terça-feira, dezembro 20, 2005

Taxi - O Regresso a Casa (parte 1)

Não gosto de hospitais, nunca gostei. Nem sei se alguém gosta. Tive a minha conta de visitas forçadas e estadias e, por isso, evito ao máximo lá entrar: as recordações não são as melhores.
Não gosto de lá entrar nem que seja por dois minutos para deixar um cliente, o que, sendo taxista, é impossível evitar. Não há semana que não tenha que ir a um hospital duas ou três vezes.
Ontem à tarde não foi excepção. Eu era o primeiro na paragem de táxis de Entrecampos quando um senhor com ar executivo se aproximou; tive um feeling que aquela ia ser uma boa corrida, mas toca-lhe o telemóvel e ele atrapalhado com a pasta que tinha numa mão e um dossier na outra, parou… foi o suficiente para ser ultrapassado por uma senhora: “Hospital de S. José, se faz favor”. Pouca sorte a minha!
E logo S. José, o Hospital de que tenho piores recordações.
Muitas horas lá passei eu sentado naqueles corredores vazios de calor, vazios de sentimento, de bem estar… cheios de dor, de falta de esperança, de vontade de fuga.
Lado a lado num banco corrido, encostados ao azulejo monocromático e frio ou deitados em macas a olhar para o tempo a escoar-se por entre os buracos no tecto falso, fazíamos companhia silenciosa e sofrida uns aos outros.
Manifestávamos a nossa solidariedade com o parceiro de infortúnio no silêncio a que nos entregávamos, na resignação dos conformados que já não protestavam pelo tempo de espera com as enfermeiras que passavam, apressadas e que nem sequer para nós olhavam. Se olhassem teriam de admitir que ninguém merecia nada daquilo.
Dizem-me que está diferente, mais humano. Que se continua a esperar as mesmas horas infinitas mas com mais humanidade. Talvez. Espero não ter que constatar pessoalmente.

Deixei a senhora nas consultas externas e passei pela Urgência. Uma assistente social fez-me sinal e desapareceu no interior do edifício.
Qualquer taxista minimamente experiente sabe que isto não é bom sinal. Confesso que estive quase a ir-me embora, cheguei a meter a primeira. Não fosse a imagem do passado daqueles corredores, das pessoas à espera da ajuda que não chegava, tinha-me ido embora.
Eu não podia fazer o mesmo, mas sabia que aquele desaparecimento da assistente social não era bom sinal.
Voltou pouco depois empurrando uma cadeira de rodas. Nela, um velhote aparentando uns oitenta anos, curvado sobre si, de pijama e roupão. Saí para ajudar – já estava a ter trabalho extra…
Na cadeira, o velho parecia pouco mais que um monte de ossos dentro da roupa mas, ao levantar-se, percebi que era muito mais que isso. Impressionou-me o seu porte, apesar de continuar curvado e seco.
A idade avançada e a doença tinham-no feito pagar uma factura pesada. Apresentava os olhos saídos das órbitas, a pele pendia-lhe em bocados da face, a barba era rala e estava por fazer há dias, estava muito amarelecido.
Ainda assim, o porte era evidente. Na juventude teria tido perto de um metro e noventa, tinha com certeza sido um homem elegante, garboso. Agora metia pena, que é dos piores sentimentos que podemos ter por alguém.
Julgo que ele percebeu isso. Quando o meu olhar cruzou o dele, vi reprovação e mágoa. Sem que me tivesse dirigido a palavra, pedi-lhe desculpa entre dentes.

- Entre lá Sr. Albino. Não tarda nada está em casa… não diga nada, eu sei, eu sei… mas tem mesmo que ser.
- Deixe-me ajudá-lo a por o cinto – disse eu.
- Vai levar este Sr. à Rua dos Condes, 29, 2º esquerdo, às Janelas Verdes, conhece?
- Conheço muito bem. Foi para essa rua o meu primeiro serviço como taxista.
- Coincidências… está bem sentado, Sr. Albino?
O velhote não disse nada.
- 5,00€ chegam, não chegam? – perguntou-me a assistente social M. dos Anjos, ajeitando a placa com o nome que quase lhe caia da bata.
- Vão ter que chegar, não é verdade? – respondi-lhe.

Ao sentar-me ajeitei o espelho retrovisor de maneira a poder ver melhor aquele saco de ossos embrulhado num roupão. Dizer que ele estava triste não é faltar à verdade, mas também não é dizer a verdade toda, havia na expressão do homem algo que me escapava. Afinal, ele estava a sair do Hospital para ir para casa.
Preparei-me para não abrir a boca o caminho todo.
Na Rua dos Fanqueiros o Sr. Albino falou. Num tom de voz surpreendentemente perceptível, disse-me: - É triste ser-se velho.
- É triste é estar doente – respondi-lhe.
- Ser velho e estar doente…
Reparei que olhava pela janela e não lhe respondi.

