terça-feira, setembro 27, 2005

A Linha (parte III)

Faltava um segundo para o enorme ponteiro do relógio chegar ao número doze, quando Luís abriu os olhos. Parecia ter sido acordado pelo imperceptível clic que o mecanismo fez ao entrar no último segundo das 10h59.
Era uma curiosa característica sua, parecia ter uma habilidade para se antecipar aos relógios. Nunca tinha precisado de despertador para acordar, antes da hora certa, estava já desperto.
Não menos curioso, no entanto, era o facto de que, caso não se lembrasse de ligar o despertador, não conseguia acordar por si à hora marcada.
Só não precisava do despertador se este estivesse a funcionar!

Onze horas. O calor não desarmava. Perguntou a si próprio se teria dormido durante aquela hora ou se teria estado ali, a observar o que acontecia à sua volta. Pareceu-lhe ter sonhado; com o Porto, a Faculdade, com Gonçalo, com Mónica.

Subitamente, foi tomado pelo terror. A sensação de ter uma mão dentro de si a apertar-lhe o coração, arrancou-o ao torpor em que se encontrava. A mochila! Tinha ficado sem ela. Sem dúvida que sim. Como poderia ter sido tão estúpido ao ponto de a ter pousado e ter adormecido. Tinha perdido tudo!
Olhou para baixo da sua cadeira com o medo estampado no rosto. Levou uma mão à testa banhada em suor. Não queria acreditar na sua sorte, a mochila ainda lá continuava. Num lugar como aquele, a mochila tinha permanecido onde a largara por mais de uma hora. Levantou os olhos para o tecto e sorriu. Havia que agradecer um tal milagre, pois só podia tratar-se de um milagre.
Após uma rápida verificação do conteúdo, prometeu a si próprio que tal situação jamais se poderia repetir. À parte algum dinheiro que tinha nos bolsos, tudo o que trouxera consigo estava naquela mochila: cartão de crédito, dinheiro, o passaporte, uma muda de roupa, pilhas, um estojo com alguns artigos de higiene, um mapa, o bloco Moleskine para apontamentos, o leitor de MP3 com a banda sonora da sua vida, a Lomo que tanto prezava e com a qual pretendia fazer um diário de viagem em imagens.
Perder tudo aquilo seria acabar com a sua viagem mesmo antes de ela ter realmente começado.

Ao fazer a mala no seu quarto no Porto, tinha seguido um principio muito seu: se vais caminhar sobre gelo fino, viaja leve. E aquela sua viagem seria toda ela feita sobre uma fina placa de gelo, sentia-o.

Estava preso por arames. Tinha a mente colada ao corpo com cuspo. Toda uma vida vivida a andar para a frente, tinha, nos últimos tempos, estagnado. Qual automóvel sem combustível, também ele não conseguia sair do mesmo sitio.
Confrontado com o que tinha sido a sua vida, não gostou do que viu, do que tinha conseguido para si. Depois de tantos anos, só recentemente tinha percebido isso e não resistiu ao escrutínio.

Já lhe tinha acontecido antes. Ser confrontado com algo inesperado, com uma daquelas coisas que nos fazem repensar toda a nossa vida, quem somos, o que temos e o que queremos para nós. Só que dessa vez tinha conseguido que as coisas fizessem sentido para si. Tinha arranjado um espaço no seu interior, um canto, e tinha lá arrumado a sua análise do sucedido.
As decisões, essas colocou-as em prática, eram simples: teria de se esforçar mais para ser uma pessoa melhor, para compreender os outros; teria de ser mais paciente, mais sincero – consigo e com os outros. Engoliria o orgulho e daria a outra face. Iria ser ainda um melhor amigo dos seus amigos, um melhor filho dos seus pais, um melhor irmão do seu irmão. Magoado, responderia assim.

Dessa vez foi fácil, desta não. Não tinha percebido o que lhe aconteceu. A razão de ter acontecido. Ele que tinha feito um esforço sincero para ser essa tal melhor pessoa. Não merecia isto. Porquê?
A falta de resposta tinha-o levado a Union Station. Num dia quente, sentado numa cadeira maltratada, perguntava uma outra vez a si próprio, “porquê”? Mais uma vez não obteve qualquer resposta e quase desesperou. Teria deixado escapar uma lágrima se, ao levantar os olhos, não tivesse visto uma criança que, olhando para si, sorria.
Sentiu-se mal por estar a sentir pena de si próprio e sorriu de volta. Tinha uma viagem para fazer. Uma viagem que, verdadeiramente, só agora ia começar. Iria procurar o terminal rodoviário e entrar no autocarro que o levaria até à primeira localidade na Route 66 depois de Chicago. Passaria aí a noite e, bem cedo, procuraria boleia, alguém que o levasse por mais alguns kilometros nessa estrada que pertencia ao seu imaginário. A Estrada Mãe, como era conhecida.
Apesar de já pouco ter a ver com aquilo que a tornara mítica, aquela era a sua viagem de sonho, a viagem que tinha que fazer. Perder-se-ia nela, nas paisagens a perder de vista, nos rostos dos desconhecidos com quem se cruzaria, para se tentar encontrar.
Não tinha pressa, viajaria conforme as boleias que conseguisse e aproveitaria todas as oportunidades que surgissem de ganhar alguns dólares, aceitando os biscates que pudesse. Pelo menos era assim que tinha as coisas pensadas.

