossemos estranhos. O Sérgio é como um fantasma que eu vejo mas com o qual não consigo comunicar (nem quero, bem vistas as coisas).
Tenho perguntado muitas vezes a mim mesma se havia necessidade desta tentativa desesperada (?) de manter as aparências, se não era melhor a separação, ponto final.
Chorei muito (ainda choro). Tem sido também por isso que não tenho escrito, não quero encher páginas e páginas só com angústias, dúvidas, tristezas, lágrimas.

Estive hoje com os meus netos e estou mais animada. Acho que vou conseguir fazer isto funcionar. A verdade, por muito que me custe admitir, é que ainda sinto algo por ele. Algo forte, mesmo depois de tudo o que ele me fez, de todas as traições, de todas as mentiras. A diferença é que enquanto nos últimos anos eu preferia enganar-me a mim própria, agora não, consegui encontrar algum amor próprio dentro de mim e não abdico dele. Não vou deixar que me magoe mais!
Pelo menos, não vou deixar que ele perceba que ainda sofro um pouco. Faz-me muita confusão como é que a minha mágoa nunca o afectou, nunca o fez ter uma palavra para comigo, lhe provocou uma alteração de comportamento, por pequena que fosse. Não quero crer que nunca o tenha percebido, como me disse no dia em que falámos. Isso seria bem pior, seria a confirmação das minhas piores suspeitas: que para ele, eu já não existo há muito tempo… há tempo demais.

Neste últimos dias tenho dado por mim a pensar várias vezes no porquê desta coisa das relações entre pessoas ser tão difícil, tão complicada. Se não seria melhor não haver sentimentos desse tipo por um parceiro.
Não seria preferível, querido diário, se tudo se resumisse a sexo, como em quase todo o reino animal? Sexo, só e apenas, sem qualquer tipo de ligação afectiva.
Não me interpretes mal, não estou a defender uma mudança de comportamento, estou apenas a divagar sobre como teria o mundo evoluído se, no inicio do desenvolvimento da espécie humana, não se tivesse gerado esta necessidade de estabelecer ligações que acabaram por originar a Família tal como a conhecemos hoje.
Se fosse como com quase todos os animais, haveria sexo para reprodução e algum por prazer (que não se trata de uma posição puritana). Amor, que é um sentimento importante, tinha-se pelos filhos, não pelos parceiros.
Os filhos ficariam ao encargo de um dos progenitores. Cresceriam sem o amor do casal, é certo, mas quantos não são os casos de sucesso em que isso acontece nos nossos dias? E depois, amizades continuaria a haver, continuaríamos a dar-nos com outras pessoas, a conviver em grupo. Apenas não haveria o Casal.

Este meu “protesto” é contra o casal, contra o potencial de sofrimento que o conceito encerra quando a coisa não corre bem – e que pode ser muito superior a tudo de bom que também contém -, não é contra a sociedade, contra o grupo, contra a amizade. Tudo isso seria fundamental.
E só mais uma coisa: a criança nunca sentiria falta do outro; isto porque nunca teria havido outro e nós só podemos sentir falta do que conhecemos, do que perdemos, se não sabemos que existe, não o poderemos lamentar (se nunca tivesse existido televisão, alguém ia sentir falta dela?).

Certamente isto teria originado uma sociedade muito diferente da que temos hoje, mas seria pior? Quero crer que a ideia tem algum mérito e merece alguma reflexão, que não é só alguém magoado pelo amor a desabafar.
Parece-me um exercício intelectual válido, apenas isso. Até porque não advogo esta mudança, agora seria impossível: todos sabemos o que é uma família feliz e devemos aspirar a ela; é nossa obrigação tentar consegui-la, devemos isso a nós próprios. Isso torna impossível o que disse antes.

Agora que já me libertei de algum deste peso no peito que me aflige, vou fazer uma canja (espero que o desgraçado do frango não tenha estado constipado, que esta estória da gripe das aves também me tem afligido).
Até à próxima.

PS – a canja é só para mim, se ele quiser que a vá fazer!

domingo, novembro 06, 2005

Voltaremos a ver-nos (final)

Menin, 19 Setembro 1917

Querida Lea,

Não imaginas a felicidade com que recebi a notícia da tua gravidez. Devolveu-me alguma da fé que tenho perdido a cada dia que aqui passo. As coisas de que o ser humano é capaz de fazer, não imaginas.

Preciso tanto de ti. Depois de amanhã nada vai voltar a ser como era. Amanhã vou entrar em combate.
Se há coisa que me assusta mais do que a ideia de não te voltar a ver, é recear que esta maldita guerra me torne um homem diferente daquele pelo qual te apaixonaste. Me torne numa pessoa pior.
Sinto-me muitas vezes possuído por sentimentos terríveis. Dou por mim a odiar tudo e todos. Sinto raiva e, por vezes, mesmo fúria. Tudo isto é novidade para mim, desconhecia-me capaz de tais coisas e assusto-me.