Parado atrás de um autocarro turístico, daqueles de dois andares, descapotáveis, reparava nos turistas que, de pé, fotografavam a metálica árvore de Natal que domina por estes dias a Praça do Comércio. A maior árvore de Natal da Europa… quando fazemos, fazemos em grande.
Dois pensamentos me assaltaram: um foi que não sabia se o instrutor de Spinning da Quinta da Marinha tinha conseguido entrar para o Guiness por pedalar oitenta horas seguidas sem sair do mesmo sítio (se é para se fazer, que se faça em grande); o outro pensamento, foi que se o autocarro arrancasse naquele momento, o camone ia desequilibrar-se, cair e, bati três vezes numa madeira imaginária, aterrar-me no colo.
Estava eu a tentar recordar quanto tinha custado o último pára-brisas que me partiram e se o seguro cobriria quebra de vidros por queda de turista, quando o Sr. Albino falou novamente: - Hoje não é o seu dia de sorte.
Continuava a olhar pela janela.
- Porque diz isso?
- Ter-me apanhado, você vai ter chatices…espero eu.
- Como é que é, espera que eu tenha chatices?
- Você não me ligue, eu não sei o que digo, é da medicação, da idade.
Decididamente, devia ter-me ido embora quando tive a oportunidade de o fazer.
Calei-me. Achei que se o tentasse fazer falar ia ser pior.
O velhote sabia que algo ainda estava para acontecer.

15 comentários:

Maria Liberdade disse...

Escreves tão bem que me consegues sempre surpreender. Até a mim!

Anónimo disse...

Já tinha saudades do "zé" taxista.... a ver vamos como se sai ele desta vez! Esperemos que este nao se tente suicidar tambem....
beijos da ss

Anónimo disse...

Lindissimo a maneira realista da tua escrita:))Adorei ! Vou seguir a historia.
Desejos de Um Feliz Natal, e um Ano Novo Repleto de Paz Amor e Saúde. Beijos fofos

Ana P. disse...

Oh Rui, a amorinha tb sou eu. Só me esqueci de te dizer...

Anónimo disse...

Aguças a curiosidade....
Sorrisos e beijitos
=P

Anónimo disse...

Sempre nos surpreendes com as tuas histórias :) Um beijo enorme

Anónimo disse...

Tocas nos a todos com os teus textos e palavras que subtilmente tocam pequenos fragmentos da realidade de todos nós...
Apesar de tudo, os meus olhos não conseguem deixar escapar os mais pequenos promenores e como um clique instantaneo, o meu cérebro começa a ponderar sobre tudo e todos...É uma dura a realidade de quem está doente, daqueles que rodeiam alguém que está incapacitado...mais dificil é chegar a velho e sentir se só neste mundo!
Quem dera que as coisas fossem bem diferentes...

Sara MM disse...

pois eu vou daqui a pouco a um hospital... por isso este post fica pra depois... espero que tenha final feliz!
BJS

virilão disse...

'Tás q'é uma cat(a)goria!!!
Agora arma-te em TVI e demora a dar o final...levas uma coça desta malta toda...é só fãs!(mais um)
Aquele abraço Natalicio ~(época de suicidios...)cuidado com o fim da historia

Meia Lua disse...

Escreves muito bem... estou ansiosa para saber o fim.
:)

Anónimo disse...

Que este natal te traga sonhos embrulhados em realidade, que a felicidade brilhe no teu olhar e que a magia do natal te envolva em doces momentos!
Feliz Natal!

Mónica disse...

Olá,

obtigado pela visita ao meu cantinho.

Estou ansiosa para ler a parte dois...

Que os dias que se aproximam venham repletos de Paz, Harmonia, Luz e Amor...

:)

Afrodite disse...

E é claro que eu deveria fazer como toda a gente, ou seja,
mandar mais ‘um’ e-mail pra entupir a tua caixa de mensagens.....

É isso, Natal é um momento de reflexão e
blá,blá,blá,blá,blá,blá,blá,blá,blá,blá,blá,blá......

Desejo-te muita paz, saúde e blá,blá,blá,blá,blá,blá......

Mas sejamos mais realistas...mais verdadeiros....
O que aqui a Afrodite Maria te deseja,
do fundo do coração,é que.....

Vampiria disse...

Pedaços de vida entrecortados, rasgados, pedaços de um todo...nao és mesmo escritor?´Pareces...parece me... beijo

Dani disse...

Obrigado por dares que pensar!