Ao sair da estação, o sol cegou-o. Fechou os olhos e duvidou se seria capaz de continuar. Teve que se obrigar a abrir os olhos e a andar.
Do outro lado, no fim do caminho, estava uma fotografia centenas de vezes por si imaginada: gaivotas pousadas no cais de Santa Mónica. A preto e branco.

9 comentários:

Anónimo disse...

GAIVOTA
Se uma gaivota viesse
Trazer-me o céu de Lisboa
No desenho que fizesse
Nesse céu onde o olhar
É uma asa que não voa
Esmorece e cai no mar

Que perfeito coração
No meu peito bateria
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde cabia
Perfeito o meu coração

Se um português marinheiro
Dos sete mares andarilho
Fosse quem sabe o primeiro
A contar-me o que inventasse
Se esse olhar de novo brilho
Ao meu olhar se enlaçasse

Que perfeito coração
No meu peito bateria
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde cabia
Perfeito o meu coração

Se ao dizer adeus à vida
As aves todas do céu
Me dessem na despedida
O teu olhar derradeiro
Esse olhar que era só teu
Amor que foste o primeiro

Que perfeito coração
No meu peito morreria
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde perfeito
Bateu o meu coração

Carlinha disse...

Bonitas histórias que contas aqui. Serão realidade ou ficção?
Fica a dúvida ...

Anónimo disse...

Ficção...realidade..que interessa? as duas cruzam-se...complementam-se...

É o mundo dele..

Com os seus sonhos...os seus medos...as suas ilusões...as suas músicas...as suas paixões...os seus cenários...o seu percurso...as frases que não foram ditas mas poderiam (deveriam?) ter sido ditas...

E é estar a ler os posts do Rui e pensar: bolas...é exactamente isto que eu penso ou é exactamente isto que eu sinto..ou, não é que isto também já me aconteceu?...mas não saber expressa-lo da forma que ele faz...

É uma forma de escrita clara, lúcida, limpida, intensa, despida de pretenciosismos e de medos do julgamento alheio, frontal, corajosa, irónica, com um refinado sentido de humor, com a capacidade de rir de si próprio...mas ao mesmo tempo, profunda e poética.

Fico sempre muito pensativa depois de ler os posts dele...

Privilegiados somos nós que podemos conhecer o seu mundo...e viajar com ele...

_________________________

Anónimo disse...

concordo plenamente....ao ler-se as historias do Rui sente-se com ele uma afinidade imensa, como se em locais diferentes vivessemos as mesmas situações e sentissemos as mesmas emoçoes.
Só descobri ontem o blog do meu amigo e foi como que um presente maravilhoso que ele me ofereceu.
Bigado lindo ;)
ss

Eli disse...

Vim cá dizer-te "obrigada" por teres tropeçado, é sinal que no meu blog está alguma coisa que não é um simples nada...
Quando tiver aquela oportunidade (em Outubro), venho ler isto tudo para ver se tropeço também e ainda melhor, se gostarei destas linhas!
:)

Unknown disse...

Olá Rui que bom que me foste visitar assim tive a maravilhosa oportunidade de te conhecer, li o teu post e adorei .
Beijinhos e voltarei conseteza

Marta disse...

obrigada pela visita ao meu cantinho, permitiu-me descobrir este mundo de histórias, reais ou não, que adorei ler. voltarei para saber o desfecho...já estou em pulgas. bjs

Margarida Atheling disse...

Obrigada pela visita!
Quanto à Àrea de Serviço, deixa lá! As "tuas" não lhes ficam, concerteza, atrás. Como disse é uma questão de estado de espírito. E por acaso, dei-me conta disso, em locais mais a Norte, por onde passo com mais frequência!

Parabéns! Escreves, realmente, bem!

Anónimo disse...

Well if you ever plan to motor west
Travel my way, take the highway that's the best
Get your kicks on Route 66

Well it winds from Chicago to LA
More than two thousand miles all the way
Get your kicks on Route 66

Well it goes to St. Louis, down to Missouri
Oklahoma City looks oh, so pretty
You'll see Amarillo, Gallup, New Mexico
Flagstaff, Arizona, don't forget Wynonna
Kingman, Barstow, San Bernardino

If you get hip to this kind of trip
I think I'll take that California trip
Get your kicks on Route 66

DM - "Route 66"

LD