Por outro lado, sei que não me posso deixar dominar por sentimentos negativos e ideias pessimistas. Sei também que não é altura para filosofias. Chegou a hora da acção. Amanhã tenho que estar à altura do que me é exigido.
A tua gravidez deu-me a confiança de que necessitava.

Escrevo estas linhas e olho para o teu retrato no relógio que me ofereceste. Não me separei ainda dele e não vou separar nunca. É como se fosse uma parte de ti.
Meu Deus, como és linda. Amo-te muito.

Não vejo a hora de voltar para junto de ti.

quarta-feira, novembro 02, 2005

Voltaremos a ver-nos (parte 3)

Francisco Mata nunca tinha pensado muito no seu nome até ter sido incorporado no Corpo Expedicionário Português. Nos últimos meses era no que mais pensava.
Estava ali para matar, era para isso que o queriam. A espingarda e as munições que carregava não o deixavam esquecer.
Não sabia se já tinha morto alguém, gostava de pensar que não, que todos aqueles tiros disparados tivessem errado o alvo. Esperava nunca vir a ter resposta para dúvida.
Uma outra coisa em que Francisco pensava constantemente era em comida. Era disso que andava à procura quando me encontrou.
Por vezes conseguia-se obter algumas rações de combate alemãs no campo de batalha. Eram até mais apreciadas que as do exército britânico.
Nesse dia, Francisco e os seus camaradas tiveram sorte. Pouco depois de me encontrar, um seu companheiro encontrou um cavalo ferido. Há mais de um mês que não comiam carne.

Não me sabendo verdadeiramente apreciar, Francisco sempre teve todos os cuidados comigo. Ainda hoje não consigo perceber como conseguimos ambos sair ilesos dos confrontos em que nos vimos envolvidos – da batalha de La Lys guardarei sempre memória do extremo a que pode chegar o ser humano, do horror.
A verdade é que cheguei em razoável estado ao fim da guerra. E foi assim que me vi transportado para Portugal.
Francisco era alentejano, vivia numa pequena aldeia do Alto Alentejo, Alcáçovas. Trabalhava no campo, no arranque da cortiça quando era tempo dela e a guardar vacas e porcos para um grande proprietário local.
Ironia do destino, ali estava eu, peça suprema de relojoaria do início do século XX, passando os dias no meio dos animais.
Para Francisco, homem simples que tinha visto muita coisa que não tinha desejado, eu era apenas uma coisa bonita que tinha trazido de um sítio feio. “Muito feio, tenebroso, negro”, como dizia, quando contava histórias da guerra, à sombra das Azinheiras. E mostrava-me, para espanto e admiração dos seus companheiros de trabalho.

Antes regressar vindo de França, Francisco tinha retirado a foto de Frau Lea. Penso que para evitar problemas em casa. Nunca cheguei a saber o que fez com a foto, apenas achei estranho não ter colocado uma de Joaquina, sua mulher.
Teve 6 filhas. Quando deixou de trabalhar devido a idade avançada, um dos seus passatempos favoritos continuou a ser contar histórias da guerra, agora aos seus netos. Pegava em mim e falava sobre o “senhor importante” a quem me tinha retirado. Falava com respeito do capitão Maximilian, apesar de desconhecer tudo sobre ele. Dizia Francisco que eu preservava a memória de uma pessoa e que isso devia ser respeitado, afinal, eu tinha sido a última coisa a que aquele homem se tinha agarrado. Que eu devia ser importante para ele e isso era tudo o que importava.

De facto, Francisco nunca me tratou como dono, apenas como guardião. Penso que dessa memória que ele sentia encerrada em mim.
Dizia sempre a quem ouvia as suas histórias que não queria ser dono de nenhum relógio, porque eram, a seguir às armas, a mais terrível invenção do ser humano. Imaginem como fiquei a primeira vez que ouvi tal coisa.
Na sua sabedoria de homem do campo, afirmava que nós, os relógios, éramos terríveis porque lembrávamos constantemente ao Homem que o fim se aproximava. “Tic, tac, tic, tac… já falta menos para tudo acabar”, dizia.
Chamava-nos máquinas ditatoriais, que escravizava-mos as pessoas: “agora tudo tem hora marcada, sempre a correr… então nas cidades é do pior, olha-se para o relógio e entra-se em pânico; todos dizem que não têm tempo para nada… qualquer dia vai ser cá no campo assim também, vocês vão ver… tudo culpa dos relógios”.
Francisco chamava ignorantes às pessoas, viviam sem consciência da vida que levavam, do quanto estavam escravizadas por aquele pequeno objecto que carregavam.
A quem lhe perguntava porque andava então ele comigo, respondia que era porque precisava de saber a que horas tomar o xarope para a tosse. Depois ria muito.
Nunca percebi esta sua atitude, julgo que são coisas normais dos homens do campo em Portugal.

Era um homem bom, muito querido de todos. Teve uma vida longa. Em Março de 1990, com 96 anos, um princípio de pneumonia debilitou-o muito e ficou acamado.
Contou ainda muitas histórias às filhas e netos que estavam sempre por perto. Já todos as conheciam de cor, mas mostravam sempre grande interesse em as ouvir novamente.
Um dia pediu a atenção de todos, queria fazer um último pedido. Perante alguma incredulidade de todos, contou mais uma vez como me tinha encontrado, mas desta vez acrescentou alguns detalhes: que nos últimos dias estava a ter um sonho recorrente e que nele uma voz lhe dizia que era chegada a altura de devolver o relógio ao seu dono. Ao fim de tantos anos tinha-se esquecido de que eu não era dele, que apenas tinha ficado encarregue de o conservar até ao dia em que descobriria como o fazer regressar ao seu dono.
Quando lhe perguntaram como seria isso possível ao fim de 73 anos, Francisco chamou até si o neto João.
- João, escuta-me, vais ser tu a cumprir esta tarefa.
- Diga-me como avô.
- Tenho no banco, em Évora, uma caixa guardada no cofre. Lá dentro vais encontrar o que precisas para devolver o relógio ao seu dono.

Dois dias depois Francisco morreu durante o sono. Tratados os aspectos legais, João levou-me até ao banco. A curiosidade e ansiedade faziam-se sentir.
A caixa que lhe foi entregue não pesava quase nada, João pensou se não estaria vazia. Sentou-se a uma mesa e esteve vários minutos sem se mexer. Por fim, decidiu-se e abriu-a.
Continha duas coisas: uma foto muito antiga de uma jovem rapariga e um envelope fechado, amarelecido e algo amarrotado. Estava endereçado a Frau Lea Abendroth Ludendorff.
João pegou-lhe como se estivesse a pegar na coisa mais preciosa. Ali estava, agora tinha uma morada, uma ajuda para cumprir a tarefa a si atribuída por seu avô. A sua ultima vontade.

Após alguns telefonemas para um primo que tinha em Estugarda, conseguiu saber através dele que a morada já não existia, a rua tinha mudado de nome, mas que, naquele número lhe tinham dado a morada da família Abendroth.
Partiria para a Alemanha.

Frau Lea estava deitada, semi-erguida, encostada a duas grandes almofadas. Parecia dormir quando entrámos no seu quarto: eu, João, o seu primo Augusto e Anne, filha de Frau Lea.
Apesar dos seus quase 93 anos, conseguia perceber-se a beleza que eu recordava dela. Não fosse eu um simples relógio, ter-me-ia emocionado por certo.

- Mãe?
Frau Lea abriu os olhos e compôs-se na cama com a ajuda de Anne. A voz saiu-lhe sumida mas perceptível para quem estava próximo.
- Sim?
- São os senhores de que lhe falei.
Augusto traduzia para o seu primo.
Uma lágrima rolou pela face de Frau Lea.
João aproximou-se e falou. – Dá-me licença que lhe segure na mão?

Durante uma hora contou, pausadamente e com todos os detalhes, a minha história conforme a tinha ouvido contar centenas de vezes a seu avô. Falou-lhe sobre Francisco e em como este o tinha encarregue há algumas semanas de encontrar a pessoa a quem eu pertencia. Pediu desculpa, em nome do avô, por tantos anos de atraso.
- Onde está o relógio? – perguntou Frau Lea.
João pegou em mim e entregou-me. O seu toque era frágil. As saudades que eu tinha daquele toque. Frau Lea emocionou-se bastante. Pediu à filha que me abrisse. A sua foto lá estava.
- Custo a crer Anne, o relógio que ofereci ao teu pai. Foi a última vez que o vi… que os vi. Não sabia naquela altura que estava grávida de ti. Nunca soube se a noticia chegou a teu pai.
- Eu sei mãe.
- As saudades que tenho dele… mas tive-te a ti, não é verdade?

Após alguns minutos de silêncio em que mãe e filha ficaram de mão dada a contemplar-me, João interrompeu.
- Há ainda mais uma coisa. Este sobrescrito que meu avô conservou.
Frau Lea reconheceu a caligrafia do marido. Era a carta que ele lhe tinha escrito na noite anterior à sua morte.

Faz hoje um ano que regressei a casa. Aqui estou, junto a uma foto de Herr Maximilian Ludendorff e Frau Lea Abendroth Ludendorff, dentro de uma bonita caixa transparente, no jazigo da família.
Velo pelo corpo de Frau Lea e pela memória de Herr Maximilian.
Julgo que cumpri bem o meu dever. Agora é altura de também eu descansar. Não o queria fazer sem contar a minha história.
São 12h00.